Acórdão nº 30/21.9T8PVZ.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 23-02-2023

Data de Julgamento23 Fevereiro 2023
Ano2023
Número Acordão30/21.9T8PVZ.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2023:30.21.9T8PVZ.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
A..., Unipessoal, pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede na Maia, instaurou acção judicial contra B..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €59.507,50, acrescida de juros de mora desde a citação e de €92,50 por cada dia de privação de uso, gozo e fruição do veículo ..-XM-.. desde 08.01.2021 até pagamento da indemnização.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que é proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-XM-.. relativamente ao qual celebrou com a ré um contrato de seguro que cobria designadamente o furto do veículo, sendo que em 15-9-2019 o veículo foi furtado à autora, não mais tendo sido recuperado, razão pela qual a autora sofreu um prejuízo correspondente ao valor venal do veículo que era de €15.200,00 e encontra-se privada do uso do veículo desde essa data.
A ré foi citada e apresentou contestação defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que em resultado da averiguação que promoveu apurou um conjunto de circunstâncias várias que lhe geraram a convicção de que o sinistro dos autos não ocorreu da forma participada, não se tendo verificado um sinistro coberto pelo contrato.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Na douta sentença, mais precisamente na fundamentação da convicção formada pelo ilustre julgador (pág. 12) exarou-se que, e passamos a citar: “Acresce que a autora não apresentou qualquer documento comprovativo da utilização do veículo entre 08-07-2019 (data da última utilização do carro, de acordo com os elementos registados na chave digital do mesmo) e 15-09-2019 (data em que a autora afirma ter acontecido o furto), por exemplo, qualquer documento demonstrativo de o carro ter passado numa portagem de uma auto-estrada”.
2. Esta constatação contribuiu determinadamente para escorar a convicção do julgador quanto à dúvida que formou no seu espírito sobre a efectiva ocorrência do furto.
3. Trata-se de “facto”, que nunca antes foi falado no decorrer do processo e que somente surge, como “novidade” e “surpresa”, apenas no texto da fundamentação da sentença.
4. O documento cuja junção se pretende demonstra que o veículo furtado de matrícula ..-XM-.. passou numa portagem, em 08/08/2019, pelo menos.
5. Tal documento indica que o veículo circulou efectivamente após 08/07/2019, data da última utilização registada na denominada chave 0.
6. De modo que, tendo a viatura circulado, não é de excluir e é mesmo de supor que a avaria da chave que não permitiu a leitura tenha ocorrido quando esta se encontrava na posse desses averiguadores.
7. Sem embargo, nada permite concluir e/ou afirmar fundamentadamente que o veículo não podia circular com uso da chave cuja leitura não se tornou possível.
8. A junção do documento em causa torna-se, assim, necessária em virtude do julgamento e subsequente decisão proferida em primeira instância, sendo de admitir nos termos das disposições conjugadas dos artigos 651.º, n.º 1 e 423.º, n.º 3, ambos do C.P.C.
9. Nos termos do disposto nos arts. 662.º e 640.º do C.P.C., o Tribunal da Relação pode alterar a decisão sobre a matéria de facto, no caso vertente, uma vez que a apelante a impugnou, os depoimentos estão gravados e constam dos autos todos os elementos e documentos com base nos quais foi proferida.
10. Tendo em conta os depoimentos da legal representante da recorrente e das testemunhas AA, BB, CC, DD e EE, depoimentos estes constantes do sistema de gravação áudio do Citius, concatenados com os documentos constantes dos autos e com o documento ora junto, o tribunal “a quo” podia e devia ter julgado de modo diverso a matéria do ponto 6) da matéria de facto provada e os pontos I), II), IV), VI) e VI) da matéria de facto não provada.
11. A materialidade do ponto 6) deverá dar-se por não provada.
12. E a materialidade dos pontos I), II), IV), VI) e VI) da matéria de facto não provada deverá dar-se por assente e provada.
13. Portanto, espera-se deste Colendo Tribunal, que, fazendo uma apreciação crítica e conjugada das provas, altere a factualidade apurada nos moldes que se deixam preconizados.
14. Efectuadas tais alterações, nos moldes que se deixam sustentados, a acção deverá proceder.
15. A indemnização a pagar pela recorrida deverá, desde logo, abarcar o valor da viatura furtada, no montante de 15.200,00€, visto ser este o seu valor comercial e de mercado e visto também ser este o valor pelo qual estava segura.
16. Ademais, foi com base neste valor, que a recorrida aceitou, que esta calculou - e cobrou - o respectivo prémio de seguro.
17. E, provado que a recorrente utilizava habitualmente a viatura, deverá também ser ressarcida pela recorrida pelo dano correspondente à privação do respectivo uso.
18. Com efeito, quando alguém, como foi o caso da autora, celebra um contrato de seguro facultativo cobrindo o risco de furto do veículo tem a justa expectativa de que o capital correspondente ao valor da viatura lhe seja disponibilizado no prazo previsto no contrato, tendo em vista poder proceder e custear a aquisição de outra viatura.
19. A conduta da ré, ao declinar injustificadamente a realização da prestação reconduz-se a uma manifesta violação das regras da boa-fé, diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses da segurada/credora, aqui recorrente.
20. Esta violação em matéria de cumprimento das obrigações implica que a ré esteja obrigada a indemnizar a autora pelos prejuízos resultantes da sua conduta omissiva, indemnização esta que vai muito para além dos simples juros moratórios.
21. Efectivamente, vários e múltiplos acórdãos, quer do STJ, quer dos Tribunais da Relação, vêm reforçando e sedimentando um entendimento no sentido de que a seguradora tem que suportar os danos decorrentes do atraso injustificado na realização da prestação convencionada.
22. Conforme se decidiu, no douto Acórdão do STJ de 23.11.2017 (in ITIJ), relatado pelo Ilustre Conselheiro Távora Victor, entendeu-se que: “No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.” “A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato”. (-) “A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respectivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.”
23. Assim, com o furto da viatura, a autora ficou privada de a usar e fruir e de gozar as vantagens que esses uso e fruição proporcionavam.
24. E, por virtude da injustificada recusa da ré em indemnizar, a autora ficou privada do montante necessário à aquisição de nova viatura para substituir a que foi furtada.
25. É entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que a privação do uso de um veículo implica um custo, não só pelo facto de o seu proprietário ver o seu direito de propriedade afectado na sua plenitude, mas e também pelo facto de o uso dado ao bem, ter um valor patrimonial.
26. Como se diz no sumário do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/11/2009, proferido no processo 8860/06.5TBBRG.GI, in www.dgsi.pt: 3) O proprietário de um veículo tem o direito de usar, fruir e dispor da coisa (art. 1305.º do Cód. Civil), pelo que considera-se que a privação do uso e fruição constitui, de per si, um dano que justifica a reparação: o autor, por virtude da privação do veículo, aliada à circunstância de o réu não assumir a responsabilidade da reparação ou, assente que está a inviabilidade da reparação, a entrega de valor indemnizatório em sucedâneo, ficou, durante esse período de tempo, sem poder retirar da coisa os benefícios e utilidades que ela lhe proporcionava; 4) Este raciocínio vale tanto para as hipóteses em que é possível e viável a reparação do veículo, como para aquelas em que ocorre a perda total deste, não se vislumbrando motivos para distinguir entre ambas as situações: o dano resultante da destruição da coisa não consome o dano pela privação do uso.
27. A ré terá, pois, de indemnizar a autora pelos danos inerentes à privação do uso da viatura furtada, danos estes aos quais, com a sua conduta violadora das suas obrigações contratuais, nomeadamente da omissão do pagamento pontual da indemnização devida, deu causa.
28. Tais danos, de difícil quantificação exacta, deverão ser fixados mediante recurso a critérios de equidade, afigurando-se que, neste quadro, nada terá de exagerado o valor diário indicado na petição inicial.
29. A douta sentença recorrida violou, entre outras normas, os artigos 342.º do C.C. e 414.º do C.P.C.
Nestes termos, concedendo provimento ao presente recurso, revogando a douta sentença recorrida e alterando a factualidade apurada em conformidade com o exposto, e condenando a ré no valor peticionado, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã Justiça.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam
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