Acórdão nº 59/21.7GBVVC.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 24-05-2022

Data de Julgamento24 Maio 2022
Ano2022
Número Acordão59/21.7GBVVC.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 59/21.7GBVVC, do Juízo Central Cível e Criminal de Évora (Juiz 4), o Tribunal decidiu:

“1º - Condenar o arguido AA como autor material de um crime de incêndio agravado, previsto e punível pelo artigo 274º, 1 e 2, a), do Código Penal, na pena de prisão de 04 anos.

2º - Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se em três unidades de conta a taxa de justiça – cfr. artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, , , e 16º do Regulamento das Custas Processuais, e tabela III anexa a este diploma legal”.

*

Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1ª - O artigo 138º, nº 4, do CPP, é inconstitucional, quando interpretado no sentido de o conceito de “peças do processo” abranger os autos com declarações que constituem prova proibida, por não ser admissível a sua leitura e exame em audiência, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5, da CRP.

2ª - O pressuposto objetivo da “causação normativamente orientada” não está preenchido, isto é, o arguido não atuou com vista a causar um incêndio.

3ª - Por outra banda, tendo ficado provado, apenas, que o arguido representou como possível que as chamas se propagassem aos bens aí existentes, haverá que apurar se se conformou, ou não, com essa possibilidade, sob pena de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

4ª - Foi violado o artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na medida em que o tribunal recorrido aplicou uma pena desajusta à culpa do agente e às exigências de prevenção, por não ponderação das seguintes circunstâncias a favor do arguido: a singularidade do ato de deflagração praticado pelo arguido, a sua atuação ainda durante o dia, a exígua área ardida, a influência do consumo de álcool na conduta do arguido e a ausência de antecedentes criminais.

Nestes termos e demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento e, em consequência, decidir-se em conformidade”.

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O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1. No decurso da inquirição da testemunha JJ, o Ministério Público requereu o seu confronto com as fotografias juntas a fls. 6 a 14 dos autos, o que foi deferido pelo Tribunal Coletivo, e foi com essas fotografias que a testemunha JJ foi confrontada, conforme consignado na ata da audiência de julgamento do dia 20-01-2022.

2. Nessas páginas encontram-se apenas fotografias tiradas no local dos factos pela Polícia Judiciária e não quaisquer declarações de testemunhas.

3. O confronto daquela testemunha com as fotos juntas a fls. 6 a 14 dos autos possui a cobertura legal dada pelo nº 4 do artº 138º do C.P.P., norma que não ofende, em qualquer medida, os princípios constitucionais vertidos nos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição.

4. Os factos provados integram, sem margem para dúvidas, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de incêndio florestal, imputado ao arguido e pelo qual foi condenado, pelo que quanto a este ilícito não ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a), do nº 2, do artº 410º, do C.P.P.

5. O arguido não avança com um único argumento no sentido de que «não atuou com vista a causar um incêndio», nem procura sequer abalar a argumentação aduzida pelo Tribunal Coletivo.

6. Argumentação essa que se mostra conforme à prova produzida em julgamento e às regras da experiência comum, nos termos ali bem demonstrados, que não merecem o mínimo de censura.

7. O arguido não demonstra, minimamente, que não atuou com vista a provocar incêndio, como pretende, pelo que a decisão de facto deve ser mantida nos seus precisos termos.

8. A culpa do arguido AA situa-se, efetivamente, a um nível médio, face ao descrito modo de atuação, às circunstâncias meteorológicas existentes e à persistência na sua conduta ilícita.

9. Acresce ainda que são fortíssimas as exigências de prevenção geral, e médias as de prevenção especial - ponderando a ausência de antecedentes criminais -.

10. A pena de quatro (4) anos de prisão situa-se muito próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável, pelo que não ultrapassa a culpa apresentada pelo arguido.

11. Atentos tais elementos e os demais indicados no Acórdão recorrido, a pena concreta aplicada mostra-se ajustada à conduta praticada pelo arguido, às consequências da sua conduta, à sua culpa e às exigências de prevenção geral e especial, e, consequentemente, está conforme aos critérios legalmente fixados no artº 71º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal, para a determinação da medida concreta da pena.

12. A pena aplicada não ultrapassa a culpa revelada pelo arguido, e as fortes exigências de prevenção geral verificadas in casu impedem que se aplique uma pena inferior”.

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Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, face às conclusões retiradas pelo recorrente da motivação do recurso, e em breve resumo, são quatro as questões a conhecer:

1ª - Uso Indevido (e inconstitucional) do disposto no artigo 138º, nº 4, do C. P. Penal (confronto da testemunha JJ com um “auto de inspeção judiciária”, ou seja, com uma “peça do processo” que contém declarações cuja audição não é permitida na audiência).

2ª - Vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (tendo ficado provado, apenas, que o arguido representou como possível que as chamas se propagassem aos bens ali existentes, tem de se apurar se o arguido se conformou, ou não, com essa possibilidade).

3ª - Impugnação alargada da matéria de facto (o arguido não atuou com vista a causar um incêndio).

4ª - Determinação da medida concreta da pena (a pena aplicada - 4 anos de prisão - é excessiva).

2 - A decisão recorrida.

O acórdão sub judice é do seguinte teor (quanto aos factos e quanto à motivação da decisão fáctica):

“A) Factos provados

Discutida a causa, o tribunal considera que com relevância e interesse para a decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos constantes da acusação:

1º O arguido reside em … - …, na localidade de …, área desta comarca de ….

2º No trajeto que percorre de forma apeada entre a sua residência e o centro da localidade de …, o arguido circula pela berma da Estrada Nacional n.º …, passando junto à Herdade … Estrada.

3º No dia 10 de agosto de 2021, às 19,55 horas, o arguido encontrava-se a cerca de 100 metros da Estrada Nacional n.º … junto ao acesso à Herdade …, em …, com as coordenadas geográficas …, -…, trazendo consigo uma caixa de fósforos.

4º Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, sabendo que naquele local se encontravam armazenados cerca de 400 fardos de palha, animais, e maquinaria agrícola, o arguido, fazendo uso de fósforo da caixa que trazia consigo, lançou fogo ao pasto existente no local, que progrediu de imediato no sentido do caminho alcatroado para o interior da Herdade …, explorada por BB.

5º Como consequência direta da conduta do arguido, foi originado um incêndio que consumiu cerca de 0,0156 hectares de pasto e alguns fardos de palha, e que somente não se propagou aos restantes fardos de palha, aos animais e à maquinaria agrícola, com o valor superior a 10.000,00€, por motivos alheios à vontade do arguido.

6º Após ter provocado o incêndio, o arguido abandonou a referida caixa de fósforos junto a um poste de eletricidade existente no local.

7º O arguido apenas abandonou o local do incêndio quando foi interpelado por JJ.

8º O incêndio foi combatido por funcionários da herdade que se dirigiram de imediato para o local após o início do incêndio, e por quatro viaturas e 15 operacionais dos bombeiros de …, o que permitiu que a dimensão do incêndio não tomasse outras proporções.

9º O arguido sabia que a parcela de terreno acima indicada não lhe pertencia, e que no local se encontravam fardos de palha, animais e maquinaria agrícola, e que naquela altura do ano, os matos e pastagens se encontravam secos.

10º Ademais, conhecia o arguido as condições atmosféricas que se faziam sentir na referida data, com uma temperatura média de 34º C e uma taxa de humidade relativa de 17%, encontrando-se o concelho de … na classe 3 - Risco de Incêndio elevado.

11º O arguido quis agir como agiu com o propósito concretizado de provocar incêndio no mato e terreno agrícola onde se encontrava, o que quis e conseguiu, representando como possível que as chamas se propagassem aos bens aí existentes, que eram de valor elevado, o que apenas não logrou concretizar por motivos alheios à sua vontade.

12º O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Das condições pessoais, económicas e sociais do arguido:

13º O arguido é proveniente de uma família iletrada, normativa, e de condição económica deficitária, atento o número elevado de filhos e os parcos rendimentos familiares provenientes do salário mínimo que o progenitor auferia como trabalhador agrícola.

14º Frequentou o ensino em idade própria, tendo apenas concluído o 4.º ano de escolaridade.

15º Iniciou posteriormente atividade laboral como indiferenciado no ramo agrícola, e foi mantendo ocupação muito irregular no campo, na vindima e em pedreiras, tendo-se desempregado por iniciativa própria porque “ganhava pouco”, sendo que tem...

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