Acórdão nº 545/19.9PBMAI.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 15-02-2023

Data de Julgamento15 Fevereiro 2023
Número Acordão545/19.9PBMAI.P1
Ano2023
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Processo: 545/19.9PBMAI.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 2


Acordam, em Conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório

No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 545/19.9PBMAI, correu termos pelo Juízo Local Criminal da Maia foi proferida sentença, após realização da audiência de discussão e julgamento, com o seguinte dispositivo:

«Em face do exposto, decidimos:
1. Absolver o arguido AA da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, n.º 1 por que vinha acusado.
2. Absolver da instância a Companhia de Seguros “A..., S.A.”.
3. Sem custas crime pelas mesmas não serem devidas.(…)»

Inconformado com a decisão absolutória, dela interpôs recurso o MINISTÉRIO PÚBLICO para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
D – CONCLUSÕES:
I – Da subsunção jurídica como crime:
1.º No âmbito dos presentes autos, o arguido AA foi absolvido pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente previsto e punível pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, por se ter considerado que os factos dados como provados integram a prática da contraordenação, prevista no artigo 38.º, n.º 1, alínea r), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
2.º No que concerne à matéria de facto, o Ministério Público nada tem a impugnar considerando que o Tribunal a quo fez uma correta apreciação da prova com a devida fundamentação.
3.º Todavia, o Ministério Público não concorda com a subsunção jurídica feita pelo Tribunal recorrido, que até tem relativo apoio jurisprudencial.
4.º A argumentação defendida na sentença sindicada e na jurisprudência que a sustenta encontra-se viciado por uma premissa falsa: a relação de especialidade entre o artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal e o artigo 38.º, n.º 1, alínea r), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
5.º A relação entre as normas elencadas no artigo 4.º desta peça recursiva não é de especialidade mas subsidiariedade (neste caso expressa), atendendo ao teor do artigo 36.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro onde é referido expressamente que quando o mesmo facto é punível a título contraordenacional e penal, o agente só é punido pelo crime, sem prejuízo da sanção acessória da contraordenação.
6.º No caso sub judice onde os factos preenchem duas normas simultaneamente, só haverá punição a título contraordenacional, se não tiver sido apresentada queixa pelo ofendido, já que o crime previsto no artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal tem natureza procedimental semi-pública, de acordo com o seu número 4.º.
7.º Tal conclusão retira-se através do recurso ao elemento gramatical, ou seja, à letra da lei (de resto o ponto de partida para da interpretação).
8.º Ao contrário do que diz a sentença que a “qualificação de uma conduta não pode ficar dependente de um tal exercício, sob pena de nos confrontarmos com duas situações semelhantes, a terem tratamento diferenciado pelo exercício de queixa (crime) ou por esse direito não ter sido exercido (contraordenação)” respondemos que é mesmo assim já que foi essa a intenção do legislador.
9.º Mas o nosso raciocínio também é defensável em termos interpretativos com recurso ao elemento lógico, por ora circunscrito ao elemento sistemático, concretamente ao contexto da lei e aos lugares paralelos.
10.º Quanto à análise do elemento sistemático cumpre referir que todos os crimes previstos no diploma avulso têm natureza pública não existindo qualquer crime nesse diploma que tenha natureza semi-pública. Por outro dado, os crimes que podem ter como origem o ataque de animais e que sempre tiveram natureza pública não foram contemplados neste diploma extravagante (o homicídio doloso e o homicídio negligente).
11.º Quanto aos lugares paralelos, chamamos a atenção da violação do artigo 18.º, do Código da Estrada, situação que não é enquadrável no artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, mas servirá como fonte para o preenchimento do conceito de negligência previsto no artigo 15.º do Código Penal, que conduzirá ao preenchimento do artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, no caso de o ofendido apresentar queixa pois, em caso diverso, o facto apenas será punível a título de contraordenação, nos termos do artigo 18.º, n.º 4 do Código da Estrada, o que assim não será caso a queixa exista, por força do disposto no artigo 134.º, n.º 1, do último diploma codificado. Ou seja, estamos perante outra situação em que o arguido só é punível pela prática de crime se o ofendido apresentar queixa.
12.º Mas a tese defendida neste recurso é possível ser defendida através do recurso, novamente, ao elemento lógico, concretamente quanto ao elemento racional ou teleológico, pretendendo-se analisar a razão de ser lei (“ratio legis”) e as circunstâncias que motivaram ou da conjuntura que motivou a elaboração do diploma legislativo (“ocasio legis”).
13.º No que à ocasio legis diz respeito, o legislador foi muito claro no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro ao referir que pela “experiência adquirida (…) conclui-se (…) que a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime”.
14.º Parece evidente que o que o legislador pretendeu foi agravar a punibilidade e, em caso nenhum desagravá-la.
15.º Quanto à ratio legis defendemos que o legislador decidiu assegurar a punibilidade, embora com critérios de proporcionalidade, independentemente da vontade do ofendido.
16.º Assim, os casos de ofensas dolosas com animais passaram a ter natureza pública, assim como ocorre nas ofensas negligentes graves.
17.º Nada se alterou quanto ao homicídio doloso e negligente, pois já tinham natureza pública, ficando a sua tutela coberta em termos gerais pelo Código Penal.
18.º Quanto a ofensa à integridade física simples por negligência, pelo facto de o legislador considerar que carece de menor tutela, continuou, em termos criminais, a colocar nas mãos do ofendido tal disponibilidade, mas assegurando, a nível subsidiário uma tutela contraordenacional, por entender dever haver alguma consequência legal para tal ocorrência.
19.º Pelas várias razões expendidas entendemos que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação ao considerar que a contraordenação do artigo 38.º, n.º 1, alínea r), do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro, impede a subsunção dos factos dados como provados ao artigo 148.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
20.º Acrescentamos, ainda, que uma interpretação dos dois elencados preceitos no sentido dado pela sentença, conduz a uma inconstitucionalidade orgânica, que expressamente se invoca, nos termos dos artigos 198.º, n.º 1, alínea b), 165.º, n.º 1, alínea c) e d), da Constituição da República Portuguesa, por violação do sentido e alcance dado pela Lei de Autorização Legislativa n.º 82/2009, de 21 de Agosto (emanada pela Assembleia da República que apenas conferiu ao Governo autorização para definir ilícitos criminais correspondentes à promoção ou participação com animais em lutas entre estes, definir ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física de pessoa causada por animal, por dolo do seu detentor, definir ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física grave de pessoa causada por animal, por violação de deveres de cuidado pelo seu detentor).
21.º Assim, pelos argumentos aduzidos entendemos que o raciocínio elaborado pelo Tribunal a quo não deve proceder devendo o Tribunal ad quem, ao invés, considerar que os factos são subsumíveis ao artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal e, consequentemente, condenar o arguido por tal crime.

II – Da escolha e determinação da pena:
22.º O crime imputado ao arguido é punível com pena de prisão até 1 (um) ano ou com pena de multa até 120 dias (artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal).
23.º Nos casos em que o legislador tenha admitido o funcionamento alternativo de uma pena privativa e de uma pena não privativa da liberdade, deverá o Tribunal dar preferência à segunda sempre que, através dela, for possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção, o que sucede in casu.
24.º Relativamente à determinação da medida e concretamente no que à prevenção geral diz respeito, importa assegurar a confiança que a comunidade sente na tutela da sua segurança e integridade física. A liberdade do cidadão de poder circular na via pública em segurança e sem receio de ser atacado por animais domésticos impõe aos donos de animais domésticos que assegurem, de forma adequada, a vigilância e contenção destes.
25.º Em relação aos factores concretos da medida da pena relativos à execução do facto, importa dizer que a negligência se verificou a dois níveis, não só quanto a falta de açaimo, mas também, quanto à não utilização de trela o que aumenta o grau de ilicitude existente.
26. Acresce, ainda, as consequências decorrentes dessa negligência, por um lado um período de 18 (dezoito) dias de doença, todos eles com incapacidade para o trabalho geral e profissional, e por outro a existência de consequências permanentes, concretamente cicatrizes, ainda que pouco notórias.
27.º No que toca à culpa, deporá a favor do arguido o facto de não se ter provado se as infracções fontes da negligência foram praticadas com dolo, ou também com negligência, o que na dúvida ter-se-á que considerar que foram também negligentes, o que faz a culpa assumir um grau mais ténue.
28.º Quanto às necessidades de prevenção especial, conclui-se que as mesmas não terão grau elevado, em virtude, desde logo pelo facto de o arguido não ter condenações
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