Acórdão nº 5747/20.2T8MTS-A.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-06-08

Ano2022
Número Acordão5747/20.2T8MTS-A.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Procº nº 5747/20.2T8MTS-A.P1 – Levantamento de Sigilo


Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1277)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório:

AA (A.) intentou acção declarativa de condenação, com processo especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, contra H..., S.A.. (Ré).

A Ré apresentou articulado motivador do despedimento e juntou o procedimento disciplinar, tendo alegado, em síntese, que:
- No âmbito da sua actividade comercial, a Ré explora, entre outros, um Lar de Idosos designado “C ..., no qual a A. prestava a sua actividade para a Ré, desempenhando as suas funções, com a categoria profissional de Técnica de Restauração II, a qual, na sequência de procedimento disciplinar, veio a ser despedida com invocação de justa causa;
- Na nota de culpa foi à A. imputada a seguinte factualidade: [os arts. reportam-se ao articulado motivador do despedimento]:
- Levantamento, no multibanco e quase diariamente, de verbas em valores de €200,00 e de €150,00, de conta pertencente a BB, de 90 anos de idade, que reside no C ..., conforme informação prestada à Ré por CC, afilhado da referida BB e seu legal representante , assim como levantamento de um cheque no valor de €17.000,00, havendo ainda sido emitidos cheques à ordem da A. e de seu marido, no valor aproximado de €63.000,00, totalizando os levantamentos e cheques, no período de julho de 2018 a 25.05.2020, a quantia global de cerca de €160.000,00 (arts. 50 a 55); a A. não desconhecia a instrução que proíbe os funcionários, adstritos ao C ... de receberem qualquer dádiva dos seus residentes e, bem assim, não desconhecia que os próprios residentes sabem que não podem oferecer nada aos funcionários (arts. 45 e 46); apesar da referida D. BB se encontrar numa cadeira de rodas, a A. deveria tê-la acompanhado à caixa de multibanco e nunca deveria ter ido, sozinha, efectuar tais levantamentos (art. 61º).
- Foi efectuado um aditamento à nota de culpa, da qual consta, em síntese: no despacho do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2, datado de 01.07.2020, procedeu-se à nomeação provisória do Senhor CC como acompanhante da Sra. D. BB, despacho esse no qual foi indiciada a seguinte factualidade: a. Em 25.09.2013, no Cartório Notarial ..., Dr.ª DD, a Sra. D. BB outorgou procuração a favor do Senhor CC, nos termos da qual lhe conferiu poderes para, entre outros, a representar junto da X ... – HOSPITAL ..., podendo celebrar quaisquer acordos quanto ao seu internamento e quanto à saúde da Sra. D. BB e para junto da Banco 1..., S.A., movimentar as suas contas bancárias com os n.º ... e ...; para renovar as contas que a Sra. D. BB possui ou venha a possuir na Banco 2... e para representar a Sra. D. BB perante Tribunais de qualquer espécie ou categoria (...) a fim de a representar em quaisquer processos; b. Desde Julho de 2018, a Sra. D. BB emitiu diversos cheques a favor da Autora; c. Também emitiu, em 03.03.2019, um cheque no montante de €5.000,00 (cinco mil euros) a favor de EE, marido da Autora e, em 11.05.2019, um cheque no montante de €5.000,00 (cinco mil euros) a favor de FF, filha da Autora; d. Desde Junho de 2018, foram efetuados inúmeros movimentos a débito na conta titulada pela Sra. D. BB; e. Assim, desde meados de 2018, a Sra. D. BB passou cheques a terceiros determinados no valor de €68.000,00 (sessenta e oito mil euros); cheques a favor de terceiros indeterminados no valor de €18.700,00 (dezoito mil e setecentos euros) e foram efectuados levantamentos da sua conta no valor de €63.200,00 (sessenta e três mil e duzentos euros), tudo no montante de €149.900,00 (cento e quarenta e nove mil e novecentos euros); f. A Sra. D. BB tem mobilidade reduzida, desloca-se em cadeira de rodas e encontrasse totalmente dependente de terceiros para todos os actos da vida diária, excepto comer; g. Encontra-se a residir numa instituição que providencia por todas as suas necessidades. Pelo mesmo Despacho, ficaram inibidas quaisquer pessoas, mormente a Autora, a sua filha, FF, e o seu marido, EE, de movimentar qualquer conta bancária titulada pela Sra. D. BB, em qualquer instituição financeira e nomeadamente na Banco 1..., S.A., e na Banco 2... (arts. 87 a 89); a conduta da Autora assume especial e particular gravidade, quer pelo número de vezes em que efectuou levantamentos no multibanco sem a presença da residente do C ..., quer, acima de tudo, por se ter apropriado desse dinheiro e cheques, obtendo para si um benefício ilegítimo, sendo que não lhe foi dada qualquer instrução nesse sentido, quer pela Responsável do C ..., quer pelo Gestor do C .... (art. 100) e configura, simultaneamente, um ilícito penal pela prática de crime de abuso de confiança (art. 101), punível com uma pena de prisão que pode ir até aos 8 anos.
- Tal factualidade, pela qual a A. veio a ser despedida, consubstancia justa causa do despedimento, pedindo que seja “considerado válido e lícito o despedimento da Autora promovido pela Ré, devendo, em consequência, a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada e a Ré integralmente absolvida do pedido.
Como meios de prova requereu, para além do mais, o seguinte:
“Ao abrigo do disposto no artigo 436.º do C.P.C., aplicável ex vi art.º 1º, n.º 2, al. a), do C.P.T., requer-se ao Tribunal que se digne:
a) Oficiar ao Banco de Portugal para vir aos autos informar quais as contas bancárias da titularidade da Autora e, nessa sequência, oficiar às entidades bancárias junto de quem a Autora tem conta aberta para virem juntar aos autos os extractos das contas bancárias da titularidade da Autora no período compreendido entre Junho de 2018 e Maio de 2020, para prova do alegado nos artigos 53.º a 55.º e 84.º do presente articulado;
(…)”.

A A. respondeu alegando, para além do mais, o seguinte:
5. O procedimento disciplinar assenta em factos distorcidos e que não podem ter o enquadramento que consta da decisão de despedimento, por um lado, e em factos e pressupostos falsos, por outro lado, que a empregadora ficciona para tentar justificar a decisão de despedimento com justa causa.
6. Impugna-se expressamente, os documentos constituídos pela nota de culpa e documentos anexos (fls. 20 a 51 do PD), aditamento à nota de culpa (fls. 59 a 64 do PD), relatório e decisão final juntos pela empregadora (fls. 142 e seguintes do PD), em particular tudo quanto aí se disse por tal não corresponder à verdade ou ser distorção da mesma, insusceptível de ter o enquadramento dado pela empregadora e portanto constituir apenas e tão só a manifestação da adulteração dos factos efectivamente ocorridos e o uso ilegítimo e abusivo de um poder disciplinar sobre a trabalhadora, como de resto se demonstrará.
7. Concretamente e em relação aos documentos juntos com a nota de culpa, impugna-se ainda expressamente a autenticidade e genuidade dos documentos juntos como Docs. 6 a 10 com a nota de culpa, porquanto se trata de um conjunto de documentos manipulados, truncados e adulterados, tendo sido deliberadamente omitido e alterado elementos como a identificação do titular da conta, elementos da identificação da conta à ordem, IBAN, NIB, saldos contabilísticos, pelo são evidentes os sinais exteriores da sua falta de autenticidade, termos em que desde já se argui a sua falsidade e vão os mesmos impugnados, para os devidos e legais efeitos.
8. Acresce que, vão igualmente impugnados os documentos juntos como Docs. 11 a 19 em anexo à nota de culpa, porque os indicados no número anterior (além de adulterados) e estes foram obtidos em violação do segredo e sigilo bancário e sem autorização da titular da conta bancária, do dinheiro e dos cheques, a D. BB, que jamais deu autorização ou consentimento para que tais documentos fossem solicitados e obtidos.
9. Nos termos do disposto nos arts 78º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Financeiras (R.G.I.C.S.F.), os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços, a título permanente ou ocasional, não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente e do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
10. As informações e documentos sujeitos ao dever de segredo bancário só podem ser relevados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição, ou nos termos do artº79º do Regime Geral das Instituições de Crédito.
11. Segundo preconizado pelo Tribunal Constitucional, no Ac. n° 278/95, de 31-05-1995, publicado no Diário da República, II Série, de 28-07-1995, entendeu-se que: «...a situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as operações activas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada, condensado no artigo 26° n° 1 da Constituição, surgindo o segredo bancário como um instrumento de garantia deste direito». (…)
13. Daqui resulta que os factos relativos às relações do cliente com a instituição recorrida, por dizerem respeito à reserva da vida privada, constitucionalmente garantida no art. 26 º da C.R.P., só podiam ser revelados por consentimento prévio da cliente ou por determinação judicial.
14. In casu, sabe a trabalhadora, pela própria D. BB, que jamais deu consentimento a quem quer que fosse para que fossem obtidos elementos da sua conta bancária, sem o seu consentimento e não foi obtida qualquer determinação judicial nesse sentido.
15. Tal como não autorizou o dito CC, que não é seu afilhado, nem familiar, a aceder a quaisquer dados pessoais, nomeadamente os confidenciais das suas contas bancárias já
...

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