Acórdão nº 429/20.8JACBR.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 17-03-2022
Data de Julgamento | 17 Março 2022 |
Ano | 2022 |
Número Acordão | 429/20.8JACBR.C1 |
Órgão | Tribunal da Relação de Coimbra - (VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J3)) |
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. AS DECISÕES RECORRIDAS
1.1. No processo comum colectivo n.º 429/20.8JACBR do Juízo Central Criminal da Comarca de Viseu (Juiz 3), por acórdão datado de 3 de Dezembro de 2021, foi decidido:
a)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso real efectivo, de:
· 14 (catorze) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena individual de 2 (dois) anos de prisão;
· 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, nº2, do CP, na pena individual de 5 (cinco) anos de prisão;
· 6 (seis) crimes de violação sexual agravada, previstos e punidos pelos artigos 164°, nº2, al. b), na versão da Lei nº 83/2015, de 05.08, vigente à data dos factos, e 177.º, nº 6, ambos do CP, na pena individual de 4 (quatro) anos de prisão;
· 2 (dois) crimes de actos sexuais com adolescentes, previstos e punidos pelo artigo 173º, n.º 1 do CP, na pena individual de 9 (nove) meses de prisão;
· Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares de prisão condena-se o arguido na pena única de 12 (doze) anos de prisão efectiva.
b)- Arbitrar a título de indemnização civil à menor BB a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros) e consequentemente condenar o arguido/demandado a pagar-lhe esse montante.
1.2. Entretanto, e durante o julgamento, o arguido veio requerer a inquirição da ofendida BB em audiência de julgamento, muito embora ela tivesse prestado declarações para memória futura em 4.6.2020, nos termos do disposto no artigo 271º do Código de Processo Penal - sobre esse requerimento, veio o Colectivo, após deliberação, e por despacho datado de 7 de Outubro de 2021, decidido indeferir a requerida prestação de declarações da ofendida em sede de julgamento.
2. OS RECURSOS
2.1. Inconformado, o arguido AA recorreu da decisão interlocutória de 7/10/2021 para esta Relação, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição sem bold ou sublinhados):
· «Desde junho de 2020 que se encontra em curso processo-crime contra AA, arguido que vem indiciado da alegada prática de 13 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, (até ao Verão de 2017), 6 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, (após o Verão de 2017 e até a alegada vítima atingir os 14 anos de idade) e 5 crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 3, e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal (desde os 14 anos até ao dia da detenção), contra a sua sobrinha, BB.
· Desde o início da fase Inquérito até à presente fase de Julgamento em que o processo se encontra que o arguido colaborou com a Investigação, apesar de se sentir francamente intimidado pela própria condução da Investigação, vendo dificultado o exercício pleno do seu direito de defesa.
· Foi proferido Despacho de Acusação, sustentando a prática pelo arguido dos crimes de que vem indiciado, socorrendo-se dos seguintes meios de prova: (i) declarações para memória futura prestadas pela vítima, no dia 4.6.2020; (ii) cópia das mensagens trocadas entre a BB e a sua Professora, constante de fls. 93 verso-96; (iii) depoimento da vítima, constante de fls. 125-139; e (iv) documento escrito entregue pela ofendida ao Tribunal no dia 4.6.2020, constante de fls. 46-47.
· Contudo, da análise desses meios de prova, sobretudo do depoimento da vítima prestado perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, das declarações para memória futura, prestadas pela vítima perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, da correspondência eletrónica trocada com a Professora da disciplina de ... e do escrito de fls. 46-47, entregue ao Tribunal no dia 4.6.2020, resulta precisamente o oposto, sendo, por demais, manifestas as contradições em que incorre a vítima e que injustamente servem de fundamento à privação da liberdade do arguido.
· Contradições estas tão evidentes e inequívocas que em nada corroboram a veracidade e a credibilidade do seu depoimento, justificando, por isso, que a mesma venha a esclarecer a versão dos factos por si trazida aos Autos em sede de audiência de julgamento. Só, assim, se podendo alcançar a descoberta da verdade material.
· A vítima consegue apresentar versões completamente diferentes, num curtíssimo espaço de tempo... o que em nada a parece constranger..., sendo visível que, a partir da linguagem empregue pela mesma, nos escritos da sua autoria, ao contrário do arguido, a vítima é uma pessoa inteligente, dotada de um grau de instrução e erudição elevado.
· Conforme demonstrado, a vítima incorreu em graves e manifestas contradições, designadamente quanto (i) à possibilidade de ser virgem e nunca ter tido relações sexuais; (ii) à possibilidade de nunca ter tido qualquer namorado; (iii) à possibilidade de ter tido relações sexuais com o tio, ora arguido, designadamente cópula vaginal, sexo oral e introdução dos dedos na vagina; e (iv) à possibilidade de ter resistido aos supostos e alegados “intentos” do tio, ora arguido.
· O arguido decidiu não requerer a abertura da fase de Instrução, por forma ao processo avançar para a fase de Julgamento, uma vez se encontrar privado da sua liberdade.
· Apresentou a sua Contestação, (i) alegando, em suma, não ter praticado os factos constantes da Acusação nem os crimes que lhe são imputados; (ii) salientando as evidentes, inequívocas e manifestas contradições em que a ofendida incorre ao longo de todo processo, quanto aos factos denunciados e factos da sua vida pessoal com relevância para os presentes Autos; (iii) denunciando todo o circunstancialismo ocorrido desde a sua detenção pela Polícia Judiciária até à fase em que os Autos se encontravam, alertando para o evidente e ilegítimo coartar do seus direito e garantias de defesa; (iv) apresentando os seus meios de prova, requerendo prova pericial, nomeadamente perícia médico-legal psiquiátrica e à personalidade da ofendida, a realizar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, e apresentando o respetivo rol de testemunhas.
· Neste último âmbito, solicitou a inquirição da ofendida como testemunha ou, para a eventualidade de o Tribunal assim não o entender, a sua inquirição como ofendida sobre toda a matéria constante do Despacho de Acusação e da Contestação.
· No dia 10.11.2020, foi proferido Despacho, admitindo a contestação e o rol de testemunhas apresentado, tendo a digna Magistrada do Ministério Público, em 12.11.2020, se pronunciado no sentido de nada ter a opor quanto à realização das perícias requeridas, mas no sentido de ser de indeferir a audição da ofendida, por não se verificar o condicionalismo previsto no artigo 271.º, n.º 8, do CPP.
· Segundo o preceito invocado, “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores (declarações para memória futura, acrescentado nosso) não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar”.
- Os depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de julgamento não conseguiram esclarecer as discrepâncias e contradições presentes na versão dos factos trazida aos Autos pela ofendida.
- Como tal, por ser absolutamente crucial ao apuramento da verdade material, em 4.6.2020, o arguido requereu na sessão da audiência de julgamento do dia 13.7.2021 a inquirição da ofendida BB em sede de audiência de julgamento, à luz do disposto nos artigos 271.º, n.º 8, e 340.º do CPP, com fundamento na imprescindibilidade da sua realização, tendo em conta a descoberta da verdade material, a qual só dessa forma poderá ser esclarecida, reiterando-o no seu requerimento do dia 23.7.2021, com a referência ....
- Fazendo crer que o confronto entre o direito fundamental da vítima de alegados abusos sexuais à reserva da sua privacidade/não exposição, protegido pelo instituto das declarações para memória futura, e o direito fundamental do arguido à sua defesa se encontra facilmente dirimido pelas disposições legais invocadas, quando, na verdade, a Lei Fundamental Portuguesa resolve esse conflito a favor do arguido, segundo a máxima estruturante do processo penal do in dúbio pro réu e da presunção de inocência. Tal Despacho viola, por isso, o disposto nos artigos 32.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e 271.º, n.º 8, e 340.º do CPP. Razão pela qual o arguido, não se conformando com o teor de tal de Despacho, interpôs o presente Recurso.
- No decurso dos presentes Autos, verificaram-se várias situações de violação do direito e garantias de defesa do arguido, designadamente (i) no momento da sua detenção, (ii) no momento subsequente à sua detenção, quanto (iii) à proibição de contactar a sua família e à irregular constituição de Advogado, (iv) ao exercício de coação sobre o arguido, (v) à condução do seu interrogatório em sede de audiência de julgamento e (vi) ao indeferimento da prestação de declarações por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento.
- Quanto ao momento da sua detenção, AA foi procurado na sua residência e no seu local de trabalho, por agentes da Polícia Judiciária, supostamente com a finalidade de os ajudar a identificar uma viatura, no posto...
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