Acórdão nº 8121/19.0T9LSB-B.L1-PICRS de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-04-07

Ano2022
Número Acordão8121/19.0T9LSB-B.L1-PICRS
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem esta Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa.


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I.– RELATÓRIO.


1.–A sociedade Grupo 8- Vigilância e Prevenção Electrónica, SA não se conformando com a apreensão de ficheiros de correio electrónico levada a cabo pela AdC nas suas instalações, na fase administrativa do processo de contraordenação que corre os seus termos sob o PRC/2019/4, apresentou requerimento submetido a 25 de Novembro de 2019 junto do Tribunal de Instrução Criminal, requerendo a Revogação da Apreensão de ficheiros de correio electrónico realizada pela AdC, nos termos do art. 178º nº 7 do CPP ex vi do art. 13º nº 1 do Regime Jurídico da Concorrência e art.41º nº 1 do RGCO, por entender que tal apreensão se encontrava ferida de ilegalidade.

2.– Esse requerimento veio a ser decidido por despacho do JIC de 24 de Fevereiro de 2020 (Refª 393251126), com o seguinte teor:
“Consigna-se que o tribunal tem apenas para apreciar o requerimento de fls. 2 a 26, que lhe é dirigido.
Vem a Grupo 8- Vigilância e Prevenção Electrónica, SA, com os fundamentos de fls. 2 a 25 pedir a revogação do acto de apreensão de 116 ficheiros de correio electrónico pertencentes a colaboradores da requerente, realizado pela Autoridade da Concorrência em 14.11.2019.
Em sínteses, afirma que a Autoridade da Concorrência procedeu a uma diligência de busca e apreensão nas instalações da requerente, diligência que decorreu entre 16.10 e 14.11 de 2019 e que culminou na apreensão de 116 ficheiros de correio electrónico de colaboradores da requerente. Defende a requerente que a apreensão apenas pode ocorrer em processo criminal e mediante a ordem ou autorização do juiz (cfr. Art.º 37 a fls. 11), não existindo qualquer norma que permita à Autoridade da Concorrência fazê-lo, sendo que a autorização para o fazer se encontra conferida constitucionalmente a um juiz.
O MºPª pronunciou-se nos termos constantes a fls. 630.
Cumpre decidir:
A diligência de busca e apreensão a que se refere o requerimento inicial foi determinada por despacho do MºPº, despacho no qual se delimitou o alcance da diligência (cfr. Fls. 30 a 35).
Aquele despacho mostra-se fundamentado de facto e de direito, neste particular fazendo menção expressa das disposições legais aplicáveis, nomeadamente aquelas do Regime Jurídico da Concorrência.
De acordo com a informação prestada pela Autoridade da Concorrência a fls. 635 e seg., não foi apreendida qualquer correspondência fechada.
A competência dada ao MºPº no art. 18º nº 1 al. c) e nº 2 do Regime Jurídico da Concorrência, em nada bole com a defesa de direitos constitucionalmente garantidos, sendo aliás semelhante às disposições da lei processual penal, facultando-se a apreensão de documentos, qualificação que se aplica à correspondência ( em papel ou outro suporte) aberta.
Logo, aquele particular do Regime Jurídico da Concorrência é conforme aos princípios constitucionais.
Nesta conformidade, entende-se que não se verificam os vícios referidos no requerimento em apreço, assim se indeferindo o pedido de declaração de nulidade.
Notifique a requerente e o MºPº.”

3.–Inconformada com a decisão proferida pelo Juizo de Instrução Criminal de Lisboa, datada de 24 de Fevereiro de 2020, que indeferiu o pedido de revogação da diligência de buscas e apreensões levada a cabo pela Autoridade da Concorrência, a sociedade Grupo 8- Vigilância e Prevenção Electrónica, SA impugnou judicialmente tal decisão, peticionando a revogação do despacho recorrido e, em conformidade, que se declare nulo o acto de busca e apreensão levado a cabo pela AdC nas instalações do Grupo 8, com consequente destruição dos emails apreendidos, apresentando para o efeito as seguintes
Conclusões
i.- O Despacho Recorrido entendeu que, nos termos dos artigos 18º, n 1, al. c) e n 2 da LdC, a diligência de busca e apreensão executada pela AdC seria legítima, uma vez que (i) havia sido precedida de mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, devidamente fundamentado e (ii) só teria sido apreendida correspondência aberta.
ii.-No entender da Recorrente, um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público é insuficiente, nos termos normativos aplicáveis, para que a AdC possa proceder à apreensão de correio eletrónico.
iii.-Com efeito, o artigo 34º n. 1 da CRP consagra a inviolabilidade do sigilo da correspondência e o seu n. 4 dita que "[é] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, processo criminar, o que inviabiliza, a priori, a apreensão de correspondência em sede de processo contraordenacional por infração ao Direito da Concorrência.
iv.- A mera consideração do disposto no artigo 34ºn. 4, da CRP é suficiente para concluir pela manifesta ilegalidade da conduta da AdC ao proceder à consulta, exame e apreensão de mensagens de correio eletrónico fora do âmbito de um processo criminal, e sem estar munida de uma autorização de um juiz.
v.-Refira-se, ainda, que, por via da garantia constitucional da inviolabilidade da correspondência, o artigo 32º n. 8, da CRP determina que "[s]ão nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações".
vi.-De igual modo, também o CPP vem consagrar este princípio, nomeadamente na norma prevista no artigo 126º n 3, nos termos da qual "[dessalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular".
vii.-Por sua vez, também o artigo 42º n 1 do RGCO vem dizer que "[n]ão é permitida a prisão preventiva, a intromissão na correspondência ou nos meios de telecomunicação nem a utilização de provas que impliquem a violação do segredo profissional'.
viii.-Sobre a matéria em apreço é, ainda, necessário trazer à colação o disposto na Lei do Cibercrime.
ix.- Para o presente caso relevam as disposições processuais que se encontram no capítulo III da Lei do Cibercrime. Aí se estabelece que, com exceção do disposto nos artigos 18º e 19º do mesmo diploma (não aplicáveis ao presente caso), as disposições processuais previstas no referido capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes: (a) previstos na Lei do Cibercrime; (b) cometidos por meio de um sistema informático; ou (c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico (cf. artigo 11º n 1, da Lei do Cibercrime). Cabe, portanto, constatar que a Lei do Cibercrime contém disposições processuais aplicáveis a qualquer processo criminal no âmbito do qual seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico (cf. artiqo 11º , n1. al. c), da Lei do Cibercrime).
x.-A conclusão que se retira das disposições conjugadas dos artigos 11º e 17º da Lei do Cibercrime (e que consiste, aliás, numa mera concretização do previsto no artigo 34º n. 4, da CRP) resulta que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante apenas pode ocorrer em processo criminal e mediante ordem ou autorizacão do juiz (quando este considere que os elementos em causa se afiguram ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova), sendo aplicável, por remissão, o regime de apreensão de correspondência previsto no artigo 179º do CPP.
xi.-É por estas razões que a Recorrente entende, desde logo, que não existe qualquer norma que habilite a AdC a apreender correio eletrónico, uma vez que esta autoridade não atua no âmbito de um procedimento criminal. Acresce que, para além de não atuar no âmbito de um processo criminal, nunca poderia a autorização para exame, recolha e apreensão eletrónico pela AdC ser conferida por decisão do Ministério Público, visto que, como se viu, essa prerrogativa se encontra constitucional e legalmente reservada a um juiz.
xiii.- Na verdade, o que se constata é que a Lei do Cibercrime em particular o seu artigo 17º concretiza o princípio da inviolabilidade da correspondência consagrado nos artigos 34º n.1 e n.4, da CRR determinando que a apreensão de mensagens de correio eletrónico só pode ocorrer no contexto de investigação criminal e se encontra dependente de autorização ou ordem de um juiz.
xiv.- Se assim é, o Despacho Recorrido procedeu a uma errada aplicação dos artigos 18º, n.1, al. c) e n.2 da LdC, por ter desconsiderado os dados sistemáticos relevantes — de entre os quais, os artigos 34º, n 1, 34º, n. 4 e 32º, n. 8 da CRP, o artigo 126º, n.3 e o artigo 42º, n. 1 do RGCO - ao entender que um mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público seria suficiente para que a AdC pudesse proceder à apreensão de correio eletrónico da Recorrente. Como se viu, essa diligência só é viável em processo criminal e mediante autorização do juiz.
xv.-Por sua vez, subjacente ao Despacho Recorrido está a ideia de que, para efeitos de apreensão, haveria uma diferença substancial entre o correio eletrónico fechado e o correio eletrónico aberto. O primeiro caso estaria sujeito às limitações legais aplicáveis à apreensão de correspondência, enquanto que o segundo seria qualificado como mero documento, e enquanto tal excluído do escopo de proteção que é dada à correspondência.
xvi.-Ora, este entendimento, quando aplicado às mensagens de correio eletrónico, não tem qualquer suporte legal, sobretudo depois da entrada em vigor densificação, recorde-se, do artigo 34º, n.1 e 4, da CRP — do artigo 17º da Lei do Cibercrime.
xvii.-Se, como se viu, a Lei do Cibercrime é-nos termos acima enunciados - uma concretização do princípio da inviolabilidade da correspondência consagrado nos artigos 34º,
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