Acórdão nº 296/22.7YUSNT.L1-PICRS de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-03-10

Ano2023
Número Acordão296/22.7YUSNT.L1-PICRS
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

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I.–RELATÓRIO


Com entrada de requerimento de interposição de recurso perante a AUTORIDADE NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL (ANAC) em 26.09.2022 (remessa postal datada de 23.09.2022), DEUTSCHE LUFTHANSA AKTIENGESELLSCHAFT impugnou judicialmente decisões da referida Autoridade que, conforme referiu, lhe impuseram «uma coima única no valor de 3.000,00, 10.000,00, 3.300,00 e 250,00» EUR pela prática de contra-ordenações relativas à admissão a embarque nas suas aeronaves de passageiros não possuidores de teste laboratorial de rastreio da infecção por SARS-CoV-2.

O conteúdo do assim decidido foi transmitido à Arguida/Recorrente através de carta registada com aviso de recepção remetida pela ANAC a «Mr…. Chairman of Deutsche LufthansaAG» «Venloer Strabe 151-153 +50672 Cologne Germany», sendo que o aludido aviso de recepção foi subscrito através da aposição de uma rubrica ilegível com data de 23.08.2022.

O Tribunal «a quo» descreveu o que reputou serem os elementos relevantes para a sua decisão, o que enunciou nos seguintes termos:
1.– DEUTSCHE LUFTHANSA AKTIENGESELLSCHAFT veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL (doravante “ANAC”) no processo de contraordenação n.º 300/2021.
2.– O recurso foi remetido por correio enviado no dia 23.09.2022 (cf. fls. 97), tendo a Recorrente sido notificada da decisão final no dia 23.08.2022 (cf. fls. 56), ou seja, após o termo do prazo de vinte dias úteis a que alude o artigo 59.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), que terminou no dia 20.09.2022.

O mesmo órgão jurisdicional proferiu decisão com o seguinte conteúdo final:
7.– Face às asserções precedentes, conclui-se, conforme bem pugnam o Ministério Público e a ANAC, que o recurso apresentado é manifestamente intempestivo, verificando-se adicionalmente que não foi alegado qualquer justo impedimento.
8.–Termos, em que, não admito o recurso apresentado por ser intempestivo.

É dessa decisão que vem o presente recurso interposto pela Arguida, que alegou e apresentou as seguintes conclusões:
a.- A Recorrente considera que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo que não admitiu a impugnação judicial da coima aplicável à Arguida no processo n.º 296/2021 enferma de erro na interpretação e aplicação do direito, nomeadamente quanto à (in)tempestividade da impugnação judicial apresentada pela Lufthansa.
b.- Tendo a notificação sido entregue na sede no dia 23 de agosto de 2022, esta apenas foi efetivamente recebida pelo seu destinatário (Presidente do Conselho de Administração da Lufthansa) no dia 31 desse mês.
c.- Apenas a 31 de agosto a Lufthansa tomou conhecimento do ato.
d.- É, precisamente, para acautelar situações como aquela ora descrita que se considera ser aplicável a dilação de 15 dias úteis, prevista no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo – caso em que a impugnação judicial teria, forçosamente, de ser considerada tempestiva.
e.- Como nota prévia, é indiscutível – nem está aqui em causa – que o recurso de impugnação de decisão administrativa faz parte, ainda, da fase administrativa do processo, daí que se preveja, no artigo 62.º do RGCO, a possibilidade de a autoridade administrativa revogar a decisão que aplicou a coima até ao envio dos autos para o Ministério Público.
f.- A exigência legal de a impugnação judicial da decisão administrativa dever ser remetida para a autoridade administrativa que emitiu a decisão condenatória justifica-se precisamente porque esta poderá, em face dos argumentos que sustentam o recurso, decidir revogar a sua decisão – caso onde não haverá início da fase judicial do processo.
g.- É assim de concluir que a apresentação do recurso de impugnação judicial à autoridade administrativa não se traduz num ato praticado em juízo, e que o prazo e as normas aplicáveis à contagem do mesmo, dentro do qual o referido recurso deve ser apresentado, não configura um prazo judicial, mas sim puramente administrativo.
h.- Neste sentido já o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/94, que tem sido confirmado pela jurisprudência mais recente.
i.- Uma vez estabelecida a “natureza” do prazo, a sua contagem deve ser efetuada de acordo com as regras estabelecidas no Código de Procedimento Administrativo, visto serem estas as normas gerais aplicáveis à contagem de prazos administrativos.
j.- O recurso às regras de contagem de prazo previstas no Código de Procedimento Administrativo não depende da existência de uma qualquer lacuna.
k.- Pelo contrário, o acolhimento explícito, no artigo 60.º do RGCO, das regras de contagem do processo administrativo, vem reforçar a natureza administrativa do prazo, ao qual se devem aplicar as demais regras previstas no Código de Procedimento Administrativo – incluindo as dilações previstas no artigo 88.º.
l.- As regras previstas no Código de Procedimento Administrativo são, então, diretamente aplicáveis à fase administrativa dos ilícitos de mera ordenação social, pelo que a sua aplicação não implica qualquer negação do direito subsidiário previsto no artigo 41.º do RGCO (que se mantém naquelas situações onde se pode e deve manter).
m.-Neste sentido encontramos jurisprudência constante, como demonstram (a título exemplificativo) o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no Processo n.º 826/13.5TBMAI.P1, Relatora Maria dos Prazeres Silva e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no Processo n.º 243/09.1TBCPV.P1, Relatora Adelina Barradas de Oliveira.
n.- No caso do primeiro Acórdão, este versava sobre uma situação em tudo semelhante àquela ora em apreço: em ambos os casos estão em causa empresas transportadoras aéreas com sede no estrangeiro, que aí foram notificadas da decisão de aplicação de coima no âmbito de um processo de contraordenação movido pela mesma entidade administrativa (INAC, ora ANAC) e em ambos os casos estava em causa julgar a aplicabilidade da dilação prevista no CPA, prevista no mesmo artigo (73.º CPA, ora 88.º depois de renumerado) ao prazo de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima previsto no artigo 59.º do RGCO.
o.- Sendo que o Tribunal da Relação do Porto decidiu que “…se o recurso de impugnação judicial integra a fase administrativa do processo contraordenacional e se o prazo aplicável regulado nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem natureza administrativa, não se vislumbram motivos atendíveis para recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA [atual artigo 88.º], que está inserida no regime geral dos prazos administrativos, à semelhança do que sucede com as regras previstas no artigo 72.º do mesmo diploma legal, e que só parcialmente foram transpostas para o artigo 60.º do RGCO” (negrito nosso).
p.- O artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo é uma norma geral aplicável à contagem dos prazos administrativos, que encontra justificação na previsível maior dificuldade de acesso a elementos e preparação da defesa por parte dos interessados residentes no estrangeiro, resultante da distância a que se encontram do local onde decorre o procedimento.
q.- No caso em concreto, onde a notificação foi remetida para a sede da Lufthansa, na Alemanha, o prazo de 20 dias úteis não se apresenta como razoável para que o interessado tenha condições práticas para impugnar judicialmente a decisão da autoridade administrativa.
r.- Assim, a interpretação dos artigos 59.º e 60.º do RGCO deve assentar no uso das regras gerais de interpretação consagradas no artigo 9.º do Código Civil, onde se encontra pleno fundamento para se aplicar, na contagem do prazo daí resultante, as dilações previstas no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo.
s.- Com efeito, (i) situando-se o ato a praticar ainda no âmbito da fase administrativa do processo contraordenacional, (ii) visando impugnar um ato administrativo (decisão de aplicação de coima por entidade administrativa), (iii) tendo o recurso de ser obrigatoriamente apresentado perante a autoridade administrativa que aplicou a coima e (iv) considerando que, até ao envio dos autos, a autoridade administrativa pode revogar a decisão de aplicação de coima, não se vê como é que não serão aplicáveis as regras de contagem de prazo previstas no procedimento administrativo.
t.-Ainda para mais quando essa ignorância das normas aplicáveis afeta, desproporcionalmente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos – cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) –, nomeadamente o princípio das garantias de defesa da Recorrente na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º da CRP, colidindo ainda com os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito.
u.-Ainda para mais quando essa ignorância das normas aplicáveis afeta, desproporcionalmente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos – cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) –, nomeadamente o princípio das garantias de defesa da Recorrente na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º da CRP, colidindo ainda com os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito.
v.-Pelo que o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão caso se mantenha pela não admissão do recurso – viola de forma intolerável os princípios da confiança, boa fé e da segurança jurídica, consagrados nos artigos 2.º e 226.º da CRP, impedindo a Recorrente de reagir judicialmente contra uma decisão sancionatória da ANAC e, assim, violando o seu direito à tutela jurisdicional efetiva.
w.-Por tudo o que ficou dito, deverá ser concedido provimento ao recurso, sendo que deverá ser, a final, revogada a sentença recorrida e ordenada
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