Acórdão nº 3206/09.3TBSXL.L2-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 10-03-2022

Data de Julgamento10 Março 2022
Ano2022
Número Acordão3206/09.3TBSXL.L2-2
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1. Em 02.6.2009 Fernanda intentou no Tribunal Judicial do Seixal ação declarativa com processo regulado pelo Dec.-Lei n.º 108/2006, de 08.6, contra António, Beatriz, Maria e Álvaro.
A A. alegou, em síntese, ser proprietária de um terreno rústico sito em Vale de Milhaços (atualmente Marisol), designado por lote (…), que adquiriu com o então seu marido, por escritura pública, ex-marido esse a quem comprou a quota parte deste no prédio, ficando desde 09.5.1985 a A. a ser a sua única proprietária. A aquisição da propriedade a favor da A. e do seu ex-marido está inscrita no registo predial desde 16.9.1982. Sucede que recentemente a A. ficou a saber que o 1.º R. e a 2.ª R. tinham, em 03.7.2006, outorgado escritura de justificação notarial, na qual se arrogavam titulares, por usucapião, do aludido terreno, tendo logrado inscrever tal facto no registo predial, criando a descrição de um novo prédio junto da Conservatória do Registo Predial da Amora. A declarada usucapião não corresponde à verdade, como bem sabiam os 1.º e 2.º RR., assim como as três testemunhas que intervieram na dita escritura. A referida escritura deve, pois, ser declarada ineficaz e deve ser ordenado o cancelamento dos registos efetuados pelos RR., assim como os efetuados pelos 3.º e 4.º RR., a quem os 1.º e 2.º RR. venderam o aludido prédio e onde os 3.º e 4.º RR. construíram, sem autorização da A., duas moradias unifamiliares.
A A. terminou pedindo que se considerasse impugnado o facto justificado e fosse declarada ineficaz a dita escritura pública de justificação notarial, que fosse ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos 1.º e 2.º RR., que fosse ordenado o cancelamento de todos os registos prediais celebrados a partir do registo do facto justificado, relativos ao prédio descrito sob o n.º (…), da freguesia de Corroios, que fosse ordenada a extinção da descrição n.º (…), da freguesia de Corroios, por duplicação, que fosse reconhecido pelos RR. Maria (…) e Álvaro (…) (3.º e 4.º RR.) o direito de propriedade da A. sobre o prédio rústico identificado pela A., e que fosse ordenado aos 3.º e 4.º RR. que restituíssem o aludido prédio, no estado em que se encontrava antes das construções, isto é, livre de pessoas e bens.
2. O 1.º R. contestou a ação, impugnando a aquisição invocada pela A., afirmando ter comprado o terreno por documento escrito em 1977 e exercido sobre o mesmo todos os atos próprios de um proprietário, tendo sido ele quem ali construiu um muro, tudo com o conhecimento da A., que morava nas proximidades e até manifestara desejo de comprar o terreno.
Concluiu pela improcedência da ação.
3. Também os 3.º e 4.º RR. contestaram, alegando que, ainda que a A. tivesse efetivamente comprado o aludido terreno e este fosse o que está descrito e inscrito em seu nome no registo predial, a A. deixou o terreno ao abandono e quem dele cuidou, praticando atos de posse, constitutivos de usucapião, foram os 1.º e 2.º RR., pelo que nesta parte improcede a ação. Por outro lado, os 3.º e 4.º RR. são alheios à justificação notarial, tendo adquirido um terreno em relação ao qual tudo se mostrava regularizado, tendo procedido, de boa fé, ao registo da aquisição, a qual assim prevalecerá sobre o invocado direito da A., nos termos do art.º 17.º n.º 2 do CRP. De todo o modo, os 3.º e 4.º RR. construíram no aludido terreno, de boa-fé, duas moradias cujo valor excede o do terreno, pelo que deve ser-lhes reconhecida a aquisição do mesmo, por acessão imobiliária.
Os 3.º e 4.º R.R. concluíram pela improcedência da ação e sua consequente absolvição do pedido; em reconvenção, pediram que fosse reconhecido o seu direito de propriedade sobre o aludido prédio urbano, bem como sobre as duas moradias que nele construíram; subsidiariamente, pediram, em reconvenção, que a A. fosse obrigada a reconhecer que, por força do exercício do direito potestativo de aquisição com fundamento em acessão industrial imobiliária, os 3.º e 4.º RR. são donos e legítimos possuidores do acima identificado lote, bem como das construções no mesmo implantadas, devendo os 1.º e 2.º RR. ser responsabilizados pelo pagamento da indemnização que à A. seria devida, sob pena de enriquecimento sem causa.
4. A A. respondeu, pugnando pela improcedência da reconvenção e concluindo como peticionado.
5. Em 02.5.2011 foi proferido despacho saneador, tendo sido admitida a reconvenção, especificada a matéria assente e fixada a base instrutória.
6. Realizou-se perícia de avaliação do terreno e das duas moradias.
7. Realizou-se audiência final.
8. Em 14.10.2014 foi proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, tendo sido emitido dispositivo em conformidade com o peticionado, improcedendo, consequentemente, a reconvenção.
9. O 1.º R. apelou da sentença, mas a apelação foi rejeitada.
10. Os 3.º e 4.º RR. apelaram da sentença e a Relação de Lisboa, por acórdão datado de 12.7.2018, anulou a sentença, determinando que se realizasse audiência final para repetição da prova quanto à matéria do quesito 6.º e consequente fundamentação, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições, proferindo-se em seguida nova sentença nos termos legais.
11. Realizou-se audiência final e em 11.7.2019 foi proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, tendo sido emitido dispositivo em conformidade com o peticionado, improcedendo, consequentemente, a reconvenção.
12. O 1.º R. apelou da sentença, mas a apelação foi rejeitada, por despacho que veio a ser confirmado na sequência de reclamação para a Relação.
13. Os 3.º e 4.º RR. apelaram da sentença, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:
A – Como já referido nas Conclusões das anteriores Alegações e de tudo o mais que aqui se alega, a sentença recorrida padece de inúmeros vícios, erros de apreciação da prova produzida, avaliação e afirmações conclusivas manifestamente extemporâneas e, na nossa opinião, erradas imprecisões e omissões, desvalorização tendenciosa ou preconceituosa sobres os testemunhos prestados – aparentemente (?) penalizadoras para os depoimentos contrários aos RR – a todos eles – e que originaram uma sentença que, manifestamente, não pode vencer.
B – Face ao exposto os RR Maria (…) e Álvaro, requerem que as anteriores Conclusões se considerem como aqui reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.
I. a XLV.
Termos em que, revogando a decisão recorrida farão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a costumada Justiça.
Aqui se reproduzem as conclusões da primeira apelação deduzida por estes RR.:
I. A sentença recorrida padece de contradições manifestas na sua estrutura fundamentadora, para além de se alicerçar em errada apreciação da prova produzida e, ainda, por desconsiderar princípios jurídicos basilares.
II. Evidencia-se, de imediato, para além de imprecisões e omissões uma clara contradição entre a matéria dada como provada e a decisão final.
III. Desde logo, uma importante omissão de resposta ao quesito 100, sendo certo que, a fls 9 da sentença, versando-se a fundamentação das respostas aos quesitos 9 e 10 (?), se remete para os comprovativos de pagamento de imposto municipal sobre imóveis apresentados pelo réu António (…) e juntos de ffs 191 a 238.
IV. O que, sendo-se consequente, deveria ter levado a acrescentar-se à matéria de facto provada que “Entre os anos de 2000 e 2005, o réu António (…) procedeu ao pagamento da contribuição autárquica e imposto sobre imóveis relativamente ao prédio inscrito na matriz sob o art° (…), da freguesia de Corroios, sito na Rua (…), lote 310.
V. Por outro lado, a sentença refere que a A. liquidou contribuição autárquica entre 1997 e 2008 — mas não se questionou quem pagou anteriormente a 1997 e nem quem (ou se) pagou após 2008.
VI. Mais importante do que isso, deu-se como provado que "Depois da compra, os RR. António (…) e (…) Beatriz (…) portaram-se sempre como seus donos, sem interrupção, à vista de todos e sem que alguém se opusesse."
VII. O que resulta da resposta positiva ao quesito 6°, mas está em antinomia quer com o texto de fls 6 e 7 relativo à fundamentação das respostas aos quesitos 2° e 6° e, também, em claríssima contradição com toda a parte dispositiva da sentença, já que tendo-se os 1° e 2°s Réus portado como donos do terreno, sem interrupção, à vista de todos e sem que alguém se opusesse, desde que o adquiriram (a Diniz (...)), demonstrada está a posse fundamentadora da usucapião e as consequentes legitimidade para a transmissão operada em 2006 a favor dos 3° e 4° Réus e inteira validade dos registos lavrados, nenhuma razão subsistindo para a procedência da acção.
VIII. Estamos pois, diante de manifesta contradição entre os fundamentos e a decisão ou, pelo menos, diante de ambiguidade grave que toma a decisão ininteligível sendo, por via disso, evidente a nulidade da sentença recorrida, nos termos do n° 1, alínea c) do artigo 615° CPC.
IX. Não havendo, sequer, necessidade de autonomizar aqui a omissão da resposta ao quesito 10°, por que integrada nesse mesmo patamar de ambiguidade.
X. Concluiu a sentença pelo reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre o prédio que reivindica. O que exigiria uma análise cuidada de todos os documentos juntos aos autos susceptíveis de contribuir para o esclarecimento cabal de que o prévio reivindicado coincide com o prédio sobre o qual os 3° e 4° RR, aqui recorrentes, edificaram as moradias em causa.
XI. Essa análise não foi efectuada., tendo-se o tribunal limitado a, na resposta ao quesito 2°, afirmar "que o terreno onde as casas foram implantadas é o da autora, retira-se, sem margem para dúvidas, das certidões de registo predial juntas na audiência de 30.09.2014, onde a aquisição da autora do terreno em causa surge enquadrada, temporal e geograficamente, com
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