Sentença ou Acórdão nº 0000 de Tribunal da Relação, 01 de Janeiro de 2023 (caso Acórdão nº 3146/20.5T8VFX-A.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-04-18)

Data da Resolução01 de Janeiro de 2023
Acordam as juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I–Relatório

1.No âmbito do processo de insolvência de M. Ldª os credores J. Ld.ª e C. Ldª requereram a abertura de incidente para qualificação da insolvência como culposa com fundamento legal no art. 186º, nº 2, als. a), d), f), g) e h) e nº 3, als. a) e b) do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE[1]) para por ela serem afetados MZ e OZ, e CR e JR, os primeiros na qualidade de gerentes de direito, e os segundos na qualidade de gerentes de facto da insolvente.

Alegam que: a devedora era gerida por todos os indicados à afetação; os gerentes de facto abandonaram a devedora em julho de 2020 e passaram a exercer funções na sociedade WV constituída em junho de 2020 com participação, entre outros, da filha de cada um daqueles e com o mesmo objeto social da insolvente; em agosto de 2020 os gerentes de direito venderam a grande parte dos bens da insolvente àquela sociedade, para a qual os gerentes de facto levaram a quase totalidade dos clientes, mais de metade dos funcionários, cerca de metade dos fornecedores, e encomendas pendentes de clientes da insolvente, com esvaziamento comercial e consequentes dificuldades da insolvente; nas contas da insolvente há um ‘desfalque’ de € 18.228,91 a favor dos gerentes de facto e da filha de um deles; a contabilidade da insolvente não estava organizada. Requereram depoimento de parte dos indicados à afetação, declarações da Sr.ª administradora da insolvência (AI), arrolaram 14 testemunhas, juntaram documentos, remeteram para outros juntos pela insolvente em processo onde se apresentou à insolvência, e requereram a requisição de informação ao Instituto da Segurança Social.

2.–Declarada e publicitada a abertura do incidente de qualificação da insolvência, a AI apresentou parecer que concluiu pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento no art. 186º, nº 2, als. a), d), e nº 3, al. b), com afetação dos indicados pelos credores.

Alegou que em 30 e 31.07.2020 a insolvente vendeu seis veículos de que era proprietária, quatro dos quais à sociedade WV objeto de fatura emitida no valor de € 40.590,00, desconhecendo a AI que bens foram faturados, tendo aquela emitido recibos no montante global de €17.380,00, dos quais consta que o pagamento foi feito por transferência, mas sem comprovativo da entrada do dinheiro nas contas bancárias da insolvente; em 11.09.2020 foram inscritos no registo dois veículos relativamente aos quais a insolvente optou por antecipar o seu pagamento e pela sua compra e, na mesma data, foram inscritos em benefício da WV; de acordo com o alegado pela insolvente na petição de apresentação à insolvência que apresentou em juízo, os indicados como gerentes de facto acordaram com os gerentes de direito a constituição da insolvente para nela exercerem funções de gerência de facto por não poderem figurar formalmente como sócios e gerentes nem auferir rendimentos superiores ao salário mínimo nacional sob pena da incidência de penhoras sobre os seus vencimentos, auferindo aqueles as remunerações pelo exercício da gerência de facto através de pagamentos à filha de um e de outro, na qualidade de funcionárias da devedora; em julho de 2020 aqueles gerentes de facto abandonaram a gestão da insolvente e passaram a exercer iguais funções na WV, o que conduziu ao decréscimo abrupto do volume de vendas da insolvente e consequente necessidade de venda dos veículos e equipamentos utilizados para o desenvolvimento da sua atividade. Mais alegou pagamentos à sócia da insolvente no valor total de €5.000,00, e ao sócio da WV, no valor global de cerca de €17.800,00. Com base nos factos descritos concluiu que a devedora fez desaparecer todo o seu património e as suas existências sem que tenha pago os créditos reclamados na insolvência, estes no montante total de cerca de €309.000,00, e que em comunhão de esforços os gerentes de direito e de facto da insolvente acordaram na transmissão de bens para sociedade de que estes últimos foram beneficiários sem que tenham demonstrado o seu pagamento, em claro prejuízo da insolvente e dos seus credores. Mais alegou que a devedora não depositou as contas do exercício de 2019 e, sem qualquer especificação ou concretização, que a contabilidade não está devidamente organizada nem cumpridas as obrigações fiscais. Concluiu que os indicados à afetação praticaram atos que conduziram ao agravamento da situação da insolvência. Arrolou testemunhas e juntou documentos.

3.–O Ministério Publico acompanhou o parecer da AI e concluiu pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento no art. 186º, nº 1, nº 2, als. a) e d) e nº 3, al. b) do CIRE e indicando como pessoas a afetar os gerentes da insolvente. Indicou como prova a documentação junta aos autos, o depoimento de parte dos gerentes e a audição da AI.

4.–Citados, CR e JR deduziram oposição conjunta, pedindo a sua não condenação na inabilitação, na inibição, e na indemnização aos credores, e a sua absolvição de qualquer responsabilidade.

Alegaram que nunca foram gerentes de facto da insolvente, que nunca agiram em nome e em representação desta com autonomia decisória, que não tinham acesso à informação financeira e contabilística da insolvente, que exerceram apenas funções de distribuidores/vendedores, que estas não se confundem com atos de administração, a qual competia aos seus gerentes de direito, que eram também de facto, e dos quais dependiam todas as decisões sobre os negócios, movimentações financeiras, compra e venda de equipamento, e contratação de empregados, e que não contribuíram para o desaparecimento do património da insolvente nem obtiveram vantagem económica das relações entre esta, a sociedade M. Ldª e a WV. Mais alegaram que, conforme balancete geral reportado ao exercício de 2019, em dezembro de 2019 a insolvente devia cerca de €277.000,00 a José, sócio da insolvente, e em 02.04.2020 apresentava saldo devedor de cerca de €103.000,00, que a compra da insolvente apenas poderia beneficiar aquele sócio da WV e não os opoentes, e que não corresponde à verdade que eles e a filha do requerido CR se apropriaram do valor global de cerca de €17.800,00. Arrolaram testemunhas, requereram declarações de parte, e juntaram um documento.

5.–Citados, MZ e OZ deduziram oposição conjunta, pedindo a qualificação da insolvência como fortuita ou, caso assim não se entenda, a sua não afetação pela qualificação da insolvência como dolosa.

Alegaram que remeteram à AI toda a documentação que lhes solicitou com considerações sobre os motivos e termos dos negócios a que respeitam, que as faturas remetidas confirmam que as transferências realizadas entre a insolvente e a WV ou eram relacionadas com as relações comerciais entre as duas sociedades (venda de mercadorias), ou com a venda de imobilizado, que os extratos bancários solicitados e remetidos à AI comprovam as entradas e saídas de dinheiro da conta bancária da insolvente, que a nota de lançamento que descreve pagamento de ordenados e subsídios foi um erro da pessoa que fez o pagamento e não releva aos autos; que foram sempre e totalmente alheios à gestão da insolvente e à sua realidade comercial e financeira porque a gerência era exclusivamente exercida pelos demais requeridos, os quais decidiam do rumo da insolvente a todos os níveis, comercial, societário, financeiro, contabilístico, laboral, contratual, e jurídico, em suma, geria, a carteira de clientes, fornecedores e funcionários que por eles foi trazida para a insolvente e que constituía a quase totalidade da atividade por esta prosseguida desde a sua constituição, o que não é contrariado pelo facto de a sua assinatura constar em avais ou outros documentos, porque apenas eles o poderiam fazer, nem pela negociação de acordo de pagamento de dívida por eles avalizada no âmbito da respetiva cobrança coerciva; que a insolvente sofreu quebra em 2019, agravada em 2020 pela pandemia e pelo abandono dos seus gerentes de facto em julho desse ano e sem pré-aviso, levando consigo a quase totalidade da clientela e metade dos funcionários para a WV, situação que, confrontados até com ameaças de morte, determinou os opoentes a procederem “à venda de grande parte dos bens parte dos bens, nomeadamente viaturas e outros equipamentos utilizados para o desenvolvimento da atividade, por forma a conseguir obter liquidez imediata necessária para a sobrevivência da empresa e solvabilidade de alguns créditos.”; que previamente à celebração das vendas dos bens da sociedade diligenciaram pela elaboração de plano de negócios, que fracassou porque dependia do acesso ao apoio financeiro criado pelo governo no âmbito da pandemia através do designado lay-off simplificado com vista à recuperação e reestruturação da sociedade, que não foi concedido porque o TOC da insolvente se recusou a entregar toda a documentação contabilística e financeira que detinha ou que lhe cabia elaborar ou certificar; que a venda dos bens da insolvente não causou nem agravou a sua insolvência porque esta já existia e a venda foi feita para minorar as consequências da situação criada pelos gerentes de facto, e não resultou em favorecimento pessoal ou de terceiro; que o incumprimento do fecho e depósito de contas do exercício de 2019 é exclusivamente imputável ao TOC da insolvente e não constam factos que demonstrem a verificação de nexo causal entre aquele incumprimento e a criação ou agravamento da insolvência. Arrolaram 13 testemunhas, requereram declarações de parte, e juntaram documentos.

6.–A AI respondeu às oposições.

7.–Foi proferido despacho a ordenar a junção de cópia das reclamações de créditos e peças processuais produzidas ou apresentadas nos autos principais, certidões comerciais e assentos de nascimento, a dispensar a realização de audiência prévia, a fixar o objeto do litigio e enunciar os temas de prova, e a apreciar os...

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