Acórdão nº 3096/17.2T8VNF-J.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2023-06-07

Data de Julgamento07 Junho 2023
Ano2023
Número Acordão3096/17.2T8VNF-J.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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Comarca ... - Juízo de Comércio ... - Juiz ...
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ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO
1.1. Decisão impugnada
1.1.1. AA, residente na Rua ..., em ..., ..., veio (no apenso de liquidação do processo especial de insolvência pertinente a BB, que - com o n.º 3096/17.2T8VNF-J.G1- corre termos pela Comarca ..., Juízo de Comércio ..., Juiz ...) pedir que:

· a Administradora da Insolvência fosse notificada para lhe pagar metade do produto da venda de dois imóveis apreendidos e vendidos no âmbito da insolvência.

Alegou para o efeito, em síntese, ter contraído casamento com BB em ..., sob o regime de comunhão de bens adquiridos a título oneroso na constância do matrimónio, casamento esse dissolvido por divórcio em 29 de Junho de 2016, sem que tivesse sido partilhado o património comum do desfeito casal.
Mais alegou que deste património comum faziam nomeadamente parte duas fracções autónomas (uma destinada a habitação e outra a loja), depois aprendidas e vendidas nos autos de insolvência, tendo por isso direito a metade do produto dessa venda.
Alegou ainda que, tendo reclamado à Administradora da Insolvência essa quantia, por carta datada de 20 de Janeiro de 2023, aquela se recusou a proceder ao pretendido pagamento.

1.1.2. Foi proferido despacho, indeferindo a pretensão da Requerente (AA), lendo-se singelamente no mesmo:
«Req7-2 9-2: Indefiro o requerido, atenta a informação prestada pela sra. Administradora de insolvência. Notifique, devendo esta informar em 10 dias do estado da liquidação».
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1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada com esta decisão, a Requerente (AA) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse revogada e substituída por outra, a ordenar o pagamento das quantias por si reclamadas.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões):

A) A Recorrente e o Insolvente BB não procederam à partilha dos bens comuns adquiridos na constância desse casamento;

B) Entre os bens comuns do ex-casal existiam os seguintes imóveis:
- A fração autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao ... andar frente, lados sul-nascente, tipo ..., com uma garagem na cave, designada pelo número 3, integrada no prédio urbano sito no Lugar ... ou ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., descrita na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...45 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...35.
- Fração autónoma designada pela letra ..., correspondente à loja no ... esquerdo, bloco ..., terceira a contar do nascente, destinada a comércio, integrada no prédio urbano, sito no Lugar ..., ... ou Assento, da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., descrita na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...92, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...76.

C) Esses bens foram apreendidos nesta Insolvência e recentemente vendidos no âmbito do presente processo de liquidação pelos seguintes valores:
Fração ... – 199.673,66€
Fração ... – 70.000,00€

D) Do produto da venda desses dois imóveis, metade do valor pertence à Recorrente, ou seja o valor de 134.836,93€, que corresponde à sua meação.

E) Nos termos do disposto nos artigos 743º do C.Proc. Civil e 143º do C.I.R.E tem a Recorrente direito de reclamar o valor dos seus direitos próprios estranhos à insolvência;

F) Por isso, por requerimento datado de 07/02/2023, a Recorrente requereu à Meritíssima Juiz do processo o pagamento das quantias reclamadas;

G) Em 14 de Fevereiro foi proferido o despacho aqui recorrido, cujo teor se transcreve:
“Indefiro o requerido, atento a informação prestada pela srª administradora da insolvência.”

H) Sucede que a Recorrente não é responsável por qualquer das dívidas contraídas pelo seu ex-marido.

I) Nunca a Recorrente foi interpolada por qualquer dos credores do seu ex-marido, nem tinha que o ser por nada lhes dever.

J) Nem a Recorrente alguma vez foi envolvida na insolvência do seu ex-marido.

K) A Recorrente foi citada nos termos do artº. 740º do Cod. Proc. Civil para requerer a separação dos bens comuns adquiridos na instância do casamento que contraiu com o insolvente BB.

L) A Recorrente optou por aceitar que a execução prosseguisse sobre os bens comuns e que estes pudessem ser vendidos no âmbito do processo de insolvência.

M) Neste caso a Recorrente pode, como efetivamente o requereu nos autos, reclamar o seu direito próprio, por ser estranho à insolvência nos termos do artº. 143º do C.I.R.E. .

N) Ao decidir em sentido contrário, indeferindo o pedido de pagamento do valor correspondente à meação da Recorrente, a Meritíssima Juiz a quo violou o disposto nos artigos 143º e 159º do C.I.R.E. devendo por isso o douto despacho Recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene o pagamento à Recorrente das quantias reclamadas assim se fazendo Justiça.
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1.2.2. Contra-alegações
Não foram juntas quaisquer contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
2.2.1. Questão concreta posta pela Recorrente
Mercê do exposto, e do recurso interposto pela Requerente (AA), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do direito, não existindo fundamento legal para recusar à Requerente metade do produto da venda das duas fracções autónomas apreendidas e alienadas nos autos de insolência ?
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2.2.2. Questão adicional resultante da decisão recorrida
Contudo, verifica-se que, estando em causa nos autos o direito (ou a ausência dele) da Requerente (AA) a metade do produto da venda de duas fracções autónomas apreendidas e vendidas nos autos de insolvência (pertinentes ao seu ex-Cônjuge, com quem alegadamente foi casada sob o regime de comunhão de adquiridos), o Tribunal a quo omitiu por completo no despacho que indeferiu tal pretensão a enumeração/discriminação de quaisquer factos provados e não provados (nomeadamente, os alegados para aquele efeito pela Requerente), bem como a indicação de quaisquer normas ou institutos jurídicos (nomeadamente, os invocados para o mesmo efeito pela Requerente).
Face ao exposto, importará que se aprecie a dita omissão de qualquer fundamentação de facto e de direito registada na decisão recorrida; e de forma prévia à apreciação da concreta questão suscitada pelo recurso interposto.
Com efeito, lê-se no art. 663.º, n.º 2, do CPC que o «acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º»; e lê-se no art. 608.º, n.º 2, do CPC, que o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Ora, o vício que atinge a decisão recorrida obsta à sua validade, tendo-se o mesmo de conhecimento oficioso (tudo conforme melhor se explicitará de seguida); e, por isso, deverá ser conhecido de imediato, já que, certificado, impedirá o conhecimento da concreta questão enunciada pela Requerente (AA).
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III - Vício da decisão judicial - Anulação da sentença/do despacho
3.1. Vícios da decisão judicial
3.1.1. Nulidades versus Erro de julgamento
As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º, do CPC [3].

Precisando, entende-se em geral que «os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença», já que «a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC)» (Ac. da RC, de 20.01.2015, Henrique Antunes, Processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1, com bold apócrifo) [4].
Outros há, porém, que, concordando em princípio com esta posição, não deixam de admitir que poderão existir vícios da decisão de facto idóneos a justificar, de per se, a nulidade da própria sentença, enfatizando o facto desta, desde o CPC de 2013 (e ao contrário do que sucedia com o anterior, de 1961) conter agora simultaneamente a decisão de facto e a decisão de...

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