Acórdão nº 4156/21.0T9AVR-A.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 09-03-2022

Data de Julgamento09 Março 2022
Número Acordão4156/21.0T9AVR-A.P1
Ano2022
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Processo: 4156/21.0T9AVR-A.P1

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO:
No âmbito do inquérito n.º 4156/21.0T9AVR, do qual foi extraída a certidão que integra os presentes autos, por despacho judicial, proferido em 03-02-2022, não foi atendido o requerimento do Ministério Público para declarações para memória futura da ofendida.
Inconformado com o aludido despacho, o Ministério Público interpôs o presente recurso, que rematou com as seguintes

CONCLUSÕES:
1. Na sequência de requerimento para tomada de declarações para memória futura de vítima de crime de abuso sexual de crianças, a Mma. JIC entendeu ser legalmente de ordenar ao Ministério Público "apresentar/descrever ao quadro fáctico sobre que a mesma deverá incidir".
2. Conforme decisões de Tribunais da Relação, incluindo dessa Relação do Porto em recurso em tudo semelhante já deste Ministério Público, nada na lei processual penal impõe, pela especificidade da diligência e pela fase processual em que ocorre, a descrição do quadro factual sobre que essa diligência deve incidir, não sendo legítimo exigir o cumprimento de um formalismo que a lei não prevê nem exige.
3. O enquadramento factual ao estilo de uma informação circunstanciada/factos imputados não tem aqui lugar, na medida em que não se trata de imputação de factos a um arguido dos quais ele necessite de se defender, pelo que não é o exercício do contraditório pelo arguido que deve estar na base da exigência de enquadramento factual.
4. Tratando-se de fase de inquérito, pode nem sequer existir arguido, servindo a diligência também para habilitar o MP, juntamente com outras provas recolhidas, à decisão de arquivar, suspender provisoriamente o processo ou acusar, desde logo podendo afirmar-se que o quadro factual não se encontra consolidado, daí a importância da diligência de tomada de declarações para memória futura da vítima.
5. Caso o MP efetuasse o pretendido enquadramento factual, assim delimitando o objeto do processo como parece estar a ser exigido, poderia isso dar azo ao entendimento que tudo o que fosse para além desses limites na tomada de declarações para memória futura poderia convocar, pela defesa e/ou JIC, argumentação que eventuais factos dali não constantes extravasariam o objeto do processo e, como tal, não poderiam ser tidos em conta.
6. Um entendimento deste tipo seria totalmente constritor da descoberta da verdade, atendendo aos objetivos da diligência e situando-se ainda na fase de inquérito, o que de todo não poderá ser o objetivo da lei.
7. Nesse seguimento, esse enquadramento factual ou "muleta", na expressão do Tribunal da Relação de Coimbra, apresenta-se como desadequado, podendo a diligência requerida fundamentar, não uma acusação, mas antes um arquivamento dos autos, pelo que, nesse âmbito, nem sequer haveria lugar para qualquer imputação de factos.
8. Os elementos constantes do inquérito devem servir de peças orientadoras que contêm factos para a diligência e são mais do que suficientes para servir de guião e ponto de partida à mesma e bem assim para que a Mma. JIC fique habilitada a efetuar as questões pertinentes, em ato processual por si presidido.
9. O requerimento de tomada de declarações para memória futura efetuado pelo Ministério Público encontra-se suficiente e devidamente fundamentado, tanto do ponto de vista factual, de facto e de direito.
10. Ao decidir como decidiu, a Mma. JIC violou o disposto nos artigos 48º, 262º, n.º 1, 267º, 268, n.º 1, alínea f); 271º, n.ºs 1, 2 e 5 do CPP, e o artigo 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
11. Devendo, em consequência, ser o despacho colocado em crise revogado e substituído por outro que determine a realização da requerida tomada urgente de declarações para memória futura da criança vítima, sem necessidade de efetuado qualquer enquadramento fáctico por parte do Ministério Público.

Contudo, V. Exas. Farão JUSTIÇA.
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Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, alegando que o recurso está bem estruturado e fundamentado e que assiste razão ao Ministério Público.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
A. DESPACHO RECORRIDO (DE 03-02-2022):
Considerando a finalidade processual da tomada de declarações para memória futura (antecipação do momento de produção da prova pertinente à audiência de julgamento), a circunstância de que a inquirição ser levada a cabo pelo Juiz e as restrições processuais estabelecidas no art. 356.º, do cód, proc. penal - cuja manutenção da operacionalidade processual se nos antolha incontroversa -, impõe-se o Ministério Público apresentar/descrever ao quadro fáctico sobre que a mesma deverá incidir.
Este quadro factual constituirá e definirá o tema de prova e, somente através do conhecimento dele, poderá o direito de defesa do arguido ser materialmente exercido e o processo ser verdadeiramente equitativo.
Não se descortinado nos autos qualquer impedimento ou impossibilidade para tal definição factual de concretizar, ordeno a devolução dos autos ao Ministério Público para cumprimento do ora determinado, a fim de, subsequentemente, se proceder à designação de data para a tomada das declarações pretendidas.
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Notifique.
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B. REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO (DE 28-01-2022):

Compulsados os autos, verifica-se que AA tinha, à data dos factos, 5 anos de idade e terá sido vítima isso que se averigua nos autos) de crime contra a liberdade sexual, mais propriamente crime de abuso sexual de crianças, pelos factos constantes, essencialmente das denúncias e perícia que aqui se dão por reproduzidos na íntegra para todos os efeitos legais.
Estabelece o artigo 271.º, n.º 1 a 5 do Código de Processo Penal, (declarações para memória fritura) que:
“1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.”
O artigo 56.º da Convenção de Istambul, sob a epígrafe “Medidas de proteção”, estabelece que:
As Partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para proteger os direitos e interesses das vítimas, incluindo as suas necessidades especiais enquanto testemunhas, em todas as fases das investigações criminais e dos processos judiciais, o que implica designadamente:
a) Providenciar no sentido de as proteger a elas e às suas famílias e às testemunhas contra atos de intimidação e de represália, bem como contra a vitimização reiterada;
b) Em caso de fuga ou libertação temporária ou definitiva do perpetrador, garantir que as vítimas sejam informadas, pelo menos quando as vítimas e a família possam estar em perigo;
c) Informá-las, nas condições previstas pelo direito interno, sobre os seus direitos e os serviços colocados à sua disposição, sobre o seguimento dado à sua queixa, a pronúncia, o andamento da investigação ou do processo, o seu papel no âmbito dos mesmos, bem como sobre o resultado do seu processo;
d) Dar às vítimas, em conformidade com as normas processuais do direito interno, a possibilidade de serem ouvidas, fornecerem elementos de prova e apresentarem, diretamente ou através de um intermediário, as suas opiniões, necessidades e preocupações e estas serem tidas em conta;
e) Disponibilizar às vítimas serviços de apoio adequados para que os seus direitos e interesses sejam devidamente apresentados e tidos em conta;
f) Providenciar no sentido de poderem ser adotadas medidas de proteção da privacidade e da imagem da vítima;
g) Sempre que possível, providenciar no sentido de impedir o contacto entre as vítimas e os perpetradores dentro dos tribunais e das instalações dos serviços responsáveis pela aplicação da lei;
h) Assegurar às vítimas o serviço de intérpretes independentes e competentes, quando elas são parte no processo ou quando estão a apresentar elementos de prova;
i) Permitir que as vítimas testemunhem em tribunal, em conformidade com as regras previstas no direito interno, sem estarem presentes, ou pelo menos sem que o presumível autor da infração esteja presente, nomeadamente através do recurso às tecnologias de comunicação adequadas, se as mesmas estiverem disponíveis.”
Perante as circunstâncias do crime, o tempo decorrido e a eventual dedução de acusação e prazos para abertura de Instrução, a oportuna marcação de julgamento e a realização do mesmo, existe uma real possibilidade de, prosseguindo os autos nesses termos, se perderem cada vez mais elementos que podem revestir importância para os
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