Acórdão nº 50/08.9BEFUN de Tribunal Central Administrativo Sul, 31-03-2022

Data de Julgamento31 Março 2022
Ano2022
Número Acordão50/08.9BEFUN
ÓrgãoTribunal Central Administrativo Sul

Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

O Município do Funchal, não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, de 04.11.2021, que declarou a nulidade de um ato de licenciamento de obras, praticado a 05.08.2003, veio interpor recurso jurisdicional, no qual, em sede de alegações, culminou com as seguintes conclusões - cfr. fls. 181 e ss., ref. SITAF:

«(…)

1a A douta sentença recorrida, ao decidir como decidiu, fez uma incorreta aplicação do direito aos factos que se encontram documentalmente provados ao determinar sem mais a nulidade do ato de licenciamento praticado a 05/08/2003, sem extrair as devidas consequências da consolidação de facto da edificação.

2a Uma vez que o Tribunal a quo declarou a nulidade deste ato de licenciamento praticado a 05/08/2003, e não valorou o fato de, desde a sua prática até à prolação desta sentença, terem passado 18 anos e três meses.

3a Tendo em conta o hiato temporal entretanto decorrido, o enquadramento da edificação na envolvente respeitando os alinhamentos e a volumetria predominantes das edificações contiguas, a ausência de riscos para a segurança, saúde, salubridade e meio ambiente e a confiança depositada pelos compradores do imóvel, sempre deveriam ser relevados os efeitos produzidos pelo ato impugnado.

4a E, nessa medida, abster-se este douto Tribunal de declarar a respetiva nulidade, à luz dos princípios da proporcionalidade e da boa fé, com afloramentos legais de relevância muito particular em matéria de Direito do Urbanismo, maxime através do disposto nos artigos 134.°, n.° 3, do CPA de 1991 (cujo teor é hoje reforçado pelo artigo 162.°, n.° 3, do CPA de 2015) e do artigo 69.°, n.° 4, do RJUE.

5a Por fim, em última análise, caso se entendesse que, apesar de tudo o exposto, o ato impugnado é nulo e que essa nulidade deveria ser declarada - no que não se concede -, nunca à declaração de nulidade poderia seguir-se uma ordem de demolição e a condenação do Município na reposição da situação anteriormente existente.

6a Uma vez que o decurso do tempo conduziu à total consolidação do edifício, traduzindo “uma situação de impossibilidade absoluta” de cumprimento de uma eventual sentença que declarasse a nulidade do ato impugnado (cfr. artigo 45.°, n.° 1, do CPTA).

7a Para além do mais o artigo 97.° do Regulamento do Plano Director Municipal do Funchal, que entrou em vigor no dia 7 de Abril de 2018, permite a legalização pela Câmara Municipal desta edificação, o que se reconduz à “impossibilidade absoluta” a que se refere o artigo 163.°, n.° 1, do CPTA conceito que, pode também ser integrado por uma impossibilidade jurídica.

8a As circunstâncias factuais descritas, a não serem fundamentos que obstam à declaração de nulidade, são, claramente, fundamentos que obstam ao cumprimento de uma sentença que a declare.

9a Constituindo situações de impossibilidade absoluta que poderão e deverão ser reconhecidas desde já, em sede declarativa.

10a Razão pela qual, o Tribunal a quo ao concluir pela procedência dos vícios imputados ao ato impugnado e ao considerar que da respetiva verificação resulta a sua nulidade, sempre deveria decidir pela existência de uma situação de impossibilidade absoluta, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 45.°, n.° 1, do CPTA.

11a A sentença recorrida violou os artigos 134.°, n.° 3, do CPA de 1991 (cujo teor é hoje reforçado pelo artigo 162.°, n.° 3, do CPA de 2015) e o artigo 45.°, n.° 1, do CPTA (…).»


Os Contrainteressados nos autos, optaram por não contra-alegar.

O MP junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, A. nos autos, contra-alegou, concluindo, por seu turno, como se segue – cfr. fls. 201 e ss., ref. SITAF:
«(…)
1 - A sentença recorrida declara a nulidade de ato praticado, nos exatos termos do que lhe foi peticionado, não condenando o Município/recorrente a prestar qualquer facto.
2 - O tribunal estriba a sua decisão na violação de normas de licenciamento de urbanismo, existentes à data de emissão do alvará de obras datado de 2003, considerando tratar-se de construção de nova moradia.
3 - Do alvará em causa consta, além do mais, que “A moradia existente será totalmente destruída construindo-se assim a moradia que se apresenta em anexo...”, não havendo no processo administrativo do licenciamento documentação acerca da anterior moradia e dos respetivos índices de construção.
4 - A decisão proferida não reflete sobre consequências da passagem do tempo na situação de facto consolidada desde 2003, nem sobre outros princípios de direitos fundamentais, para além do princípio da legalidade.
5 - O regime da nulidade dos atos administrativos, existente à data da prática do ato declarado nulo, comporta exceções, designadamente o disposto no art.° 134.°. n.° 3 do CPA de 1991, de harmonia com os princípios fundamentais de direito, designadamente os princípios elencados nos primeiros artigos desse Código.
6 - A evolução normativa sobre a matéria em apreciação vai no sentido de permitir a legalização de situações semelhantes, preenchidos certos requisitos, designadamente nos termos do atual art.° 97.° do PDM.
7 - A força da simples passagem do tempo é de considerar, por ter estribo legal no direito administrativo operar em múltiplas realidades da ordem jurídica, mormente no direito penal onde se avaliam as mais desvaliosas condutas, tendo em conta que mais de 18 anos desde a emissão do alvará e 13 anos para decidir a nulidade, resultou na evolução do quadro normativo relevante e aumentou o clamor e as críticas de morosidade da justiça.
(…)»

Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões a decidir, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito em virtude de ter desconsiderado o «hiato temporal entretanto decorrido, o enquadramento da edificação na envolvente respeitando os alinhamentos e a volumetria predominantes das edificações contiguas, a ausência de riscos para a segurança, saúde, salubridade e meio ambiente e a confiança depositada pelos compradores do imóvel», motivos que, no entender do Recorrente Município, sempre justificariam uma de duas decisões:

i) abster-se o tribunal a quo de declarar a nulidade do ato de licenciamento sub judice, «à luz dos princípios da proporcionalidade e da boa fé, com afloramentos legais de relevância muito particular em matéria de Direito do Urbanismo, maxime através do disposto nos artigos 134.°, n.° 3, do CPA de 1991 (cujo teor é hoje reforçado pelo artigo 162.°, n.° 3, do CPA de 2015) e do artigo 69.°, n.° 4, do RJUE.»; ou, em alternativa,

ii) aplicação do mecanismo de convolação do objeto do processo previsto no art. 45.º do CPTA, verificada que entende estar uma situação de impossibilidade absoluta, que, no caso dos autos, permitindo «o artigo 97.° do Regulamento do Plano Director Municipal do Funchal, que entrou em vigor no dia 7 de Abril de 2018, (…) a legalização pela Câmara Municipal desta...

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