Acórdão nº 6/21.6YQSTR-A.L1-PICRS de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-07-13

Data de Julgamento13 Julho 2022
Ano2022
Número Acordão6/21.6YQSTR-A.L1-PICRS
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

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I.–RELATÓRIO


ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS intentou a presente acção popular, sob a forma declarativa especial para apresentação de documentos, ao abrigo dos artigos 1045º a 1047º do CPC e art. 12º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto, contra a ré MELIÁ HOTELS INTERNACIONAL, S.A., requerendo:

a)-a notificação da Comissão Europeia, em conjunto com a citação da presente petição inicial à Ré, para, querendo, apresentar observações escritas ao Tribunal sobre o pedido;
b)-a citação da Ré para apresentar os documentos elencados no §62 da presente petição inicial, eventualmente com medidas de garantia da proporcionalidade que o Tribunal entender adequadas;
ou, subsidiariamente,
c)-que o Tribunal determine quais, de entre os documentos referidos na alínea anterior, ou outros que o Tribunal entenda, são estritamente necessários para permitir à Autora perceber se foram afetados interesses difusos e se os consumidores residentes em Portugal foram afectados pelas práticas anticoncorrenciais referidas na presente petição inicial, se as práticas lhes causaram danos, e qual o montante desses danos.

Alegou, em síntese, que:
- De acordo com a Decisão da Comissão Europeia proferida em 21 de fevereiro de 2020, no âmbito do Caso AT.40528 – Holiday Pricing (doravante, “Decisão”), a Ré, entre janeiro de 2014 e dezembro de 2015, violou o artigo 101.º do TFUE e o artigo 53.º do Acordo EEE, por ter implementado práticas verticais, por via contratual, que diferenciavam os consumidores em função da sua nacionalidade ou país de residência, restringindo as vendas ativas e passivas de alojamento em hotéis por si geridos ou dos quais é proprietária a consumidores nacionais ou residentes em Estados-Membros por si determinados, tendo sido condenada numa coima no montante global de € 6.678.000.

-Em 2014 e 2015, a Ré celebrou 4216 contratos de venda de alojamento com operadores intermediários nos quais fez constar a expressa condição de as vendas serem feitas apenas aos consumidores com a nacionalidade ou a residência fixada nos países indicados no contrato.

-Em cumprimento de uma estratégia comercial global que visou compartimentar os mercados nacionais, incluindo o mercado português, e reduzir ou eliminar a concorrência, a Ré, através destes contratos, procurou restringir a concorrência, o que configura um comportamento subsumível às condutas previstas no artigo 101.º do TFUE e artigo 53.º do Acordo EEE.

-Resulta expressamente da Decisão que a prática anticoncorrencial em causa consistiu na diferenciação entre consumidores do Espaço Económico Europeu consoante o seu país de residência, em 2014 e 2015, e que os países afetados foram todos os países do Espaço Económico Europeu (EEE), o que obviamente inclui Portugal. Afirma-se ainda que a prática anticoncorrencial em questão restringiu a capacidade dos operadores turísticos de venderem livremente estadias em hotéis em todo o EEE (incluindo Portugal).

-Os contratos celebrados entre a Ré e os referidos operadores intermediários impediam a venda de alojamento em hotéis da Ré a nacionais ou residentes em Estados-Membros (incluindo Portugal) não incluídos no âmbito geográfico do contrato, vedando aos consumidores excluídos o acesso às condições de venda acordadas entre a Ré e os operadores turísticos acima identificados.

-As cláusulas restritivas encontravam-se no modelo de contrato que a Ré fornecia aos operadores turísticos durante as negociações dos acordos de venda de alojamento.

-As cláusulas restritivas dissuadiam os operadores intermediários de publicitar os hotéis da Ré, e as condições do alojamento – incluindo o preço - fora dos mercados geográficos contratualmente determinados (proibição de vendas ativas).

-Os operadores intermediários identificados não podiam vender nem responder a solicitações de compra de alojamento que lhes fossem dirigidas por cidadãos nacionais ou residentes nos Estados-Membros excluídos (proibição de vendas passivas).

-Os contratos relevantes referidos na Decisão, e os Estados-Membros excluídos pelas cláusulas restritivas de todos os contratos afetados, não constam da Decisão nem estão acessíveis ao conhecimento público, se bem que a Decisão refere expressamente que todos os Estados do Espaço Económico Europeu foram afetados.

-Dada a dimensão, presença e alcance da atividade prestada pela Ré na União Europeia, e atendendo ao âmbito geográfico afirmado na Decisão, é muito provável que os consumidores portugueses ou residentes em Portugal tenham sido afetados pelas cláusulas declaradas ilegais pela Comissão Europeia.

-Os consumidores residentes em Portugal podem, com acentuada probabilidade, ter sido excluídos pelos operadores intermediários em relação contratual com a Ré, vendo coarctada a oportunidade de encontrar alojamento nos hotéis da Ré situados em Portugal ou noutro Estado-membro da UE, ou até no resto do mundo, com melhores condições e menores preços.

-A Autora pretende confirmar que, tal como sugerido pelo âmbito geográfico das práticas descritas na Decisão, os comportamentos anticoncorrenciais da Ré identificados na Decisão causaram danos a interesses difusos constitucionalmente protegidos em Portugal e a interesses individuais homogéneos dos consumidores residentes em Portugal, e, sendo o caso, qual o quantum dos danos causados.

-É impossível à Autora, à luz das informações e documentos publicamente disponíveis, proceder de modo detalhado às determinações referidas no parágrafo anterior, para além da conclusão ampla de que a prática teve efeitos em Portugal.

-Caso a Autora determine, na sequência do acesso aos meios de prova que requer na presente ação, que os comportamentos anticoncorrenciais em causa da Ré lesaram interesses difusos e interesses individuais homogéneos de consumidores residentes em Portugal, é intenção da Autora intentar, com base nos meios de prova obtidos, ação de declaração do comportamento anticoncorrencial e de indemnização perante o Tribunal da Concorrência, Supervisão e Regulação (“TCRS”), ao abrigo da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho, com causa de pedir fundada exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, exercendo o direito de ação popular que lhe é conferido pela Constituição e legislação portuguesas, em representação dos consumidores lesados residentes em Portugal.
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Citada, a ré contestou, arguindo além do mais, a título de excepção, a incompetência internacional dos tribunais portugueses para a presente acção e a ilegitimidade da autora.
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Foi proferida decisão pelo Tribunal da Concorrência Regulação e Supervisão, que julgou improcedentes as excepções invocadas.
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Inconformada com a decisão proferida, veio a ré interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, apresentando as seguintes conclusões:

a)-A DECISÃO proferida pelo Tribunal a quo, na parte em que julga improcedente a exceção de incompetência absoluta,é passível de apelação autónoma à luz do artigo 644.º, n.º 2, alínea b) do CPC;

b)-Em face da natureza (processo especial para acesso a documentos regulada nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC) e contornos da presente ação, em que é demandada uma sociedade comercial domiciliada em Palma de Maiorca, Espanha, com fundamento em factos ocorridos naquele país, o critério geral do domicílio do réu plasmado no artigo 4.º, n.º 1 do REGULAMENTO BRUXELAS I deve prevalecer, o que conduz à falta de competência internacional dos tribunais portugueses;

c)-Não se aplicam ao caso nenhuma das regras especiais derrogatórias daquela regra geral,seja em face da natureza especial da presente ação, seja por se estar perante uma ação coletiva, seja, finalmente, por a ASSOCIAÇÃO IUS OMNIBUS não poder em qualquer caso beneficiar das regras especiais dos artigos 18.º e 7.º, n.º 2 do dito Regulamento;

d)-A DECISÃO passa ao lado e desconsidera o argumento principal da defesa da ora APELANTE, acabando por não considerar e ponderar devidamente a particular natureza das ações especiais para aceder a meios de prova, o que conduziu à sua errada subsunção na categoria de ação de responsabilidade civil extracontratual;

e)-O entendimento segundo o qual o conceito de matéria extracontratual para efeitos do disposto no artigo 7.º, n.º 2 do REGULAMENTO BRUXELAS I abrange qualquer pedido destinado a envolver a responsabilidade de um demandado que não esteja relacionado com a matéria contratual, como se estivéssemos perante uma categoria residual que abrange tudo que não fique na peneira da matéria contratual, parece-nos excessivamente abrangente, conduzindo a resultados que seguramente não encontram suporte no espírito do legislador europeu;

f)-Sem conceder, é inquestionável que no caso que ora nos ocupa, a ação não visa responsabilizar a demandada, seja por aquilo que for, mas apenas e só obter o acesso a determinados documentos, sendo esse - e apenas esse - o pedido formulado, sendo também essa, no limite e sem conceder, a decisão positiva que o tribunal poderá adotar em caso de procedência total ou parcial da ação, o que basta para que se abandone o entendimento subjacente à DECISÃO;

g)-Resulta da primeira e última partes do artigo 13.º da LEI DE PRIVATE ENFORCEMENT que a ação especial para aceder a meios de prova consagrada nesse regime jurídico é, na sua essência, uma ação especial para apresentação de documentos, a qual tem se de legal adjetiva nos artigos1045.º a 1047.º do CPC e substantiva nos artigos 573.º a 576.º do Código Civil;

h)-Ora, o processo especial previsto nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC configura, pois, uma verdadeira ação judicial autónoma, que visa tutelar interesses próprios, sendo dotada de uma tramitação especifica, não se confundindo com uma mera diligência processual, nem muito menos com uma providência cautelar, dependente de uma qualquer ação
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