Acórdão nº 386/23.9T8VPV-C.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 05-03-2024

Data de Julgamento05 Março 2024
Ano2024
Número Acordão386/23.9T8VPV-C.L1-1
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes da Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


Maria … apresentou-se à insolvência, tendo deduzido, em simultâneo, pedido de exoneração do passivo restante (peticionando a fixação de um rendimento indisponível nunca inferior a 1.000€)[1].
Por sentença proferida em 24/07/2023, já transitada em julgado, foi a insolvência declarada, tendo sido relegado para momento posterior a apreciação do pedido de exoneração.

Pela Sr.ª Administradora da Insolvência (AI), em 06/09/2023, foi apresentado o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE[2], no mesmo se tendo pronunciado pelo deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Por despacho de 10/10/2023 foi o processo encerrado por insuficiência da massa insolvente – artigos 230.º, n.º 1, al. d), e 232.º, n.º 2.

Em 26/10/2023 foi proferido despacho liminar de admissão do pedido de exoneração, no qual se pode ler:
“(…) quanto ao rendimento a fixar há referir que o montante de um salário mínimo regional (dele se excluindo o subsídio de natal e excedente de IRS, os quais deverão ser cedidos na totalidade) corresponde a um valor de salvaguarda do sustento minimamente digno do devedor, nos termos previstos pelo art. 239.º, n.º 3, al. b), i), do CIRE, pois que este pretende ser o valor correspondente a tal salvaguarda, como decorre do disposto no art. 59.º, da CRP (…). // Em face do exposto, e ao abrigo das normas legais supra citadas, decide-se: // a) Admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante; // b) A exoneração será concedida uma vez observadas as condições previstas no artigo 239.º do CIRE; // c) Determinar que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo, designado período de cessão, o rendimento disponível que a Insolvente venha a auferir será cedido à Sra. Fiduciária (para cujo cargo desde já se nomeia a Ex.ma Administradora de Insolvência), garantindo-se como rendimento da Insolvente o equivalente ao valor de um salário mínimo regional, dele se excluindo os subsídios de natal e excedente de IRS, os quais deverão ser cedidos na totalidade. (…)” (sublinhado nosso).

Inconformada com este despacho, dele interpôs RECURSO a insolvente, tendo formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“a)-O presente recurso vem interposto do despacho com a referência nº 56062320 de 26 de Outubro de 2023, que f‌ixou o rendimento disponível à recorrente, para efeitos do art. 239º CIRE em um salário mínimo regional, dele se excluindo os subsídios de férias, Natal e excedente de IRS, os quais deverão ser cedidos na totalidade;
b)-O despacho recorrido foi proferido no processo de Insolvência, onde foi concedida a exoneração do passivo restante;
c)- O douto despacho ao excluir do rendimento disponível os subsídios de férias, Natal e excedente de IRS foi além do pretendido pelo art. 239º do CIRE;
d)- À recorrente foi concedido 798,00€ de rendimento disponível, uma senhora de 64 anos que aufere apenas 594,48€ de subsídio de desemprego acrescido de 211,54€ de pensão de viuvez, auferindo no total 806,02€, mas no mês que recebe mais um pouco, o mês de férias ou de Natal, onde auferem no total 1017,56€, não obstante tal valor f‌icar aquém do razoável para o seu sustento, montante esse que muitas vezes serve para provisão de despesas, terá de ser cedido ao f‌iduciário os 211,54€ respeitantes ao subsídio do mês de férias, ou de Natal;
e)- A recorrente a 30 de Abril de 2024 deixará de auferir o subsídio de desemprego;
f)- Seguindo o entendimento do Tribunal a quo temos a situação injusta em que é concedido à recorrente 798,00€ de rendimento disponível que auferem apenas 211,54€ mensais, mas no mês de férias, ou de Natal, onde aufere no total 423,08€, não obstante tal valor f‌icar aquém do rendimento disponível mensal, pelo que terá de ser cedido ao f‌iduciário os 211,54€ respeitantes ao subsídio do mês de férias, ou de Natal;
g)- A pensão de viuvez é recebida 14 vezes no ano, não restam dúvidas de que o mínimo necessário ao sustento minimamente digno não deverá ser inferior à remuneração mínima anual;
h)- Os subsídios de férias e Natal são parcelas da retribuição da reforma e não extras para umas férias ou um Natal melhorados;
i)- Não se percebe qual argumento o Tribunal a quo para retirar estes subsídios uma vez que o próprio despacho reconhece como documentalmente demonstrado a situação precária da recorrente, nomeadamente o facto de esta contribuir com 400,00€ mensais para a sua f‌ilha;
j)- A recorrente, a sua f‌ilha, e o seu neto, vivem à margem da pobreza. A recorrente já tem uma idade considerável, contando por vezes com a ajuda de familiares, amigos e assistentes sociais para colmatar a sua situação económica;
k)- Os subsídios de férias e de Natal integram o rendimento disponível do devedor, tal como qualquer outro rendimento, por força do art. 239º/3 do CIRE;
l)- A pretensão da recorrente é suportada pelo disposto no art. 239º do CIRE, que não faz discriminação de rendimentos;
m)-A recorrente apesar de deixar de auferir subsídio de desemprego a 30 de Abril de 2024, qualif‌icará para receber pré-reforma, a qual pretende candidatar-se, mas, no entanto, caso consiga obter tal reforma, o rendimento disponível não será suf‌iciente em certas circunstâncias para abranger este eventual rendimento, em particular nos meses de férias e de Natal;
n)- Ao ser concedido à recorrente a reforma, cujo montantes não podem ser agora previstos, por tal pedido ainda não se ter materializado, mas certamente inferiores à retribuição mínima mensal, na Região Autónoma dos Açores, pelo que é provável que pelo menos no mês de férias que o montante total de rendimento disponível ultrapasse os 798,00€, tendo em conta já aufere 211,54€;
o)- Desta forma f‌ica claro que UM ordenado mínimo regional, para uma pessoa singular, no limiar da pobreza, f‌ixado como o valor de rendimento disponível, não é suf‌iciente para suprir as necessidades do agregado, sem que se ponha em causa sua sobrevivência;
p)- Deverá ter-se em conta que atualmente o valor de rendimento a ser cedido será de 8,02€ mensais (219,56 nos meses de férias e de Natal). Valor esse que jamais satisfará a massa insolvente e que fará toda a diferença na vida da recorrente;
q)- Salvo melhor entendimento, a posição do Tribunal a quo viola o fundamento legal do art. 239º/3 b) do CIRE;
r)- Nos termos do art. 239º/3 b) i) do CIRE integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão nomeadamente, “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”;
s)- Em face das circunstâncias elencadas, e auferindo a recorrente de uma pensão de viuvez no valor de 211,54€, 14 vezes por ano, faz todo o sentido a alteração do rendimento disponível para incluir também o subsídio de férias, de Natal e excedente de IRS; e
t)- Também face às mesmas circunstâncias, tendo em conta que a recorrente é uma pessoa singular, no limiar da pobreza, faz todo o sentido a reconsideração/alteração do valor do rendimento disponível de UM ordenado mínimo regional, para UM ordenado mínimo regional acrescido de 300,00€, para que não seja posta em causa a sua sobrevivência, atentos a dignidade humana como princípio constitucional supremo.
Termos que, ex positis, e nos demais de direito, que V. Exas. mui doutamente melhor suprirão, deve o procedente recurso ser considerado procedente e, por via dele ser substituído o despacho recorrido por outro que determine a alteração do rendimento disponível de modo a incluir os rendimentos do subsídio de férias, Natal e excedente de IRS, assim como o valor do rendimento disponível para UM ordenado mínimo regional acrescido de 300,00€, fazendo-se, assim, a habitual e necessária, JUSTIÇA!”

Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho proferido em 05/12/2023, como sendo de apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II–DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir são:
-Do montante a excluir do rendimento disponível, por ser necessário ao sustento minimamente digno da recorrente;
-Do critério a fixar para o cômputo do valor em causa.

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III–FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

O tribunal recorrido fixou os seguintes factos provados:
1. A Insolvente apresentou-se à insolvência em 11/07/2023.
2. É viúva.
3.Encontra-se desempregada, auferindo, mensalmente, a quantia de € 594,48, de subsídio de desemprego, e, € 211,54, a título de pensão de viuvez.
4.Vive na casa da filha, contribuindo, mensalmente, com € 400,00.
5.Os créditos que a insolvente assumiu estão associados à aquisição de veículo automóvel ao qual prestou fiança.
6.Não tem antecedentes criminais registados.
7.Não beneficiou desta medida no passado.

A tal factualidade adita-se, por relevante e por não ter sido impugnado, o seguinte ponto:
8.–O pagamento do subsídio de desemprego referido no facto n.º 3 iniciou-se em 11/04/2020 e terminará em 10/04/2024 – cfr. declaração de subsídio de desemprego junto com a petição inicial como Doc. 3.

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Fundamentação de direito
Como refere Catarina Serra[3], o instituto da exoneração
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