Acórdão nº 303/23.6T8AGH.L1-6 de Tribunal da Relação de Lisboa, 23-11-2023

Data de Julgamento23 Novembro 2023
Ano2023
Número Acordão303/23.6T8AGH.L1-6
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório[1]
JP, nos autos m.id., intentou o presente procedimento cautelar comum contra BS e mulher, AP, nos autos m.id., e contra PL, nos autos m.id, e Banco X, S.A., pedindo o cancelamento do registo de aquisição do prédio urbano sito na …, n.º …, freguesia de …, concelho da …, …, Açores, destinando-se a habitação, o qual se encontra efectuado a favor de PL, bem como o cancelamento do registo da hipoteca voluntária registada a favor do Banco X, S.A., e a reposição das hipotecas canceladas a favor do Requerente JP.
Alegou, em suma, que em 13/01/2021 vendeu ao primeiro e segunda requeridos o prédio referido, constituindo eles sobre o mesmo prédio hipoteca voluntária que vieram a registar a favor do requerente (Ap. n.º … de 2020/01/17 e uma segunda hipoteca registada pela Ap. n.º … de 2020/07/31) para garantia do pagamento de 65.000,00€, a primeira, e de 108.741,14€, a segunda, tudo garantindo o capital de 173.741,14€ acrescido das despesas acordadas.
Em 26 de Abril de 2023, o Requerente ficou a saber que os primeiro e segunda requeridos venderam o imóvel ao terceiro requerido, com hipoteca constituída a favor do Banco X, S.A., pelo valor global de 90.000,00€ mas com empréstimo concedido pelo Banco de 81.000,00€, sendo que na escritura de compra e venda acabada de relatar, disseram os intervenientes que o dito bem se encontrava livre de ónus e encargos.
Esta declaração não é verdadeira, tendo os primeiro e segunda requeridos falseado um documento de cancelamento das hipotecas antes constituídas a favor do Requerente, que foi apresentado online na 2.ª Conservatória de …, sendo que o dito documento está intitulado como “autorização de cancelamento”, sendo que a assinatura que ali consta não pertence ao Requerente nem este foi ao Consulado Geral de Portugal em …, na data indicada nem em data próxima, e quem atesta a presença e assinatura do Requerente, não é o Cônsul de Portugal em ….
Contactado o Consulado e remetido este documento, o Consulado respondeu que o documento era uma fraude, pelo que o Requerente vai apresentar queixa-crime.
Por outro lado, os Requeridos colocaram à venda a casa em questão por 180.000,00€, na Imobiliária …, com sede na … e receberam uma proposta de 130.000,00€, porque estes sabiam que existiam hipotecas sobre o imóvel bem como, a própria imobiliária o sabia, mas acabaram por vender por 90.000,00€, ao desbarato, quando o imóvel no mercado vale cerca de 150.000.00€, tudo para ficar com os 90.000.00€ para si e nada pagaram ao Requerente, fazendo cancelar as suas duas hipotecas e com isto provocar-lhe um prejuízo de 173.741,14€.
A falsidade do documento de autorização de cancelamento importa a declaração da sua nulidade bem como, a declaração de nulidade dos demais actos que lhe seguiram, a compra e venda e a constituição de hipoteca a favor do Banco, devendo ainda ser repostas as duas hipotecas a favor do Requerente.
Não se conhecem bens aos primeiro e segunda requeridos, existindo perigo de fuga deles.
Requereu o decretamento sem audiência prévia dos requeridos.
*
Após despacho de aperfeiçoamento que foi cumprido, o tribunal entendeu não ouvir os requeridos, “atendendo à matéria alegada pelo Requerente e porque considera que tal audição agora, poderia por em causa, de forma séria, o fim ou a eficácia da diligência”, e designou data para produção de prova, gravada, e na mesma data proferiu a decisão final, sem inversão do contencioso, e do seguinte teor:
Pelo exposto, decido julgar indiciariamente procedente, por provada, a presente providência cautelar e consequentemente, determino o imediato cancelamento dos seguintes registos que recaem sobre o:
- prédio urbano sito na …, n.º …, freguesia de …, concelho …, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial …, sob a ficha n.º …, composto de 1 piso e quintal, destinando-se a habitação, os quais constam das Ap. n.º … de 2023/04/24 a favor de PL e, Ap. n.º … de 2023/04/27 a favor de Banco X, S.A..
- Mais ordeno a imediata reinscrição e averbamento, dos registos das duas hipotecas que recaem sobre a mesma ficha predial acabada de citar e que constavam das Ap. n.º … de 2020/01/17 e Ap. n.º … de 2020/07/31 a favor do Requerente, JP.
- Mais ordeno o registo da presente acção nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do Código de Registo Predial.
Oportunamente notifique os Requeridos nos termos do artigo 366.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.
Custas a cargo do Requerente - artigo 539.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas sendo atendidas a final, na acção respectiva, artigo 539.º, n.º 2, do Código de Processo Civil”.
*
Inconformada, a requerida Banco X, S.A., interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1. A presente decisão, que decretou a providência cautelar e o cancelamento dos registos de aquisição e de hipoteca não pode manter-se por aplicar erradamente a lei ao caso concreto.
2. O Requerente apresentou a presente providência cautelar invocando que era titular de duas hipotecas sobre o prédio urbano sito na (…), as quais foram canceladas com base num título de distrate que diz ser falso e, na sequência desse cancelamento, o imóvel foi alienado a PL e registada hipoteca a favor do aqui Recorrente.
3. Ainda que se admitisse a falsidade do referido distrate – o que não se concede – e, por conseguinte, a nulidade do referido cancelamento das hipotecas, sempre seria de aplicar o disposto no artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial.
4. Com efeito, o artigo 17.º do CRP aplica-se aos casos de nulidade do registo previstos no artigo 16.º do mesmo Código, entre os quais consta a nulidade do registo que tenha sido efectuado com base em título falso, como é o caso que o requerente desta providência invoca.
5. Na verdade, a admitir-se como boa a alegação da falsidade do referido distrate – o que, como se disse, para já, não se concede – sempre estaremos perante uma invalidade registal, sendo aplicável o artigo 17.º, n.º 2 do CRP e não o artigo 291.º do Código Civil que se dirige a invalidades substantivas.
6. Assim sendo, os efeitos da invalidade registal do registo não são oponíveis a terceiro (como é o caso do aqui Recorrente) se se verificarem cumulativamente os requisitos previstos no preceito que, no caso se verificam todos.
7. Preenchidos que estão estes pressupostos, nunca poderia o Requerente da providência invocar a invalidade registal contra o aqui Recorrente nem contra o mutuário que registou a aquisição a seu favor.
8. Por isso, a providência decretada nunca poderia ter ordenado o cancelamento de tais registos, partindo para a ideia de que “é nulo tudo quanto se faz a seguir nesta ficha registral (sic)” porque a consequência não é claramente a nulidade dos registos posteriores mas sim a protecção dos terceiros nos termos do artigo 17.º, n.º 2 do CRP.
9. Verificando-se a nulidade do registo por ter sido lavrado com base num título falso (alínea a) do artigo 16.º), a declaração dessa nulidade não poderá deixar de integrar a previsão do artigo 17.º, n.º 2, sendo aplicável a consequência prevista na mesma norma: se o terceiro estiver de boa fé, mantém-se o registo, não ficando prejudicado nos direitos que adquiriu a título oneroso, como é o caso do Recorrente.
10. Se o terceiro adquire de boa fé (como é o caso do Recorrente), fazendo-o com base no registo, ocorre de imediato a situação que o Professor Oliveira Ascensão denomina por “aquisição pelo registo” ou “efeito atributivo do registo”: o negócio anterior não se convalida, é nulo e nulo permanece (nomeadamente na venda a non domino), mas o terceiro de boa fé recebe na sua esfera jurídica um direito que se tornou inquestionável, face à fé pública do registo e à norma expressa do CRP – artigo 17/2.
11. Sem prescindir, ainda que se admitisse que os registos das hipotecas a favor do Requerente da providência deveriam ressurgir e ser reinscritos, sempre se dirá que nunca a consequência do decretamento da providência seria o cancelamento do registo da aquisição e do registo da hipoteca a favor do aqui Recorrente, mas sim, a reinscrição de tais hipotecas com data anterior aos registos entretanto feitos e com o grau de prioridade que essa data anterior lhe conferiria.
12. Isto porque o facto de estarem inscritas as hipotecas em causa nunca impediria os titulares do direito de propriedade alienarem – os então BS e AP – tendo em conta o disposto no artigo 695.º do Código Civil: o proprietário dos bens hipotecados não precisa do consentimento do credor hipotecário para alienar, ainda que as hipotecas não sejam canceladas, uma vez que a consequência é apenas a de o eventual adquirente adquirir um bem onerado com hipotecas.
13. Os actos de alienação ou de oneração posteriores às hipotecas são inoponíveis ao credor hipotecário, não afetando a sua situação jurídica porque este goza de um direito de preferência que lhe é conferido pela prioridade registal. Para o credor hipotecário, a alienação ou a oneração a favor de terceiro é uma res inter alios acta.
14. Pelo que, também por esta via, a decisão que decretou a providência não tem o mínimo fundamento legal e aplicou mal a lei ao caso, não podendo, por isso, manter-se.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a sentença que decretou a providência e ordenando-se a manutenção dos registos que se encontram inscritos, (…)”.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nºs 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - a questão a decidir é a de saber se a providência concretamente decretada o não pode ser.
III. Matéria de facto
O tribunal proferiu a seguinte decisão em
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