Acórdão nº 461/23.0T8VCD.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2024-01-25

Data de Julgamento25 Janeiro 2024
Ano2024
Número Acordão461/23.0T8VCD.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2023:461/23.0T8VCD.P1




Acordam no Tribunal da Relação do Porto


1. Relatório

AA, com sede na Avenida ..., ..., ... Vila do Conde, instaurou acção de tutela de personalidade contra BB, residente na Travessa ..., ..., onde concluiu pedindo a condenação do Réu a abster-se de entrar no domicílio da Autora, nomeadamente na garagem que faz parte do mesmo, a abster-se de aceder, seja por que forma for, à caixa de correio da Autora, bem como a apropriar-se (ou ler) da correspondência desta, a abster-se de dirigir a palavra à Autora, bem como na sanção pecuniária compulsória não inferior a € 5.000,00 por cada infracção.
Alegou, em síntese, que a Autora e o Réu foram casados, encontrando-se divorciados desde 20/10/2020.
Acrescentou que, no âmbito do processo de divórcio a casa de morada de família ficou entregue à Autora até à respectiva partilha.
Mais alegou, que o Réu ainda detém as chaves do bem imóvel e que tem vindo a aceder à residência da Autora, levando ao seu interior pessoas que a Autora desconhece.
Acrescentou que o Réu acede a todas as divisões do bem imóvel, apregoando que a casa é sua e que a pode frequentar livremente, apropria-se da correspondência da Autora, acedendo para o efeito à respectiva caixa de correio e dirige-se à Autora com expressões ofensivas.
Mais alegou, que a conduta do Réu causa-lhe desassossego, encontrando-se abalada psicológica e emocionalmente.
*
Citado, o Réu contestou.
Alegou, em síntese, que exerce, na garagem do imóvel, actividade de pintura e chaparia automóvel.
Acrescentou que, no âmbito do acordo de divórcio, foi referido que o acesso do Réu à referida garagem não perturbaria a manutenção da Autora na sua residência, sendo, ainda, certo que o exercício da referida actividade pelo Réu é necessária para o mesmo custear as suas despesas mensais.
No demais, nega os restantes factos alegados pela Autora.
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Saneado o processo, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades prescritas na lei.
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Após a audiência de julgamento foi proferida sentença, na qual se decidiu:
a) Condenar o Réu, BB, a abster-se de entrar no domicílio da Autora, AA, sito na Avenida ..., ..., ... Vila do Conde, designadamente na respectiva garagem, a partir do fim do quinto dia após o trânsito em julgado da decisão;
b) Condenar o Réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de €75,00 por cada acesso do Réu ao domicílio (onde se inclui a garagem) da Autora sem autorização desta, e,
c) Absolver o Réu do demais peticionado.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio o Réu BB interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluiu da seguinte forma:
I.A sentença proferida à data de 11 de Setembro de 2023 julgou procedente o pedido formulado pela Autora, condenando o Réu a abster-se de entrar no domicílio daquela, designadamente, na respetiva garagem.

II. Para tanto, considerou o tribunal a quo que o facto de o Réu continuar a frequentar aquela habitação para prestar os seus serviços de chaparia e pintura e o facto de daí derivarem ruídos numa frequência diária, violou o direito da Autora à tranquilidade, à vida privada, ao sossego e saúde mental.

III. Crê o douto tribunal estar em causa uma ofensa à proteção que a CRP confere aos cidadãos através dos artigos 25.º (direito à integridade pessoal) e 34.º (inviolabilidade do domicílio).

IV. Nesse sentido, e perante a colisão de direitos em apreço, julga prevalecentes os direitos da Autora, que se integram na categoria dos primados direitos, liberdades e garantia, em detrimento do direito ao trabalho que pretende o Réu fazer-se valer, que mais não é do que um direito económico, social e cultural.

V. O ora Recorrente não se pode conformar com tal decisão, considerando que aquela padece de erro de julgamento relativamente à matéria de facto e de erro no que respeita à aplicação do Direito.

VI. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova produzida, valorando as declarações subjetivas e pouco isentas prestadas pela Recorrida e pela testemunha por si arrolada ao processo, e desconsiderando a prova testemunhal que de modo espontâneo e coeso é apresentada pelo Recorrente.

VII. Atentas as declarações prestadas pelas testemunhas, não poderiam ter sido dados como provados os factos vertidos nos pontos 4), 9) e 15) da matéria de facto dada como provada,

VIII. Nem deveria ter sido elencado como não provado o facto vertido em 8) da matéria de facto não provada.

IX. Isto porquanto, em primeiro lugar, resulta de modo evidente que efetivamente, no momento do divórcio, tenha existido um acordo relativamente à utilização e entrega da casa de morada de família.

X. Embora, neste âmbito, o douto tribunal tenha fundado a sua decisão na argumentação apresentada pela Recorrida, nomeadamente, que a meritíssima juiz permitiu a contínua utilização pelo Réu da garagem pertencente à habitação porque cria que aquela estava distanciada da respetiva residência,

XI. Tal argumento não parece credível visto que o habitual é as garagens serem contíguas ou adjacentes à habitação a que servem.

XII. Além disso, se fosse esse o caso, e fossem prédios distintos ou afastados, o Recorrente não faria questão de evidenciar a necessidade e a importância de prosseguir a sua atividade naquela residência depois de nela cessar o seu domicílio.

XIII. Atente-se, deste modo, no depoimento prestado pela Recorrida (em audiência de julgamento entre as 15:49h e as 16:19h (00:30:44), correspondente ao Ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_15-49-03”):
Recorrida: A Dra. Juíza disse-lhe que ele não poderia usufruir mais da casa onde eu coabito, onde eu como, onde eu vivo, onde eu durmo, tudo, tudo. E ele disse “Ah, sim, Sra. Dra., mas eu precisava de ir lá à garagem, tenho lá umas coisitas” e ela disse assim “e você ir à garagem não interfere nada com a Sra. AA?” e ele disse “não”. 00:09:43
Recorrida: E o que a Juíza disse foi “sim, se o Sr. BB não se cruza com a Sra. AA enquanto tem que ir lá à garagem fazer lá essas ditas coisas, pronto, tudo bem”. 00:10:29

XIV. Bem como nas do próprio Recorrente, que alega nunca ter sido proibido de entrar na garagem nem nunca lhe terem sido solicitadas as chaves do imóvel (conforme depoimento prestado em audiência de julgamento datada de 29 de Junho de 2023, entre as 15:15h e as 15:44h (00:29:27), correspondente ao Ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_15-15-08”):
Réu: Foi um acordo que nós na altura quando foi o divórcio, concordou-se a praticamente ir lá só quando necessariamente… ou ir à casa de banho, deixei de residir lá porque pronto (…) Nunca fui proibido de nada, de entrar dentro de casa nem nada, a juíza é que me disse que eu tinha na mesma acesso à habitação. Nunca fui proibido de nada. 00:06:19
Réu: E o Dr. sabe, na altura quando foi aqui o acordo do divórcio ninguém me pediu para entregar a chave nem impediu de entrar dentro da residência. 00:14:17
Réu: Concordamos eu deixar de residir na moradia, não comer nem dormir lá dentro, mas ter acesso à garagem e às ferramentas (…). 00:21:55
Réu: Foi decretado isso, que eu podia utilizar a minha moradia para trabalhar (…). 00:22:25

XV. O que sempre relevará para a apreciação da questão que ora nos ocupa, sendo certo que a possibilidade de continuar a exercer sua atividade profissional naquele espaço foi condição necessária para a aceitação por parte do Recorrente respeitante à entrega do domicílio à Recorrida.

XVI. Pois, tal como refere, não tem possibilidade de efetuar aqueles trabalhos noutro local, inclusive na casa onde atualmente habita.
Vejamos:
Réu: Não, não, não tenho. Não tenho condições e ali é o sítio que eu estou desde que tive este problema de saúde, eu já estou há 14 anos em casa, nos meus biscatitos. 00:18:47
Réu: Não, não, o que está em serviço para se poder estar é a habitação, o resto está tudo ao abandono, uma casa que já tem 60 e tal anos, antigas explorações agrícolas, está tudo em terra, não tem condições para trabalhar lá. (…) não tenho outro meio. 00:26:08
Réu: Não, não (…) está tudo degradado, tudo velho, tudo estragado, não tenho condições para fazer lá nada, nada, está tudo… 00:28:55

XVII. Sendo tal prestação de serviços e o vencimento que daí advém imprescindíveis para a sua subsistência, pois que laborar a partir da sua habitação se tornou a opção mais exequível a partir do momento em que lhe foi diagnosticada uma incapacidade resultante de uma doença oncológica.

XVIII. Acresce que também não existem elementos probatórios que nos permitam concluir que o Recorrente autoriza a entrada de terceiros (quer sejam desconhecidos da Autora ou não) na sua garagem em função dos serviços que efetua, indicando o próprio que recebia os seus clientes na rua, transportando posteriormente, sozinho, os respetivos veículos para o interior da propriedade para iniciar o seu trabalho:
Réu: Não vão, não dou autorização de nada. E praticamente eu atendo as pessoas cá fora, não dentro de casa, fora, na rua (…) e falo cá fora com as pessoas e depois eu cá dentro eu levo o carro e trabalho cá dentro. 00:14:35

XIX. O que as próprias testemunhas acabam por confirmar, sendo que a testemunha CC (audiência de julgamento datada de 29 de Junho de 2023 entre as 16:33h e 16:39h (00:05:45), correspondente ao ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_16-33-37”) refere nunca ter entrado lá dentro, ao passo que a testemunha DD (depoimento prestado entre as 16:40h e as 16:53h (00:12:57), correspondente ao ficheiro de Áudio “Diligencia_461-23.0T8VCD_2023-06-29_16-40-11”) refere ter entrado naquela garagem - e só na garagem, nunca no interior da casa - em tempos, o que não faz há muitos meses:
Testemunha CC: (…) Nunca entrei lá dentro, na casa dele não. 00:01:52
Testemunha CC: Nunca entrei na casa dele. 00:04:08
...

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