Acórdão nº 400/22.5T8GRD-A.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2022-09-13

Ano2022
Número Acordão400/22.5T8GRD-A.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 29.3.2022, o Ministério Público[1] veio propor o presente procedimento de entrega judicial da criança AA, com residência habitual na Av. ..., ... ..., Bélgica, contra BB, casada, atualmente a residir na Rua ..., ..., ....

Alegou, em síntese: o menor nasceu .../.../2021, em ..., na Bélgica; é filho da requerida e de CC, casados entre si, residindo com o AA, na Bélgica, na morada acima identificada; trabalham na Bélgica, sendo que o pai é médico e a mãe é enfermeira; no dia 13.02.2022, a progenitora viajou para Portugal com o AA, para uma visita de cerca de duas semanas aos seus familiares, ficando acordado entre os progenitores do AA, que o pai viria a Portugal no dia 21 de fevereiro e regressariam os três à Bélgica; a progenitora algumas horas antes do regresso, informou o progenitor que nem ela nem o filho regressariam à Bélgica; a Autoridade Central Portuguesa (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais/DGRSP) tentou o regresso voluntário da criança à Bélgica, sem sucesso; a permanência do menor em território português deve considerar-se ilícita por ofensa do direito conjunto das responsabilidades parentais durante o casamento; a violação desse exercício conjunto, expressamente prevista no art.º 3º da Convenção de Haia, impõe que o Tribunal adote procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança à sua residência habitual, para que fique à guarda de ambos os pais.

Concluiu, pedindo que fosse ordenado: a) A entrega voluntária do menor; b) Não sendo a mesma possível, o prosseguimento dos autos para apreciação do requerimento do progenitor; c) A suspensão da Ação de Regulação das Responsabilidades Parentais/R (processo 400/22.5T8GRD), de acordo com o disposto no art.º 16º da Convenção de Haia.

Por despacho de 30.3.2022, foi determinada a alteração da forma de processo (para “processo de entrega judicial de menor”) e a autuação por apenso aos referidos autos de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais.

A requerida prestou declarações e prescindiu do prazo para contestar (cf. ata de 01.4.2022[2]).

Após a promoção da Exma. Magistrada do M.º Público, de 05.4.2022, a pronúncia dos progenitores e a junção de cópia de duas decisões proferidas pelos Tribunais Belgas (a 01.4.2022 e 04.4.2022) (cf. fls. 40, 42, 50, 52 e 69), por sentença de 04.5.2022, o Tribunal a quo decidiu: decretar a entrega imediata do menor AA ao seu país de residência, diligenciando-se pela sua entrega à pessoa do progenitor; sem prejuízo, caso a progenitora esteja na disponibilidade de viajar com o AA para a Bélgica, onde tinha uma vida profissional estável, contacte as autoridades belgas para criar as condições da progenitora regressar àquele país em segurança e lhe sejam concedidos todos os apoios existentes no âmbito da proteção das vítimas de violência doméstica naquele país.

Inconformada, a progenitora/requerida apelou formulando as seguintes conclusões:

1ª - Existem elementos de facto que permitam considerar preenchida a alínea b) do art.º 13º da Convenção de Haia de 1980 Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, que consagra exceção ao princípio do regresso imediato da criança.

2ª - O pai do menor sempre manifestou desinteresse pelo filho. As referências afetivas com o pai são mínimas ou inexistentes. No pós-parto nunca auxiliou a Requerente com o que quer que fosse, nunca se disponibilizou a ir às consultas com o menor, não manifesta interesse em brincar com filho, não prepara a alimentação para o filho (sendo que estão a ser introduzidos os alimentos líquidos e sólidos), raramente deu banho ao filho, não o veste para ir para a creche, não passeia com o filho. A mãe do menor sofre violência física e psicológica por parte do seu marido e pai do menor, o que sucede, com particular incidência, desde o nascimento do menor.

3ª - A requerida não pode regressar à Bélgica devido aos comportamentos abusivos e ilícitos de que é alvo por parte do marido, sendo em Portugal (na ...) que se encontra protegida e no seu seio familiar. A requerida teme pela sua própria vida. Reconhece que os maus tratos de que é alvo por parte do pai do menor são prejudicais ao desenvolvimento saudável e segurança do menor.

4ª - Considerando que está envolvida uma criança e que pode haver risco grave para esta de ficar sujeita a perigo, quer de ordem psíquica quer de ordem física, no seu regresso, podendo ainda este constituir uma situação intolerável para a mesma, criou a Convenção a válvula de segurança consagrada no art.º 13º, alínea b) e bem assim a prevista no art.º 12º.

5ª - O TEUDH, no Acórdão proferido pela 1ª Secção, no Processo n.º 66775/11, a 05.02.2015, decidiu que a Convenção de Haia deve ser aplicada de acordo com os princípios de direito internacional, em particular os relativos à proteção internacional dos direitos do homem e, no que respeita mais precisamente às obrigações positivas que o art.º 8º, n.º 2 da Convenção Europeia. No referido aresto aponta-se como linhas a seguir a definição do justo equilíbrio que deve existir entre os interesses concorrentes dos progenitores, da ordem pública e os interesses da criança, sendo que a prevalência é a do «interesse superior da criança.»

6ª - Se é certo que resulta dos autos que o menor reconhece o pai e que este nunca o maltratou fisicamente, também se provou que o pai desde fevereiro nunca visitou o filho em Portugal. É a requerida que, todos os dias, informa o pai das atividades do menor, enviando-lhe, também, fotografias. Também ficou provado que o menor tem um forte relacionamento afetivo com a mãe, depreendendo-se, facilmente, do contexto factual que a mãe tem sido a principal cuidadora da criança.

7ª - Esta vinculação da criança à figura da mãe que, logo após o nascimento, no confronto com a instabilidade decorrente da situação de violência e maus tratos físicos e psicológicos perpetrados pelo pai do menor, cuidou do filho a tempo inteiro e ponderada a não contribuição ativa do pai para demonstrar que tem uma vinculação real, efetiva permanente, altruísta, consistente e securitária com condições reais de apoio ao filho (vinculação essa que a ser demonstrada afastaria a alegação da mãe de que é a figura mais próxima), levam-nos a ponderar que é sério e grave o risco de elevado sofrimento e desequilíbrio emocional para a criança, consequência do seu forçado afastamento da mãe de tal modo que um tal sofrimento constitui uma situação que não deve razoavelmente impor ao filho.

8ª - A violência verbal e psicológica exercida recorrentemente por um progenitor sobre o outro, na presença dos filhos constitui também ela uma forma de violência sobre os próprios filhos, prejudicial ao seu são e normal desenvolvimento. 9ª - Não obstante o art.º 12º, n.º 1 da Convenção consagrar como pressuposto que entre a data da deslocação ilícita e o início do processo tenha decorrido menos de 1 ano, o certo é que este período de tempo não deve deixar de balizar como pressuposto fáctico outras ponderações necessárias, como sejam as que ora se impõem. O AA reside com a mãe e os avós maternos numa habitação com todas as comodidades, apresentando-se sempre bem cuidado e tendo tido uma boa integração. O fim deste processo não é determinar o modo como as responsabilidades parentais desta criança vai ser definido, mas sim o de restabelecer a licitude sem que daí advenham custos inadmissíveis ou desproporcionados, para o filho. Os fins que norteiam a aplicação da Convenção de Haia cedem na presença de um fim mais relevante e superior, o superior interesse do menor.

10ª - A ligação demonstrada no processo do filho à mãe com quem sempre viveu, levam-nos ao reconhecimento de que neste caso se verifica a situação de exceção do art.º 13º alínea b) do Convenção. O limite do que “razoavelmente a criança deve suportar” conduz-nos ao princípio de que a criança não deve passar por situações de sofrimento, de dor e de perda, sobretudo em casos como o presente em que este sofrimento poderia ser inútil face a uma decisão sempre possível de que viesse a ser atribuída a custódia da criança à mãe.

11ª - Afastar o menor da mãe, a sua figura de referência, não salvaguarda os seus interesses e uma decisão proferida em sentido contrário não terá em conta o interesse superior da criança. Ao interesse superior da criança se refere também o Princípio 2º da Declaração Universal dos Direitos da Criança, estabelecendo que na promulgação de leis que tenham por fim proteger a criança “a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança”. Este princípio foi incorporado no n.º 2 do art.º 24º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, estatuindo que “Todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.

12ª - A proteção dos direitos fundamentais, constitucionalmente, também protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, deve prevalecer sobre quaisquer normas processuais ou procedimentais, ainda que decorrentes de Convenções Internacionais, como sejam as normas definidoras da competência dos tribunais (art.º 8º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

13ª - A decisão recorrida viola as normas constantes dos art.ºs 12º e 13º, alínea b) da Convenção de Haia; Princípio 2º da Declaração Universal dos Direitos da Criança; n.º 2 do art.º 24º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; art.º 8º, n.º 2 da Convenção Europeia; art.ºs 8º, n.º 1, 24º, 25º e 27º da Constituição da República Portuguesa; os princípios norteadores da Convenção de Istambul.

Remata dizendo que deve ser revogada a sentença recorrida, devendo o menor manter-se em Portugal na companhia da mãe.

A Exma. Magistrada do M.º Público respondeu concluindo pela improcedência do...

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