Acórdão nº 22074/22.3T8LSB.L1-7 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-03-14

Ano2023
Número Acordão22074/22.3T8LSB.L1-7
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório[1]
A. intentou procedimento cautelar comum contra B pedindo que o Tribunal decrete a apreensão do veículo automóvel Volvo XC40 com a matrícula xx-xx-AJ e lho entregue, nomeando-a fiel depositária do mesmo. Mais pede que, sendo a providência decretada, o Tribunal a dispense do ónus de propositura da ação principal.
Para tanto alegou, em síntese, que celebrou com a requerida um contrato de aluguer de veículo, de que é proprietária, e que a requerida não pagou uma das rendas relativas ao mesmo contrato, razão pela qual lhe enviou uma carta, instando-a a pagar tal renda e que, perante a inércia da mesma, lhe remeteu uma segunda carta, resolvendo o contrato.
Citada a requerida, a mesma deduziu oposição, sustentando, em resumo, que não recebeu nenhuma das cartas mencionadas pela requerente, e que quando tomou conhecimento do envio da carta de resolução, liquidou prontamente a renda em falta, tendo posteriormente liquidado as demais.
Conclui pela improcedência do procedimento.
Realizada a audiência final, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“Pelos fundamentos expostos, improcede, por não provado, o presente procedimento cautelar.”
Inconformada com tal decisão veio a requerente dela interpor recurso, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
A. O presente recurso vem interposto da douta sentença de fls._, proferida pelo Juiz 5 do Juízo Local Cível de Lisboa, no âmbito do processo n.º 22074/22.3T8LSB, que é uma providência cautelar referente à entrega de uma viatura, objecto de um contrato legitimamente resolvido por incumprimento de pagamentos.
B. O Recorrente não se conforma com a referida sentença e visa com o presente recurso impugnar a decisão proferida.
C. De acordo com o Facto Provados n.º 4 da sentença recorrida a “A Requerida não pagou a mensalidade que se venceu em 01-07-2022, no montante de 655,55€”, tendo, assim, tomado início o incumprimento;
D. Por outro lado, mediante o Facto Provado n.º 5, a sentença recorrida assenta que “em 12-07-2022, a Requerente remeteu para a sede da Requerida carta registada com aviso de recepção,” a informar quanto ao incumprimento e a solicitar regularização.
E. Em seguida, mantendo-se o incumprimento, e agora com mais uma renda não paga (Julho e Agosto), o facto provado n.º 6 refere que “Em 31-08-2022, a Requerente remeteu para a sede da Requerida, carta registada com aviso de recepção” quanto à resolução contratual.
F. Sempre se dirá que, ínsito na carta de dia 31 de Agosto, que põe fim à relação contratual por incumprimento manifesto de 2 rendas, resulta o seguinte: “Impende ainda sobre V/ Exa e por efeito da vertente da resolução, a obrigação de restituição do veiculo e respectiva documentação, no prazo de dois dias”
G. Ora, nem pagamento, nem restituição da viatura ocorreu, o que obrigou a Recorrente a procurar acautelar os seus direitos e fundados receios junto do Tribunal ad quo, por meio da providencia cautelar em questão.
H. Sucede que, a providência foi julgada improcedente tendo em conta um “incumprimento insuficiente”, o que no entendimento da Recorrente constitui um manifesto erro de julgamento (chamado de error in judicando).
I. O error in judicando resulta precisamente de uma distorção da realidade factual (error facti), assente numa errada aplicação do direito (error juris) ao caso concreto.
J. Até porque, a jurisprudência do N/ ordenamento jurídico aponta que “em relações contratuais duradouras, o cumprimento defeituoso da obrigação pode dar origem à resolução do contrato apenas quando esta se concretize em “incumprimentos turbadores”, ou seja, quando por via delas fique abalada a confiança que poderá merecer ao credor o futuro cumprimento exacto por parte do devedor [o que será a “justa causa” para a resolução].” – vide acórdão http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/350d5d4ed27c7fec802584d20051e147?OpenDocument.
K. Recorde-se que o incumprimento, não começou somente em Julho e Agosto, mas sim ao longo de toda a relação contratual em que os débitos directos eram constantemente recusados e pagos em dado posterior.
L. No entanto, naqueles meses, fatídicos e cruciais à resolução contratual, os valores não foram tão pouco regularizados, ainda que a Recorrente várias tentativas de contacto tivesse feito.
M. É certo que houve pagamentos em Outubro e Novembro por parte da Recorrida, mas nunca esses montantes poderiam ser imputados a rendas, uma vez que a cessação da relação contratual, por incumprimento, havia operado, tendo sido, comunicada, como resulta provado.
N. Sempre se dirá que as cartas não foram recebidas pela Recorrida, contudo o artigo 224.º CC é esclarecedor: “2. É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”.
O. Note-se que inexiste prova quanto a qualquer alteração de morada, tendo as cartas sido remetidas a favor da morada contratual.
P. Assim, a declaração de resolução do contrato é legítima, por resultante de incumprimento, e licita, por declaração eficaz.
Q. No entanto, o Tribunal ad quo, dúvidas não tem quanto ao incumprimento e resolução do contrato, entendendo tão só que o incumprimento (de 2 duas rendas + atrasos reiterados nos pagamentos anteriores) não é relevante.
R. Pois bem, recorde-se o momento que o mercado automóvel está atravessar: dificílimo.
S. Desta forma, é notório que o não-pagamento de rendas, seja uma ou duas, afecta o volume de negócio da Recorrente, que se tenta reerguer duma pandemia que tudo fez parar – em especial a produção e venda de automóveis.
T. Assim, entende a Recorrente, que o incumprimento, antecedido de variadíssimos atrasos – confessados pela Recorrida –, é mais do que motivo bastante para resolução do contrato, ao contrário do entendimento do Tribunal ad quo.
U. Por outro lado, refere-se que o preenchimento dos requisitos legais da Providência Cautelar verificam-se através do seguinte:
a. Fundado receio de que outrem cause lesão grave – danos que a viatura pode sofrer ao circular sem legitimidade;
b. Direito dificilmente reparável: a dissipação da viatura, em especial por ser um bem de natureza móvel;
c. Probabilidade séria da existência do direito: prova documental em como a viatura pertence à Recorrente, estando na posse ilegítima da Recorrida, que não a devolveu pos-resolução.
G. Desta forma, sempre se dirá que tudo andou bem nestes autos, a cargo do Tribunal ad quo, menos a aplicação legal da norma que aponta o incumprimento como insuficiente, premiando, assim, unicamente, o infractor – a Recorrida –, que paga quando entende e dispõe de uma viatura largos meses após resolução do contrato em questão.
H. Assim, nada mais resta à aqui Recorrente que não apelar ao mais alto cuidado de V/ Exa, procurando que o fim real da providência seja acautelado: a recuperação do bem supra melhor discriminado.
Remata as suas conclusões nos seguintes termos:
“Nestes termos (…) requer a V.ªs Exas. que julguem procedente o presente recurso e consequentemente se dignem a revogar a decisão recorrida, proferindo uma outra que decrete, por se encontrarem preenchidos os requisitos para tal, o presente Procedimento Cautelar (…).”
A requerida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Recebido o recurso, e subindo o mesmo a este Tribunal, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, a este Tribunal está vedado apreciar questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
Assim sendo, a única questão a apreciar e decidir residem em:
a) determinar se no caso em apreço se acham verificados os pressupostos de que depende o decretamento do procedimento cautelar comum, tendo por referência a providência requerida.
b) Em caso afirmativo, aferir se a requerente deve ser dispensada da propositura da ação principal.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. O veículo acima identificado é de propriedade da Requerente;
2. O veículo acima identificado foi dado em utilização à Requerida, mediante o pagamento de quarenta e oito mensalidades, nos valores individuais de 532,97€ mais IVA;
3. O acordo teve como data de início 30-09-2020, destinando-se a vigorar até 29-09-2024, sendo sido assegurado à Requerida, pela Requerente, a possibilidade de aquisição do veículo, a final, mediante o pagamento da quantia de 21.635,04€ mais IVA;
4. A Requerida não pagou a mensalidade que se venceu em 01-07-2022, no montante de 655,55€;
5. Em 12-07-2022, a Requerente remeteu para a sede da Requerida carta registada com aviso de receção, mediante a qual lhe comunicou o seguinte:
“Como é do seu/vosso conhecimento, apesar das diversas diligências por nós efetuadas, no âmbito do contrato supra identificado V. Exa(s) não têm cumprido pontualmente às obrigações que lhe(s) assiste(m), encontrando-se em dívida os montantes que constam no extrato em anexo.
De referir que ao total do valor vencido acrescem ainda juros de mora vencidos desde a data do vencimento dos documentos até à presente data, no montante de €1,38 (Um Euro e Trinta e Oito Cêntimos), bem como as despesas de abertura do processo em pré-contencioso, previstas no nosso preçário, no montante de € 123,00 (Cento e Vinte e Três Euros).
Considerando
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