Acórdão nº 517/20.0T8BNV.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 2023-01-12

Ano2023
Número Acordão517/20.0T8BNV.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Seniores em Casa, Cuidados Domiciliários, Lda. instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que:
a) seja reconhecida a propriedade da autora sobre o veículo automóvel, marca ..., com a matrícula ..-NU-..;
b) o réu seja condenado a restituir-lhe imediatamente essa viatura;
c) o réu seja condenado a pagar à autora uma sanção pecuniária compulsória ao abrigo do disposto no artigo 829º-A, n.º 1 do Código Civil, por cada dia de incumprimento de restituição do veículo automóvel desde o trânsito em julgado até efetivo e integral cumprimento, no valor de € 50,00 por dia.
Alega, em síntese, que o referido automóvel é propriedade da autora e que o réu se encontra na posse do mesmo, arrogando-se seu proprietário, bem sabendo que tal viatura é destinada à prossecução da atividade comercial da autora, sendo que o réu foi destituído do cargo de gerente da autora.
O réu contestou, contrapondo que celebrou com a autora um acordo em 21.08.2013, nos termos do qual a autora se comprometeu, findo o contrato de aluguer de longa duração que teve por objeto o dito veículo, a registar o direito de propriedade do mesmo a seu favor, sem qualquer contrapartida pecuniária, em virtude de o réu ter colocado à disposição da autora um veículo de sua propriedade durante 3 anos.
Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
Teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Face ao exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência:
«a) Reconheço a Autora SENIORES EM CASA CUIDADOS DOMICILIÁRIOS, LDA. dona e legítima proprietária do veículo automóvel, de marca ..., com a matrícula ..-NU-..;
b) Condeno o Réu AA a restituir o veículo automóvel identificado em a) à Autora SENIORES EM CASA CUIDADOS DOMICILIÁRIOS LDA.
c) Condeno o Réu AA no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no montante de € 50,00, por cada de incumprimento na restituição do veículo automóvel identificado em a), após o trânsito em julgado da presente sentença.
Custas a cargo do Réu.
Registe e notifique.»
Inconformado, o réu apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das seguintes conclusões[1]:
6ª) – Decorre da matéria provada nos pontos 4., 5., 7., 22., 24. e 25. que a autora tinha conhecimento dos termos e condições de utilização da viatura desde data anterior à instauração da presente ação, e dos pontos 9., 10. e 11. dos factos provados que no início de 2019 cessou a união de facto em que viveram BB, a nova gerente da autora, e o réu e que foi apenas no contexto desse grave conflito (em surgiram, entre outras, as ações judiciais dos pontos 15., 16. e 18. dos factos provados) que BB requereu, a 17-julho-2020, o registo da propriedade em questão.
7ª) – Mas sobretudo, resulta provado por acordo das partes – ter sido alegado na contestação e nunca ter sido impugnado – que na data da assembleia geral da sociedade autora realizada a 20-agosto-2019, em que o réu foi destituído de gerente e a referida BB se tornou a nova gerente da sociedade, esta mesma entregou as chaves da citada viatura ao réu.
8ª) – Assim, – cfr. pontos 4. e 22. a 25. da matéria provada – desde a data da celebração do ALD em julho de 2013 até à instauração desta ação em 2020, o apelante utilizou a viatura destes autos com o acordo da autora, pelo que ficou provado exatamente o contrário do concluído no ponto 26. da matéria provada na sentença em recurso, o que implica que o mesmo tenha de ser alterado em conformidade.
9ª) – Consequentemente, ao dar como assente matéria em sentido oposto ao que resulta provado e ao deixar de incluir entre a mesma a matéria dos factos provados pelos referidos documentos, todos da maior relevância para os temas dos autos, o tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto, devendo a sentença ser alterada em conformidade, passando a considerar entre os Factos provados os seguintes pontos:
21. A propriedade do veículo, de marca ... e matrícula ..-NU-.., encontra-se registada a favor da Autora, conforme pedido de registo apresentado a 17-julho-2020.
26. Desde a celebração do contrato de aluguer de longa duração em julho- 2013 e mesmo após a destituição do cargo de gerente que exercia junto da Autora, o Réu utiliza o veículo, de marca ..., modelo ... (A7), com a matrícula ..-NU-.., com o consentimento da sociedade Seniores em Casa, Cuidados Domiciliários, Lda.
27. Entretanto, o réu continuou até ao presente a pagar as despesas devidas pelo proprietário da viatura, como a respetiva inspeção periódica obrigatória e o seguro.
10ª) – A Meritíssima Juiz a quo julgou o acordo no ponto 7. mencionado na conclusão 4ª) supra como um contrato promessa “(…) inominado e atípico, na medida em que a primeira se obrigou perante o segundo a transferir-lhe o direito de propriedade do veículo automóvel (…).”, acordo a concretizar sem qualquer pagamento (e sem qualquer ónus ou encargos) por esta transmissão de propriedade constituir a contrapartida de o apelante ter colocado à disposição para utilização total da seniores uma outra viatura do apelante (..., matrícula ..-..NU); e se a sociedade incumprir e não transferir o ... para o apelante no prazo de 12 meses a contar do termo do ALD, a seniores pagará ao apelante 8.000,00€.
11ª) – Desde logo do texto se vê que a transmissão da propriedade resulta de uma contrapartida com outro veículo, sem dependência da qualidade de gerente, pelo que a destituição de gerente não afeta a promessa em causa, tanto mais que, na data da sua destituição, a nova gerente lhe entregou as chaves da viatura – cfr. conclusão 7ª) acima.
12ª) Ao invés, a viatura foi entregue ao apelante para sua utilização plena ao abrigo do mencionado acordo e das suas ditas condições resulta que a vontade das partes foi a de no final do ALD ser transferida, definitivamente, a propriedade da viatura para o apelante (ou para quem este indicasse), tanto mais que (cfr. clausulado), em caso de incumprimento, a seniores se obrigou a pagar 8.000,00€ ao apelante.
13ª) Mais, o facto de a autora ter conhecimento do acordo, conjugado com os demais factos provados referidos, coloca fundadamente em crise a conclusão de que a autora tenha adquirido a propriedade da viatura (registo que à data da ação tinha 2 meses), tanto mais que entre julho de 2019 (cessação ALD) e julho de 2020 (data em que a autora requereu o registo da propriedade) o apelante manteve a utilização / posse do veículo, comportando-se como o seu proprietário. Ademais, o cumprimento do acordado implicava o registo da propriedade em nome do apelante.
14ª) - Pelo que, o tribunal a quo, ao concluir que a autora é proprietária por força da presunção resultante do registo, errou na interpretação e aplicação das normas que sustentam tal conclusão e do art.350º do Código Civil e, por isso, deve ser alterada no sentido de concluir que o conhecimento que a autora tinha do acordo dos autos e suas condições, impede o funcionamento da presunção legal do registo – que assim se considera ilidida – e, portanto, não ficou provado o direito de propriedade da autora e, em consequência, o apelante deve ser absolvido do demais peticionado.
15º) – Acresce que tem sido crescentemente admitida na doutrina e na jurisprudência a possibilidade de verificação, a título excecional, de verdadeira posse assente em contrato-promessa, como, por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido a 26-03-2019 no processo 7822/16.9T8CBR.C1; e nos Acórdãos do STJ de 12/07/2011, proc.899/04.1TBSTB.E1.S1 e de 12/03/2015, proc.3566/06.8TBVFX.L1.S2 (acessíveis em www.dgsi.pt), donde resulta que, se da ponderação casuística dos termos e conteúdo do negócio, das circunstâncias que o rodearam e das vicissitudes que se lhe seguiram, resultar a intenção de transferir, desde logo, para o promitente comprador a posse do bem, como acontece nos casos do pagamento total do preço; ou se com a entrega o promitente comprador passou a agir com se o bem fosse dele ou em circunstâncias que revelem expetativa da irreversibilidade da situação, a posição do promitente transmitente merece a qualificação de verdadeiro possuidor.
16ª) – Ora, de toda a factualidade provada acima exposta (nomeadamente que a transferência da propriedade visou uma compensação, a efetuar sem qualquer pagamento e, se incumprida, “a seniores pagará ao apelante 8.000,00€”, que efetivamente desde 2013 o apelante utiliza o veículo como seu, inclusive pagando as despesas próprias do proprietário, como se o fosse, e que a sociedade autora sempre soube e consentiu nessa utilização) resulta que o apelante tem praticado sobre a viatura entregue atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade e com o intuito de o exercer.
17ª) – Assim, o apelante utilizou a viatura através de actos integradores do elemento material da posse (corpus) e, ao utilizá-lo ainda como se fosse o seu proprietário comprova-se igualmente a intenção de agir como sendo o titular desse direito de propriedade (animus possidendi), ou seja, verificando-se os elementos caracterizadores da posse (e não da mera detenção), o apelante tem uma verdadeira posse da viatura que adveio do referido acordo (um direito pessoal de gozo, de base contratual) e que constituem título que legitima a recusa do apelante em restituir tal veículo à sociedade.
18ª) – Por estas razões, o apelante entende que também este segmento da decisão tomada pelo tribunal a quo padece de erro quanto à interpretação e aplicação das normas jurídicas em que assentou,
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT