Acórdão nº 3835/22.0T8VNF.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2023-07-10

Ano2023
Número Acordão3835/22.0T8VNF.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam os Juízes da 1ª Seccão Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Em 17.6.2022 a O..., S.A. requereu a insolvência de AA, alegando em suma, que a requerida lhe era devedora da quantia de € 579.471,35, dívida proveniente de um contrato de mútuo com hipoteca.
A requerida citada deduziu oposição, alegando que não se encontrava impossibilitada de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, e que o valor de um dos imóveis penhorados, avaliado em mais de € 600.000,00 e o saldo de uma conta bancária de que era titular, no valor de € 150.000,00 eram mais do que suficientes para satisfazer o crédito do requerente e da outra credora.
Após julgamento, foi declarada a insolvência da requerida por sentença proferida em 9.8.2022, transitada em julgado, cuja cópia se mostra inserta de fls 2 a 9 destes autos, dando-se aqui o respectivo teor por integralmente reproduzido.
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Em 6 de setembro de 2022, a insolvente requereu a concessão da exoneração do passivo restante, declarando que preenche os requisitos para tal e se dispõe a observar as condições legais exigidas.
Mais alegou, em síntese, que é casada e tem uma filha de 18 anos a seu cargo, a qual presentemente frequenta o ensino superior; é advogada em prática individual e o rendimento anual pelo exercício dessa actividade profissional, que é o único que aufere, ronda os €19.115,15 ( cfr. declaração IRS de 2021); o marido é trabalhador dependente e aufere um rendimento anual de € 13.256,33; padece de uma doença inflamatória crónica, a Doença de Crohn, e tem despesas médicas e medicamentosas relacionadas com tal doença e outras patologias associadas no valor médio mensal de € 636,66; as despesas com a filha rondam os €300,00 mensais; suporta uma renda mensal pelo escritório no valor de € 650,00 e tem outra despesas fixas relacionadas com o escritório, no valor mensal de € 226,02; paga € 35,00 de quota mensal para a Ordem dos Advogados e € 255,18 de contribuição para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, bem como € 16,86 mensais pelo seguro de acidentes de trabalho.
Terminou requerendo que seja proferido o despacho inicial de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante e que ao rendimento disponível sejam deduzidas as despesas mensais fixas elencadas que no total ascendem a € 2.000,00 mensais.
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Em 23. 9. 2022, o Sr. administrador da insolvência apresentou o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, pronunciando-se pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos das alíneas d) e e) do art. 238ºdo CIRE, ao qual a insolvente respondeu em 6.10.2022.
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Os créditos reclamados, reconhecidos e graduados no respectivo apenso ascendem a € 1.281.771,41.
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Em 14.11.2022, foi proferido o despacho inicial que indeferiu liminarmente tal pedido, com fundamento na verificação de factos integradores das alíneas d) e e) do art. 238º do CIRE.
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A insolvente, não se conformando com o decidido, interpôs o presente recurso, terminado as suas alegações, com as seguintes conclusões:

A) A Recorrente não se conformando com a decisão de indeferimento da exoneração do passivo restante proferida no dia 14 denovembrode2022 veio interpor presente recurso.
B) O presente recurso tem como objeto a impugnação da matéria de facto e a errada aplicação e interpretação do artigo 238.º do CIRE.
C) Quanto à impugnação da matéria de facto, a Recorrente considera que a mesma se encontra manifestamente incompleta, deixando se fora factos relevantes para a decisão e imprecisa.
D) Em primeiro lugar, a factualidade julgada como provada no item 7.º dos factos provados não corresponde à realidade e é manifestamente incompleta.
E) Como consta do relatório elaborado pelo Exmo. Administrador de Insolvência, designadamente pela escritura pública de doação, o bem doado é uma fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar do Norte, parte integrante do prédio urbano sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...92.º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o registo número 14 de ..., com o valor patrimonial de € 4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos).
F) Ora, ao contrário do que é referido no item 7.º dos factos provados, não foi alvo de doação o prédio urbano, mas sim uma fração autónoma, mais especificamente uma garagem.
G) Sendo que, salvo melhor opinião, o valor patrimonial do bem alvo de doação é um facto extremamente relevante para determinar o grau do prejuízo dos credores.
H) Assim, o item 7.º dos Factos Provados deve ser alterado, devendo ter a seguinte formulação: “Em 2015 o único activo desonerado que ainda integrava a esfera patrimonial da devedora respeitava ao imóvel que em 2021 é doado à sua filha (fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente à garagem n.º 6, 3.ª a contar do Norte, do prédio urbano, sito na Avenida ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...92, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...4 de ..., com o valor patrimonial de € 4.415,25 (quatro mil, quatrocentos e quinze euros e vinte e cinco cêntimos)”.
I) Em segundo lugar, salvo melhor opinião, a decisão recorrida omite dos factos provados factualidade relevante para decisão em apreço.
J) Desde logo, não mencionado que o Administrador de Insolvência comunicou, à insolvente e à sua filha, a resolução em benefício da massa insolvente da doação mencionada no item 7.º dos Factos Provados.
K) Mais ainda, por requerimento da Insolvente, datado de 06 de outubro de 2022, foi apresentada comunicação da filha da Insolvente ao Administrador de Insolvência manifestando a não oposição da resolução em benefício da massa insolvente da doação em apreço.
L) A factualidade acima descrita é relevante para determinar a existência de prejuízo sério para os credores, nos termos do artigo 238.º do CIRE.
M) Desta forma, salvo melhor opinião, devem ser acrescentados os seguintes factos aos factos provados:
9. O Exmo. Administrador de Insolvência comunicou aos presentes autos que irá proceder à resolução em benefício da massa insolvente, nos termos do artigo 120.º do CIRE [Relatório do Administrador de Insolvência].
10. Por requerimento datado de 06 de outubro de 2022, a insolvente juntou aos presentes autos declaração assinada pela sua filha declarando a não oposição da resolução do benefício da massa insolvente [Requerimento da Insolvência datado de 06 de outubro de 2022].
N) Constam do artigo 237.º do CIRE, os pressupostos da efetiva concessão da exoneração do passivo restante.
O) Sem esquecer que o instituto da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 3 anos posteriores ao seu encerramento.
P) Diz-se a tal propósito, no preâmbulo do CIRE, que “(…) o código conjuga de forma inovadora o principio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então,
que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica (…)”.
Q) Tem, pois, o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e tem como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores (Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133).
R) É, assim, uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.
S) Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade” (Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264).
T) Por outro lado, constam do disposto no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
U) Como referem Carvalho Fernandes e Luís Labareda, as suas alíneas b) a g) “definem, embora pela negativa, requisitos de cuja verificação dependa a exoneração, podendo reconduzir-se a três grupos diferentes. Respeita um deles a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram dealgum modo ou a agravaram [als. b), d) e e)]; outro compreende situações ligadas ao passado do insolvente [als. c) ef)]; finalmente a al. g) configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência”.
V) Ora, dispõe-se no artigo 238.º, n.º 1, do CIRE (no que ao presente recurso interessa) o seguinte:
1 O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
(…)
d) O devedor tiver incumprid...

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