Acórdão nº 3303/19.7T9LRA.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 08-11-2023

Data de Julgamento08 Novembro 2023
Ano2023
Número Acordão3303/19.7T9LRA.C1
Órgão Tribunal da Relação de Coimbra
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Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

… foi, por despacho de 24/3/2023, rejeitada a acusação formulada pelo Ministério Público contra a arguida , a quem imputava a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 8 crimes de falsificação de documento p. e p. pelos artigos 255º, al. a) e 256º, nº 1, als. c), d) e e) do C.P., por considerar que os factos imputados não constituem crime e porque manifestamente infundada nos termos do artigo 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d) do C.P.P..

Por despacho de 19/5/2023 foi indeferida a constituição como assistentes de «Sociedade …, S.A.» e de …, porque não figuram como ofendidos na acusação deduzida pelo Ministério Público e porque carecem de legitimidade para tanto.

1.2.Os recursos

1.2.1. Das conclusões do Ministério Público

Inconformado com a decisão de 24/3/2023, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):


II – Por despacho proferido em 24 de Março de 2023 … foi decidido rejeitar a acusação deduzida por se considerar que os factos imputados não constituem crime e porque manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal.

VI – Da acusação consta, desde logo, que a conduta da arguida teve implicações fiscais. É precisamente por esta via que se retira a qualidade de “documento” para efeitos do disposto no artigo 255.º, al. a), do Código Penal.

VII - O mesmo se diga quanto à relevância legal - facto juridicamente relevante - dos documentos falsificados remetidos à sociedade revisora oficial de contas, atento o facto de exercerem uma função de natureza pública.

1.2.2 Das conclusões de … S.A.» e de …

Inconformados com a decisão de 19/5/2023, estes interpuseram recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

I. Os Recorrentes, na qualidade de queixosos, requereram a respectiva constituição de assistentes, …

III. Nos autos foi proferido despacho de acusação imputando á arguida a prática de oito crimes de falsificação de documento, …

IV. Nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003, de 16.01.2003, a norma incriminadora do crime de falsificação tutela, cumulativa, imediata e especialmente dois interesses: o interesse geral e colectivo da segurança e confiança do tráfico probatório, valores de natureza ético-social e, pois, supra-individual, constituindo bens jurídicos cuja titularidade reside no Estado; e o interesse individual de quem venha a sofrer prejuízo, em consequência da falsificação e/ou do uso do documento falso.

V. A sociedade …, como consequência directa e necessária do comportamento adoptado pela arguida e à mesma imputado em sede de acusação, viu o seu nome ser posto em causa perante sócios e terceiros de forma não fidedigna, o que prejudica a sua relação com os mesmos, tendo em conta toda a economia comercial envolvida.

VI. … viu o seu direito ao bom nome ser posto em causa, nos mesmos termos referidos para a sociedade, por ver a sua assinatura ser utilizada de forma fraudulenta e sem o seu consentimento, falsificação esta provada nos autos através de prova pericial efectuada, havendo, assim, uma apropriação indevida da sua identidade, lesando a sua personalidade jurídica, por ver o seu nome associado a documentos falsificados.

VII. Face ao que antecede, é manifesto que os recorrentes e queixosos são ofendidos nos autos.

1.2.3. Da resposta da arguida

Respondeu a arguida ao recurso interposto pelo Ministério Público, concluindo assim (transcrição) :

2. Porém dos factos descritos na douta acusação não se retira que, com a sua conduta, a arguida pretendeu causar prejuízo a quem quer que seja, muito menos ao Estado.

4. Não está alegado, nem em lado nenhum dos autos se encontra que os factos descritos permitem concluir que a arguida falsificou algum documento.

5. Não está alegado, nem em lado nenhum dos autos se encontra que os factos descritos permitem concluir que a arguida com a sua conduta, alcançou algum benefício ilegítimo,

6. Ou sequer qualquer benefício, bem pelo contrário.

7. A narração dos factos da acusação, omite por completo os elementos subjectivos dos tipos de crime, em concreto, imputados à arguida.

10.Por outro lado, a acusação é vaga, não concretiza quais os procedimentos irregulares que a arguida pretendia ocultar com a sua conduta.

11.Quanto ao dolo, refere a acusação que arguida, ou terceiro a seu mando, praticou os factos descritos, de forma não apurada, apondo a assinatura de terceiros e elaborando os documentos descritos, que sabia não corresponderem à verdade, e exibi-los a terceiros, como se de documentos verdadeiros se tratassem.

14.Dos factos elencados na acusação não é sequer possível concluir que os documentos elaborados pela arguida integram o conceito de documento previsto no artigo 255º, alínea a) do CP.

1.2.4. Da resposta do Ministério Público

1.2.5. Da resposta da arguida

1.2.6. O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação teve vista do processo e deu o seu parecer …

II. OBJECTO DO RECURSO

Assim, examinadas as conclusões dos recursos, são as seguintes as questões a conhecer :

Recurso do Ministério Público :

- saber se a acusação formulada devia ser rejeitada.

Recurso de …, S.A. e …:

- legitimidade dos recorrentes em constituírem-se assistentes.

III. FUNDAMENTAÇÃO

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido na primeira instância (transcrição):

Em 24/3/2023 foi proferido o seguinte despacho:

«O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida …, pelos factos constantes da acusação …, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de oito crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255º, alínea a) e 256º, nº 1, alíneas a), c), d) e e) do Código Penal.

Nos termos do disposto no artigo 255º, alínea a) do Código Penal, considera-se documento:

Nos termos do disposto no artigo 256º, nº 1 do Código Penal:

Só pode ser condenado pela prática de um ilícito o agente que preencha os seus elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime.


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Apreciando cada conjunto de factos, constata-se que:

I

Da narração fática contida na acusação não constam as funções exercidas por …, pessoa cuja assinatura a arguida terá falsificado, desconhecendo-se a necessidade da referida assinatura para as ordens de pagamento emitidas.

Por outro lado, a acusação também não descreve quais os procedimentos irregulares que a arguida pretendia ocultar com a sua conduta.

Não se encontra descrito se as referidas ordens de pagamento eram ou não devidas.

Dos factos descritos não se retira que, com a sua conduta, a arguida pretendeu causar prejuízo ao Estado – antes se retira o contrário, uma vez que as ordens de pagamentos efetuadas determinaram o pagamento de impostos.

Não se encontra alegado na acusação que, com a sua conduta, a arguida pretendeu causar prejuízo a terceiro.

Tampouco os factos descritos permitem concluir que a arguida, com a sua conduta, alcançou benefício ilegítimo e, em caso afirmativo, qual em concreto.

A descrição fática contida na acusação, no que ao dolo específico do tipo respeita, limita-se a reproduzir a formulação genérica contida no ilícito – que, com a sua conduta, a arguida causou prejuízo ao Estado e obteve um benefício ilegítimo, sem que os factos que permitem alcançar tal conclusão se mostrem alegados.

II

Não concretiza a acusação quais os funcionários responsáveis pela inscrição do valor de pagamentos de IRC na conta de ativos, e qual o conhecimento e vontade de prática dos factos pelos mesmos.

Não descreve a acusação qual o valor dos pagamentos de IRC anteriores a 2018 que foram levados à conta de ativos, ao invés da conta de gastos, no relatório de contas de 2018 da empresa.

Desconhece-se o uso dado ao referido relatório de contas, ou sequer a certificação ou aprovação das mesmas – de modo a que se possa concluir que o referido documento integra o conceito de documento previsto no artigo 255º, alínea a) do Código Penal.

De igual modo, não descreve a acusação, em concreto, qual o prejuízo que, com a sua conduta, a arguida pretendeu causar ao Estado (ou a terceiro) ou o benefício ilegítimo que pretendeu alcançar (não concretizado).

III

Não descreve a acusação qual o documento contabilístico que a arguida elaborou e qual o uso dado a tal documento – de modo a permitir concluir que se insere no tráfico jurídico. Documentos internos da empresa, por si só, não são aptos a prejudicar o Estado.

Assim, e mais uma vez, não constam da acusação factos que permitam concluir que, com a sua conduta, a arguida pretendeu prejudicar o Estado (ou terceiro) ou que pretendeu alcançar um benefício ilegítimo (não concretizado).

IV

Não descreve a acusação o documento bancário elaborado pela arguida ou a utilização do mesmo junto do Estado.

Refere a acusação que o referido documento foi remetido ao revisor oficial de contas, desconhecendo-se se o mesmo foi utilizado fora do circuito interno da empresa.

Dos factos descritos não é possível retirar que, com a sua conduta, a arguida pretendeu causar prejuízo ao Estado (ou a terceiro) ou que pretendeu alcançar benefício ilegítimo (não concretizado).

V

Refere a acusação que a arguida remeteu ao revisor oficial de contas documento comprovativo de uma transferência bancária falso, por não corresponder a uma operação bancária realizada, desconhecendo-se se o mesmo foi utilizado fora do circuito interno da empresa.

Dos factos descritos não é possível retirar que, com a sua conduta, a arguida pretendeu causar prejuízo ao Estado (ou a terceiro) ou que pretendeu alcançar benefício ilegítimo (não concretizado).

Do Dolo Específico do...

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