Acórdão nº 2238/23.3T8GMR-A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 19-12-2023

Data de Julgamento19 Dezembro 2023
Ano2023
Número Acordão2238/23.3T8GMR-A.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

Através da presente ação, a autora pretende que os réus sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 227.073,73, correspondente ao preço devido (e respetivos juros) como contrapartida pela transmissão do direito de propriedade que, através de contrato de compra e venda, celebrado por escritura pública de 17 de Julho de 2012, lhes fez do direito de propriedade sobre os seguintes prédios:

a) Prédio urbano: sito lugar da ..., freguesia ... (...), do Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09.... ..., inscrito na matriz ...31;
b) Prédio urbano (e respetivo recheio): sito lugar da ... ou ..., da freguesia ... (...), do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...74.... ..., inscrito na matriz sob artigo ...50;
c) Prédio rústico: denominado “Campo ...”, sito no lugar ..., freguesia ..., do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...58/..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...3.

Pretende ainda que os réus sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização de € 2.000,00 pelos danos não patrimoniais que sofreu em resultado do incumprimento da referida obrigação.
Para tanto, alegou, em síntese, que: por escritura pública celebrada no dia 17 de Julho de 2012, a autora vendeu aos réus o direito de propriedade sobre os prédios urbanos e rústico identificados em 1.º da petição inicial, e o recheio do segundo dos prédios urbanos ali referidos e que, ao contrário do que declarou nessa escritura, nunca recebeu dos réus o referido preço (global de € 158.875,00), o qual deveria ser pago no prazo de oito dias; esse comportamento dos réus causou na autora grande sofrimento e revolta, o que lhe tem vindo a causar desgaste emocional e humilhação.
Regularmente citados, os réus apresentaram contestação, na qual, em súmula: arguiram, em primeiro lugar, a excepção de caso julgado, com o argumento de que a presente acção foi intentada depois de ter sido julgada improcedente a acção com o n.º 6639/18.... e que lhe era vedado à autora, depois de ter pedido a invalidade do contrato celebrado com os réus com base em simulação, vir agora sustentar que formalizou um efetivo contrato de compra e venda; em segundo lugar, afirmaram que entregaram o preço à autora, tendo esse facto sido confessado na escritura; em terceiro, pediram a condenação da autora como litigante de má-fé, em multa exemplar e em indemnização no montante de € 2.500,00, correspondente às despesas e honorários suportados com a presente lide.
A autora exerceu o contraditório quanto à excepção de caso julgado, pronunciou-se sobre o pedido de condenação como litigante de má-fé e pediu a condenação dos réus a esse título em multa e indemnização nunca inferior a € 5.000,00.
Dispensada a realização de audiência prévia, proferiu-se despacho saneador (em 16.06.2023), no qual se afirmou a validade e regularidade da instância, tendo-se julgado improcedente a excepção dilatória de caso julgado invocada pelos réus.

Mais se determinou o seguinte objecto do litígio:

a) saber se, ao contrário da confissão exarada na escritura pública a autora não recebeu dos réus o preço devido como contrapartida pela transmissão do direito de propriedade;
b) saber se, em consequência disso, a autora sofreu danos não patrimoniais graves;
c) saber se a autora alegou dolosamente factos desconformes com a verdade.

E quanto aos temas da prova, afirmou-se o seguinte:
“Estando provado, por documento autêntico, o conteúdo das declarações emitidas pelas partes que corporizam o alegado contrato de compra e venda, a prova deve recair sobre os factos que substanciam as seguintes questões:
1. Não pagamento do preço devido à Autora;
2. Estado de depressão em que a Autora ficou em resultado do não cumprimento dessa obrigação;
3. Pagamento do preço devido à Autora (litigância de má-fé).”.

No que respeita aos requerimentos de prova, foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimentos de prova
Consigna-se que, conforme entendido em STJ de 10.12.2022, 286/21.7T8LLE, “há que ter em consideração que o artigo 393.º, n.º 2, do Código Civil, proíbe a produção de prova testemunhal quando o facto estiver plenamente provado, o que sucede, por força do disposto no reinterpretado artigo 358.º, n.º 2, do Código Civil, relativamente à confissão extrajudicial escrita, dirigida à parte contrária. Esta proibição é ainda extensível à prova por presunção judicial, nos termos do artigo 351.º do Código Civil. Considerando esta restrição legal à prova do contrário do que foi confessado em documento escrito dirigido à parte contrária, a força probatória plena conferida pelo artigo 358.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, é uma força probatória plena qualificada, uma vez que ela apenas poderá ceder perante a prova do contrário, desde que esta esteja suportada em meios de prova não proibidos (v.g. por documento ou confissão judicial).
Como vimos acima, algumas decisões deste Supremo Tribunal de Justiça, posição que foi seguida pelas decisões das instâncias neste processo, efetuando uma interpretação restritiva da proibição contida no artigo 393.º, n.º 2, do Código Civil, permitem, ainda, na demonstração do contrário do confessado, a utilização de prova testemunhal ou por presunção judicial, como prova complementar de um início de prova escrita, estendendo a interpretação que tem sido seguida quase unanimemente pela jurisprudência e por alguma doutrina, relativamente às proibições de prova que constam do artigo 394.º do Código Civil.
Se essa interpretação restritiva é perfeitamente compreensível quando aplicada às proibições de prova estabelecidas no artigo 394.º do Código Civil, ela já não se justifica quando se procura estendê-la às proibições de prova testemunhal contidas no artigo 393.º do mesmo diploma, conforme se explicou na fundamentação do recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.03.2021, que passamos a reproduzir: Efetivamente, apesar da proposta de Vaz Serra constante dos trabalhos preparatórios do Código Civil, no sentido de, expressamente, relativizar a proibição da prova testemunhal nos casos previstos no artigo 394.º do Código Civil, não ter sido acolhida, logo na 1.ª Revisão Ministerial do seu Anteprojeto, ela veio a ser seguida como uma interpretação restritiva justificada daquele preceito, admitindo-se a valoração de prova testemunhal como prova complementar de um início de prova escrita ou retirada de circunstâncias que revelem a existência da declaração negocial a provar.
No entanto, esta interpretação restritiva não é extensível à proibição constante do artigo 393.º, do Código Civil, onde as razões que justificam a proibição da prova testemunhal são diversas das que presidem às impostas no artigo 394.º do mesmo diploma.
Enquanto no primeiro destes dispositivos se procura assegurar a eficácia da imposição da forma escrita pela lei ou por estipulação das partes, a qual não deve ser fragilizada, no segundo visa-se evitar os perigos da falibilidade e da manipulação, da prova testemunhal, perigos esses que, nesta interpretação, são atenuados pela existência de um início de prova escrita ou de circunstâncias que revelem o facto a provar.
Aliás, se consultarmos o articulado proposto por Vaz Serra no seu Anteprojeto verificamos que este apenas relativizava essa proibição para as situações atualmente previstas no artigo 394.º, do Código Civil, delas excluindo as que constam do artigo 393.º, do mesmo diploma, uma vez que o n.º 1, do artigo 49.º (A prova por testemunhas das convenções referidas nos §§ 3.º e 4.º do artigo anterior é admitida quando, em consequência de haver um começo de prova por escrito, proveniente daquele contra quem a ação é dirigida ou do seu representante ou da qualidade das partes, da natureza do contrato ou de outra circunstância, seja verosímil que tenham sido feitas as ditas convenções) apenas se reporta às convenções dos §§ 3.º e 4.º (contrárias ou adicionais ao conteúdo de um documento autêntico ou de um documento particular tido como como verdadeiro ... anteriores ou contemporâneas da formação do documento ou posteriores à sua formação), atualmente referidas no n.º 1, do artigo 394.º, do Código Civil, excluindo deliberadamente as situações referidas nos §§ 1.º e 2.º, do mesmo artigo 48.º (se por disposição da lei ou estipulação das partes, o negócio jurídico dever ser provado por escrito ou for nulo se não revestir a forma escrita ... e quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio pleno de prova), correspondentes ao que atualmente consta dos n.º 1 e 2, do artigo 393.º, do Código Civil.
Acresce ainda que, se lermos a fonte que no direito comparado inspirou esta relativização da proibição da prova testemunhal – o artigo 2274., 1), do Código Civil Italiano – verificamos que ele também apenas admite a prova testemunhal como prova complementar nas situações que se encontram previstas nos artigos 2272. e 2273, correspondentes ao disposto no artigo 394.º, n.º 1, do nosso Código Civil, excluindo propositadamente as proibições de prova testemunhal previstas no artigo 2275., correspondente ao artigo 393.º, n.º 1, do nosso Código Civil.
Não tem apoio e não se justifica, pois, a extensão da interpretação restritiva, habitualmente feita na leitura do artigo 394.º do Código Civil, às proibições contidas no artigo 393.º, n.º 1 e 2, do Código Civil.
Acrescentamos que, no nosso caso, estando nós perante uma confissão com especial força probatória, porque escrita e dirigida à parte contrária, em que a veracidade do seu conteúdo é baseada num raciocínio presuntivo, assente em fortes índices probabilísticos, não seria sensato deixar essa presunção à mercê de falíveis depoimentos testemunhais, mesmo que tenham uma mera função complementar de prova. Além disso, perder-se-ia o efeito pedagógico de...

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