Acórdão nº 2338/13.8TBGMR.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2023-03-16

Ano2023
Número Acordão2338/13.8TBGMR.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães

I. Relatório

Nestes autos foi por sentença datada de 16.08.2013 foi declarada a insolvência de AA, a seu pedido.
Ao apresentar-se à insolvência a insolvente requereu igualmente a exoneração do passivo restante.
Por despacho datado de 27.11.2013, a fls. 124ss, transitado em julgado, foi tal incidente liminarmente admitido, tendo sido fixado como rendimento disponível todo o montante mensal que excedesse os €550 mensais.
O processo de insolvência foi encerrado em 15.01.2019, por despacho a fls. 282, ali se tendo expressamente consignado que o período de cessão se considerava iniciado em 01.07.2017, ante o disposto no art. 6.º/6 DL 79/2017, de 30.06.
O Exmo. Sr. Fiduciário remeteu aos autos os relatórios a que alude o art. 61.º/1 CIRE (aplicável ex vi art. 240.º/2 CIRE).
Foram ouvidos a insolvente, a fiduciário e os credores reconhecidos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244.º/1 CIRE.
*
Em 7.7.2022, foi proferida decisão de recusa da exoneração do passivo restante, no essencial, com a seguinte fundamentação :

De todas as condições legalmente impostas para que, findo o período de cessão, ao insolvente seja concedida a requerida exoneração do passivo restante conclui-se que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) é exigido ao insolvente um esforço económico-financeiro elevado, para que os seus credores sejam satisfeitos na maior medida possível (até porque nas mais das vezes a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante é efectuada contra vontade expressa dos credores), já que, findo esse período, os créditos que não tiverem logrado pagamento ficarão por liquidar.

Terminado o período de cessão, o juiz deve recusar a exoneração quando (art. 243.º/1 CIRE ex vi art. 244.º/2 CIRE):

- O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
-Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas no art. 238.º/1/als. b), e) e f) CIRE, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
- A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação da insolvência.

Uma das obrigações previstas no referido art. 239.º CIRE é precisamente a de entrega ao fiduciário a parte dos rendimentos objecto de cessão, quando por si (insolvente) recebida (cfr. art. 239.º/4/al. c) CIRE).
Isto posto, voltemos ao caso dos autos.
Provado está que por despacho datado de 27.11.2013, a fls. 124ss, foi fixado como rendimento disponível todo o montante mensal que excedesse os €550/mês.
Pese embora se tenha igualmente provado que a insolvente facturou mensalmente, durante o período de cessão (com excepção dos meses de Agosto dos anos de 2017, 2018 e 2020 e de Abril também do ano de 2020), valores superiores a €505, o certo é que não se pode afirmar que esse foi o rendimento que a mesma teve à sua disponibilidade em cada um desses meses.
Entendo que, analogicamente, para determinação do rendimento efectivamente disponível da insolvente deve aplicar-se o critério previsto no art. 31.º/1/al. a) CIRS para determinação do rendimento tributável: 15% do valor.
Aplicando esse factor à facturação mensal da insolvente, constata-se que o rendimento da insolvente ultrapassou os €505/mês nos meses de Julho de 2018 (€7.125 x 0,15% = €1.068,75), Outubro de 2018 (€4.130 x 0,15% = €619,50), Junho de 2019 (€5.169,50 x 0,16% = €775,43), Julho de 2019 (€4.777 x 0,15% = €715,55), Maio de 2020 (€3.923 x 0,15% = €588,45), Maio de 2021 (€4.260 x 0,15% = €639) e Fevereiro de 2022 (€4.605 x 0,15% = €690,75).
Efectuados os cálculos, a insolvente deveria ter cedido à fidúcia €1.562,43 (€563,75 no mês de Julho de 2018, €114,50 em Outubro de 2019, €270,43 no mês de Junho de 2019, €210,55 no mês de Julho de 2019, €83,45 no mês de Maio de 2020, €134 no mês de Maio de 2021 e €185,75 no mês de Fevereiro de 2022)
Contudo, ficou provado que a insolvente não fez qualquer entrega ao fiduciário, o que consubstancia violação da obrigação imposta pelo já referido art. 239.º/4/al. c) CIRE.
Tal violação da obrigação de entrega foi feita pelo menos a título de negligência grave, já que a insolvente tinha meios que lhe permitiam cumprir a essa obrigação.
Essa violação impossibilitará o Exmo. Sr. Fiduciário de dar cumprimento ao disposto no art. 241.º/1 CIRE, mormente de distribuir pelos credores reconhecidos os valores que lhe deveriam ter sido entregues, com evidente prejuízo para aqueles, que não virão os respectivos créditos satisfeitos nem sequer parcialmente (algo que estaria subjacente à exoneração do passivo restante).
Consequentemente, ao abrigo do disposto no art. 243.º/1/al.a) CIRE, recuso a exoneração do passivo restante requerida por AA.
Custas pela insolvente.
Notifique.
Cumpra o disposto no art. 247.º CIRE.”
**
Inconformada, a insolvente apelou desta decisão, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.
Nos presentes autos foi proferido Despacho/Sentença em que se recusou à insolvente a exoneração final do passivo restante;
2.
Os fundamentos de facto residem na circunstância do tribunal recorrido ter entendido que a insolvente deveria ter entregue quantias que, segundo o Tribunal, excediam o rendimento disponível para insolvente, nos meses de Julho 2018, Outubro 2018, Junho 2019, Julho 2019, Maio 2020, Maio 2021, Fevereiro de 2022.
3.
A fundamentação de direito assenta na convicção do Tribunal recorrido de que a insolvente tinha meios para entregar, cumprir a obrigação, e não o fez, pelo menos, a título de negligência grave.
4.
O despacho/sentença de que se recorre não aplicou correctamente os factos e o direito pelo que deverá ser revogada de modo a fazer-se justiça.
5.
Os factos provados não são suficientes e idóneos a retirar deles as conclusões do tribunal recorrido que fundamentaram a decisão.
6.
E não são suficientes porque existem outros no processo que excluem a existência da obrigação e consequentemente a culpa na falta de cumprimento da obrigação emergente do Despacho/Sentença.
7.
Do rol dos factos que o Tribunal julgou provados para proferir o Despacho/Sentença de recusa não consta nenhum que diga respeito aos pareceres do Fiduciário.
8.
Ora, os factos atinentes aos pareceres do Fiduciário são relevantíssimos para que o Tribunal possa decidir sobre a existência da obrigação, da falta de cumprimento e da culpa inerente à falta de cumprimento.
9.
Assim, o fiduciário emitiu pareceres, dois deles em 2019, 2020, 2021 e 2022, contendo, todos eles, a menção de que a insolvente não tinha que pagar (entregar) qualquer valor ao fiduciário.
10.
Os pareceres do fiduciário foram emitidos e encontram-se nos autos com as referências que se indicam:
13/0/2019, referência Citius ...33;
25/08/2020, referência Citius, ...97;
29/06/2021, referência Citius, ...13;
11/05/2022, referência Citius, ...93.
11.
Dados os pareceres, a insolvente jamais foi notificada para entregar quaisquer quantias, quer pelo fiduciário quer pelo tribunal.
12.
Cabe dizer que o critério adoptado pelo fiduciário foi o cálculo do produto da facturação anual por 15% a dividir por doze meses; caso o valor médio mensal não excedesse o valor fixado, o fiduciário entendia não ser de entregar qualquer valor.
12-A.
O critério adoptado pelo fiduciário para a determinação do valor médio mensal em base anual, jamais foi contestado pelo Tribunal e pelos credores,
13.
Bem assim como os pareceres de que à insolvente não eram exigidos quaisquer pagamentos.
14.
O fiduciário emitiu parecer favorável à exoneração final do passivo restante.
15.
A ausência de pronúncia dos credores para a eventual recusa da exoneração do passivo restante; o parecer favorável à exoneração do passivo emitido pelo fiduciário; a ausência de liquidação de qualquer quantia a entregar pela insolvente; a ausência de notificação para entregar, fizeram crer na insolvente que o Despacho final de exoneração fosse no sentido positivo, isto é, da exoneração.
16.
Pelo que, face ao que consta nos autos e aos fundamentos enunciados na conclusão anterior, o despacho/Sentença em recurso é uma decisão surpresa no sentido exposto: adopta uma solução jurídica que a insolvente não tinham obrigação de prever, quando lhes não era exigível que a houvesse perspectivado no processo.
17.
Decisão que viola o princípio do pedido, do dispositivo, uma vez que o processo de insolvência é dos credores e para proteger credores;
18.
Viola o principio do contraditório porque se afigura que, dada a importância da decisão e o contexto processual em que é prolactada, impunha, por necessidade, a audição da insolvente, tal como dispõe o artigo 3.º n.º 3 do CPC.
19.
E viola, também, o princípio da cooperação processual, bem como o principio a um processo equitativo.
20.
Como diz Lebre de Freitas no artigo “em torno de uma revisão do direito processual civil”:«O princípio do contraditório não é, por exemplo, apenas aquele que parece resultar dos arts. 3.º e 517.º do CPC, mas mais latamente, a garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influência em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo se pressintam como potencialmente relevantes para a decisão»
21.
Por tudo o exposto, a obrigação de entrega do excedente do rendimento fixado nunca surgiu como obrigação exigível à insolvente.
22.
E se essa obrigação não nasceu, veja-se a posição do fiduciário não contraditada pelos credores e pelo Tribunal, a falta de cumprimento nunca se poderá...

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