Acórdão nº 27851/19.0T8LSB.L2-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-12-07

Ano2023
Número Acordão27851/19.0T8LSB.L2-2
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

AA propôs contra BB esta ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a sua condenação a entregar-lhe a quantia de €50.071,11, acrescida de juros de mora vincendos até efetivo pagamento, relativa a crédito adquirido em contrato de cessão de crédito.
Citado, o R contestou por exceção, pedindo a absolvição do pedido.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação procedente, condenando o R a entregar ao A a quantia de €49.879,79, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa de 4%, desde 28.10.2019 e até efetivo e integral pagamento.
Inconformado com essa decisão, o R dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua anulação e substituição por acórdão que absolva do pedido, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
I. Antes da cessão do crédito pela FIDELIDADE ao aqui autor, o réu foi declarado falido por sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa, de 12-11-1999, tendo sido designado um prazo de 30 dias para os credores reclamarem os seus créditos [artigo 128.º, n.º 1, al. e), do CPEREF].
II. A FIDELIDADE nunca reclamou o seu crédito nos autos de falência do réu, que vieram a ser declarados findos, na sequência do encerramento da fase de liquidação de bens da massa insolvente, por despacho de 19-01-2009.
III. Segundo a tese sustentada pelo tribunal a quo, a reabilitação do falido singular, nos termos do artigo 239.º/1 do CPEREF, não implica a extinção (ou modificação) dos créditos (anteriores à declaração de falência) não satisfeitos ou nem tão-pouco reclamados na pendência da falência, donde decorreria que o falido, uma vez reabilitado, poderia ver imediatamente a sua falência renovada por virtude desses créditos, e assim sucessivamente até que a morte, e apenas a morte, enfim, o libertasse dos mesmos.
IV. Ora, como é evidente, tal solução seria inadmissível, senão à luz imediata do CPEREF - que visava não apenas tutelar os interesses dos credores, mas também e desde logo os dos próprios falidos -, à luz mais alta do sistema jurídico e, em especial, da Constituição.
V. Com efeito, a vingação de tal tese significaria a admissão da condenação de pessoas físicas à falência perpétua, numa fatal violação do princípio, fundante do nosso Direito, da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP).
VI. Destarte, uma interpretação do disposto no artigo 239.º/1 do CPEREF, como a sufragada pelo tribunal a quo, no sentido de que após a extinção e a consequente reabilitação da pessoa física falida, esta continua a responder pelos créditos anteriores à declaração da sua falência, é inconstitucional por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Lei Fundamental.
VII. Efectivamente, sendo a pessoa humana, simultaneamente, o fundamento primeiro e o fim último do Direito, seria impensável que este, numa completa inversão de valores, viesse a permitir a sua perpétua subjugação a interesses de ordem financeira.
VIII. Em virtude da inadmissibilidade constitucional daquela interpretação, ter-se-á de entender, in casu, que, não tendo a FIDELIDADE reclamado e feito valer o crédito - posteriormente cedido, em parte, ao autor e agora por este peticionado - no processo de falência do réu, o mesmo, com a cessação dos efeitos da falência, extinguiu-se ou, pelo menos, modificou-se em obrigação natural, não mais sendo exigível.
IX. Ainda que assim não se entendesse, o que só por redobrada cautela do patrocínio se admite, sempre seria de reputar o exercício do direito de crédito, pelo autor, como abusivo - o que foi outrossim descartado pelo tribunal a quo, com o argumento de que seria necessário «algo mais» para além da expectativa do réu de não vir a ser responsabilizado pela obrigação em causa.
X. Ora, esse «algo mais» são os fundamentos, para além do dado pela mera passagem do tempo, que o tribunal a quo pura e simplesmente desconsiderou.
XI. Efectivamente, não é a passagem do tempo isoladamente considerada que funda o abuso do direito do autor; é essa passagem em conjugação com o facto de o próprio réu ter sido titular de direitos de crédito, relativamente ao autor, por virtude de ter satisfeito pessoalmente obrigações sociais de que ambos eram garantes, obrigações estas que, como está demonstrado nos presentes autos, levaram inclusivamente à sua falência.
XII. Com efeito, uma actuação como a do autor, que, sabendo que o réu pagou pessoalmente várias dívidas sociais, inclusivamente superiores àquela aqui em causa, por força de que adquiriu sobre ele os correspondentes direitos de regresso, que nunca exerceu e que por isso entretanto prescreveram, vem, volvidos quase dezassete anos, e sem que nada o fizesse prever, exercer um direito de crédito que sobre ele adquiriu em virtude do pagamento de uma outra dívida social, é manifestamente atentatória da boa-fé - não só do prisma da tutela da confiança, mas também do da primazia da materialidade subjacente, que postula a justiça do caso concreto, justiça esta que seria ferida de morte caso a pretensão do autor viesse a proceder.
*
O apelado contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
O Tribunal a quo julgou:
A.1. Provados os seguintes factos:
1) A Companhia de Seguros Fidelidade S.A. intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra DIMPOR - Comércio, Exportação e Importação, Lda. e contra o ora A. e o ora R., que correu os seus termos na 1.ª Secção da 13.ª Vara do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, sob n.° 364/95.
2) Na referida acção, foram os ali Réus condenados a pagar solidariamente à Companhia de Seguros Fidelidade a quantia de €97.050,76 (19.456.930$00), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos sobre aquela quantia, à taxa legal de 15% até integral pagamento.
3) A condenação do ora A. e do ora R. foi integralmente confirmada por Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 14.11.2000.
4) A Companhia de Seguros Fidelidade propôs contra a sociedade DIMPOR, o ora A. e o ora R., execução sumária para pagamento de quantia certa com base na referida sentença condenatória.
5) No âmbito da referida execução, o ora A. celebrou com a Companhia de Seguros Fidelidade”, em 30.12.2002, um acordo, que intitularam de “Acordo de Pagamento e Cessão de
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