Acórdão nº 2573/21.5T8VNG.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 27-10-2022

Data de Julgamento27 Outubro 2022
Ano2022
Número Acordão2573/21.5T8VNG.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Apelação nº 2573/21.5T8VNG.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. AA interpôs ação de prestação espontânea de contas contra BB, pedindo:
a) seja declarado que as contas que a Autora apresenta relativamente ao período que vai de 01/06/2014 até 06/04/2021 e relativas à administração do imóvel comum do dissolvido casal, sejam consideradas válidas e aprovadas, apresentando as mesmas um saldo devedor ou negativo de 43.051,60€;
b) e o Réu, em consequência, seja condenado a pagar à Autora, ½ do valor desse saldo negativo, ou seja, a quantia de 21.525,80€, ou do saldo que nos autos se venha a apurar e fixar como saldo devedor a favor desta, ½ que corresponde à quota parte que o Requerido possui no património comum do extinto casal.
Em resumo, fundamentou o seu pedido alegando ter sido casada com o Réu, casamento entretanto dissolvido por divórcio em 07/07/2015, tendo a separação de facto ocorrido em 01/06/2014; ainda não foi efetuada a partilha do património comum do casal; o Réu tem solicitado à Autora que lhe preste contas relativas à administração do imóvel que integra o património comum e no qual a Autora ainda vive com os filhos.
Em contestação, para além de impugnação motivada (designadamente que o referido imóvel não é um bem comum), o Réu suscitou o erro na forma de processo, a manifesta improcedência dos pedidos, o abuso de direito e impugnou o valor dado à ação.
Ouvida para o efeito, a Autora respondeu às exceções, sustentando a respetiva improcedência.
Terminados os articulados, a M.mª Juíza proferi despacho, em 21/09/2021 em que, para além de outras considerações, escreveu:
«A prestação de contas relativas a uma pretensa administração pelo ex-cônjuge dos bens comuns, pressupõe, precisamente, a natureza comum dos bens em causa. (…)
Das posições assumidas pelas partes nos autos decorre que a natureza do bem imóvel (bem próprio ou comum) se encontra controvertida. E, como resulta do exposto supra, a solução de tal questão, nesta fase, é imperativa para que possam prosseguir os autos. Isto porque, apenas no caso de o bem imóvel em causa ter a natureza de bem comum, é que a autora terá obrigação de prestar contas quanto à administração feita desde a data do divórcio, podendo fazê-lo espontaneamente.
Nos termos do disposto no artigo 942.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, «Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; (…).
Impõe-se, assim, produzir prova com vista à determinação da natureza do bem imóvel em causa.».
Posto o que, agendou os diversos meios de prova a produzir.
Por despacho datado de 27/10/2021, a M.mª Juíza pronunciou-se ainda sobre outros meios de prova.
Por despacho datado de 31/03/2022, a M.mª Juíza ordenou a notificação das partes, ao abrigo do art.º 3º nº 3 do CPC, do seguinte:
«Após estudo prévio com vista ao conhecimento das exceções invocadas nos autos, o tribunal deparou-se com a possibilidade de surgir uma questão nova relativamente à qual as partes ainda não foram notificadas para se pronunciarem.
Tal questão reporta-se à possibilidade de se verificar a exceção de uso indevido da ação de prestação de contas quando as partes não estão de acordo quanto à natureza própria ou comum do bem imóvel administrado pela autora, questão essa que carece de ser discutida previamente noutra sede que não o processo de prestação de contas».
Em resposta a esse convite, a Autora arguiu a nulidade do despacho.
A M.mª Juíza proferiu então despacho em que julgou improcedente a invocada nulidade.
Na mesma data, proferiu sentença em que decretou a absolvição da instância do Réu da instância, por considerar procedente a exceção dilatória inominada do uso indevido do processo.

2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1- Em 08.04.2021 a Autora instaurou acção especial de prestação espontânea de contas contra o Réu, com base na administração de imóvel comum do extinto casal, mormente da casa de morada de família constituída por prédio urbano sito em ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial sob o artigo ...44, adquirido na constância do casamento com recurso a crédito hipotecário concedido pelo Banco 1... S.A. no montante de 300.000,00€ e que se destinou ao pagamento integral do preço de aquisição desse imóvel, imóvel que ficou a constar no processo de divórcio por mútuo consentimento da relação especificada dos bens comuns do casal, elaborada pelo Réu e assinada por ambos os ex-cônjuges, tendo sido atribuído à Autora o uso da referida casa de morada de família, sem qualquer contrapartida ou condição;
2- O Réu apresentou contestação a 14.05.2021, invocando diversas excepções, mormente o erro na forma do processo, alegando que o processo de prestação de contas não é o meio próprio “para conhecimento/definição/reconhecimento dos créditos e débitos cuja aprovação vem peticionada pela A. (…)”, discutindo ainda a natureza do bem imóvel, alegando que é bem próprio da Autora, pelo que, no entendimento do Réu, não cabe no âmbito da acção de prestação de contas a discussão sobre a natureza comum ou própria do imóvel e que não existe a obrigação de prestação de contas;
3- A Autora respondeu, quanto à excepção de erro na forma de processo (e às demais excepções invocadas na contestação), reafirmando que os “presentes autos seguem já os termos do processo comum declarativo, até porque na prestação espontânea de contas está em causa o exercício de um direito e um dever e não o cumprimento de uma obrigação” e que os factos que o Réu alega como suposto fundamento para a propriedade exclusiva do bem imóvel objecto dos autos ou já estão confessados ou não são susceptíveis de prova testemunhal ou absolutamente irrelevantes para a definição da propriedade comum do imóvel;
4- Findos os articulados o Tribunal recorrido proferiu despacho a 21 de Setembro de 2021 em que se debruçou sobre o objecto do processo, sumariou as pretensões da Autora e a oposição do Réu e decidiu quanto às questões levantadas, pronunciando-se expressamente da seguinte forma:
-“Até que se proceda à partilha, o ex-cônjuge que fique a administrar bens comuns do dissolvido casal, estará obrigado a prestar contas dessa administração desde a data de produção de efeitos do divórcio (cf. artigo 1789º, nº 1, do Código Civil);
- Das posições assumidas pelas partes nos autos decorre que a natureza do bem imóvel (bem próprio ou comum) se encontra controvertida. E, como resulta do exposto supra, a solução de tal questão, nesta fase, é imperativa para que possam prosseguir os autos. Isto porque, apenas no caso de o bem imóvel em causa ter a natureza de bem comum, é que a autora terá obrigação de prestar contas quanto à administração feita desde a data do divórcio, podendo fazê-lo espontaneamente.
- Nos termos do disposto no artigo 942º, nº 3, do Código de Processo Civil, «Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294º e 295º; (...)».
- Impõe-se, assim, produzir prova com vista à determinação da natureza do bem imóvel.”
5- Em face disso, o Tribunal designou dia para a tomada de declarações das partes, depoimento de parte e inquirição de testemunhas a fim de decidir “a natureza do bem imóvel (bem próprio ou comum)” em causa;
6- Nem a Autora nem o Réu impugnaram tal despacho nem se opuseram à possibilidade da decisão de tal questão ser decidida incidentalmente nestes autos.
7- Por requerimentos datados de 13.10.2021 e 11.02.2022 a Autora foi alertando o Tribunal, sempre sem resposta, para o facto de estarem já assentes os factos necessários à decisão incidental da natureza comum do imóvel e de não ser admissível prova testemunhal quanto a alguns dos factos alegados pelo Réu, por contrários ao conteúdo de documentos autênticos.
8- O Tribunal a quo admitiu e rejeitou meios de prova em despacho de 27 de Outubro de 2021 tendo demorada e detalhadamente tomado posição quanto ao objecto de depoimento de parte da Autora e restringindo significativamente o objecto proposto pelo Réu para o mesmo alegando: “os demais configuram matéria conclusiva, assente, de direito, cuja prova carece de documento ou irrelevantes para a questão a decidir no âmbito da fase declarativa da presente ação especial de prestação de contas.”;
9- Por despacho de 02.03.2022, o Tribunal determinou que “face aos elementos constantes dos autos consideramos desnecessária a referida produção de prova testemunhal, cabendo em primeira linha tomar posição quanto à matéria de excepção que se encontra controvertida” dando sem efeito a diligência de inquirição de testemunhas;
10- Contudo, por douto despacho de 31.03.2022 o Tribunal entende que:
“deparou-se com a possibilidade de surgir uma questão nova relativamente à qual as partes ainda não foram notificadas para se pronunciarem. Tal questão reporta-se à possibilidade de se verificar a excepção de uso indevido da acção de prestação de contas quando as partes não estão de acordo quanto à natureza própria ou comum do bem imóvel administrado pela autora, questão essa que carece de ser discutida noutra sede que não o processo de prestação de contas”.
11- Nesse seguimento, a Autora arguiu a nulidade do despacho, quer por falta de fundamentação, quer pela não indicação da solução de direito sobre a qual quer o Tribunal que as partes se pronunciem e respectivos fundamentos, quer, ainda, por violação do princípio das decisões surpresa;
12- Por douta sentença de 02.06.2022, o Tribunal julga improcedente a nulidade arguida e julga procedente a excepção dilatória inominada do uso indevida do processo e, consequentemente, absolve o Réu da instância;
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