Acórdão nº 570/19.0GCLRAR.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 11-10-2023

Data de Julgamento11 Outubro 2023
Ano2023
Número Acordão570/19.0GCLRAR.C1
Órgão Tribunal da Relação de Coimbra

Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. … o MºPº deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, alínea a), nº2 alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal e de um crime de violência doméstica, p. e p. e art. 152º, nº1, alínea d), nº2 alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal, com base nos factos constantes da mesma.


*

2. …, foi proferida sentença, em 3 de maio de 2023, na qual se decidiu:

a) Absolver o arguido da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, …(na pessoa de AA), e de 1 (um crime) de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal (na pessoa de BB), de que o mesmo vinha acusado;

b) Julgar extinto o procedimento criminal deduzido contra o arguido – por falta de condições de procedibilidade – pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal (na pessoa de AA).


*

2. Inconformados com o decidido, recorreram o Ministério Público e a Assistente … [esta requerendo, apenas, a sua constituição como assistente no decurso do prazo para interposição de recurso da sentença, …], extraindo da motivação dos recursos por si interpostos as conclusões …

2.1. Do recurso do Ministério Público:

1 – Consideram-se incorrectamente julgados os factos das alíneas d), f, m, n, cc, ee, ff, gg, hh, ii, jj, kk, ll e mm, da rubrica “factos não provados”.

5 – Toda a prova impõe necessariamente decisão diversa.

27 - Ora, todos estes factos dados como provados e os que deveriam ser dados como provados e o não foram, integram, na sua globalidade, a prática do crime de violência doméstica.

35 - Porém, se assim não dever entender-se, o que apenas se considera como mera hipótese académica, deveria o arguido ser condenado, pelo menos pelo crime de injúrias.

36 -Na realidade, no crime de violência doméstica incluem-se os crimes de injúria e difamação.

39 – Uma corrente jurisprudencial destaca que, encontrando-se o arguido acusado ou pronunciado como autor de um crime de violência doméstica e não se apurando, em audiência de discussão e julgamento factos bastantes para o preenchimento dos requisitos típicos de tal crime, mas apenas suficientes para imputar ao arguido a autoria de um ou mais crimes de natureza particular, isso não constitui obstáculo à condenação do arguido pela pratica de crimes de natureza particular, independentemente e ter havido queixa ou/e constituição formal como assistente.

40 - Outra corrente jurisprudencial, embora reconhecendo legitimidade do ofendido para exercer a ação penal pelo crime de natureza particular, apenas permite que a mesma se exerça após o cumprimento do artigo 359.° do Código de Processo Penal – C.P.P. (alteração substancial) e só não havendo oposição é que se permite a legitimidade da condenação

41 - E se assim não se entender, encontrando-se o arguido acusado como autor de um crime de violência doméstica, abrangendo este crime as injúrias, as ameaças e as ofensas físicas, mesmo que os últimos (ameaças e ofensas físicas) não fossem dados como provados, mas apenas a autoria de crimes de natureza particular (injúrias), deveria ter sido proferida condenação pela pratica desses crimes de natureza particular, independentemente de ter havido queixa ou/e constituição formal como assistente.


*

2.2. Do recurso da Assistente …:

A. Os factos d), f), m), n), cc), ee), ff), gg) e hh) do rol de factos «não provados» devem todos ser julgados como «provados» em decorrência da sua reapreciação e da renovação dos meios probatórios …

C. Houve assim erro notório na apreciação da prova ( artº 410º, nº 2, alínea c) do C.P.C.).

D. A sentença em apreço é claramente violadora do artigo 127.º do C.P.P.

E. Atenta a alteração da matéria de facto provada encontram-se demonstrados os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica.


*

3. Admitidos tais recursos, foi o arguido notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 411º, nº6 do CPP, tendo o mesmo apresentado resposta apenas ao recurso interpostos pelo Ministério Público, …


*

4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência de ambos os recursos, …

*


*

II- Fundamentação

A) Delimitação do objecto dos recursos

… as questões a decidir nos presentes recursos são as seguintes:

- Do recurso interposto pelo Ministério Público:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

-A verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violência doméstica imputado ao arguido;

- A verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de injúria e das condições de procedibilidade para a condenação do arguido pela prática do mesmo.

- Do recurso interposto pela Assistente:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

- A verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violência doméstica imputado ao arguido.


*

B) Da decisão recorrida

Para a resolução destas questões, importa ter presente o que consta da sentença recorrida, a qual, na pare relevante para apreciação das mesmas, se transcreve:

“II- Fundamentação

A) Factos Provados

Discutida a causa, e com pertinência, resultaram provados os seguintes factos:

1. Em 10/09/1988, AA e o arguido, CC, casaram catolicamente.

2. Deste relacionamento nasceram DD e BB, respetivamente, no dia 20/12/1990 e 17/12/1996, ambas maiores de idade.

3. BB é portadora de uma deficiência genética - Síndrome de Turner – que lhe provoca 70% de incapacidade cognitiva.

4. O casal residia na Rua ..., ... (...).

5. O arguido ingeria bebidas alcoólicas.

6. As discussões do casal eram frequentes.

7. No decurso das referidas discussões, na presença das filhas do casal, frequentemente, o arguido dirigia-se a AA nos seguintes termos: “puta”, “cabra” e “filha da puta”.

8. Em data e contexto não concretamente apurados, o arguido puxou, um fio de prata que BB tinha ao pescoço.

9. No dia 13/09/2019, pelas 17h30m, no interior da residência comum do casal, quando BB tentava efetuar uma chamada telefónica o arguido, agarrou-a pelo braço esquerdo e, de seguida, retirou-lhe, à força, o telefone da mão.

10. Perante o comportamento do arguido, BB, fugiu para o exterior da residência, refugiando-se na casa de uma vizinha.

11. Com a conduta descrita o arguido, provocou em BB as seguintes lesões:

“- Membro superior direito: 2 escoriações com crosta no cotovelo a maior com 8mmx4mm;

- Membro superior esquerdo: cicatriz descamativa superficial no terço medio da face lateral do braço com 2cmx1cm”

12. As lesões descritas em 11. determinaram a BB um período de doença fixado em 3 (três) dias, todos com afetação da capacidade de trabalho geral.

13. No dia 30/09/2019, pelas 22h30m, na cozinha, da residência comum do casal, quando AA e BB se encontravam a jantar, o arguido trouxe consigo um gato pequeno e deu-lhe de comer do prato da sopa de AA.

14. Que, em momento posterior, quando se encontravam no exterior da habitação, BB caiu ao chão.

15. AA e BB deixaram de coabitar com o arguido em 01 de outubro de 2019.

16. No dia 04/11/2020, pelas 12h35m, no interior do estabelecimento comercial, “Café...”, o qual se situa próximo do local de trabalho de AA, quando o arguido se encontrava a tomar café, AA abeirou-se deste e, após uma troca de palavras, de conteúdo não concretamente apurado, abandonou o local.

17. O arguido sabia que AA era sua mulher.

18. Ao adoptar os comportamentos supra descritos em 7., atuou com o propósito, concretizado de a ofender de modo a atingir o seu bem-estar psíquico e honra.

19. … o que fez de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

20. Mais, sabia o arguido que BB era sua filha, com quem residia, pessoa particularmente indefesa em virtude da doença que padece – síndrome de Turner – e que a mesma se encontrava ao seu cuidado, sendo responsável pela sua saúde e bem-estar.

B) Factos não provados

Discutida a causa, e com pertinência, não se provou:

C) Motivação e análise crítica das provas

No caso dos autos, a convicção do Tribunal encontra-se alicerçada nos seguintes meios de prova:

Ora, da prova assim produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, não resultou, para nós, sustentada a acusação pública deduzida contra o arguido …

D) Enquadramento Jurídico-Penal

Com reporte à conduta praticada pelo arguido sobre AA, melhor descrita nos pontos 7, 17, 18 e 19 da rubrica “Factos provados” lamentável que seja a mesma, ela não integra, por si só a tipologia legal mencionada.

Não que é que a conduta adoptada pelo arguido não atinja o patamar criminalizável. Não atinge é o patamar específico exigido pelo artigo 152.º do Código Penal ] este raciocínio, aliás, foi o que esteve subjacente aos despachos de arquivamento prévios à dedução da acusação pública com reporte a (algumas) condutas adoptadas por AA contra o aqui arguido (então, ofendido) CC].

No entanto, a factualidade mencionada poderia ser apreciada, como atrás se referiu, à luz do disposto no artigo 181.º, n.º 1, ambos do Código Penal (crime de injúria).

… o procedimento criminal pelo ilícito referenciado – injúria – depende de acusação particular, …

Concretamente, disciplina o artigo 50º, nº 1, do Código de Processo Penal, que “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”.

Ora, compulsados os autos, verifica-se que a ofendida, ...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT