Acórdão nº 19067/21.1T8LSB.L1-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-04-07

Ano2022
Número Acordão19067/21.1T8LSB.L1-2
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
Nestes autos de Ratificação de Embargo Extrajudicial de Obra Nova e Providência Cautelar Não Especificada, requeridos por Fernando … e Maria Ana ... contra ...- Unipessoal, Lda, pedindo a ratificação do embargo extrajudicial promovido pelos requerentes a 8 de agosto de 2021 e a suspensão imediata das obras objecto do embargo e a demolição das construções efectuadas, repondo o prédio no estado em que se encontrava, e subsidiariamente, que fosse decretada providência cautelar não especificada, não executando quaisquer obras suscetíveis de permitir a devassa da sua habitação e da intimidade e vida privada e familiar dos requerentes, decretando a suspensão da execução das obras e a repor o prédio em construção no estado em que se encontrava, foi proferida decisão, declarando a incompetência do Tribunal em razão da matéria, absolvendo a Requerida da instância.
Inconformados com essa decisão, os Requerentes dela interpuseram recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que aprecie e julgue o litígio objeto dos presentes autos, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
A. No Requerimento Inicial que deu origem aos presentes autos, os ora Recorrentes alegaram que a ora Recorrida se encontra a executar, na qualidade de dono de obra, obras de construção num prédio contíguo à fração autónoma de sua propriedade (“Habitação”) e, bem assim, que a execução e conclusão de parte das referidas obras (“Obras Objeto de Embargo”) determinam quer a violação do direito de propriedade dos Recorrentes, afetando gravemente as suas faculdades de uso, fruição e disposição da Habitação, quer a violação de direitos fundamentais de personalidade dos mesmos, quais sejam o direito à integridade pessoal, ao desenvolvimento da sua personalidade e da reserva sobre a intimidade da sua vida privada, à habitação e à segurança.
B. Os ora Recorrentes requereram ao Tribunal a quo o decretamento de duas providências cautelares distintas, assentes em causas de pedir igualmente distintas:
C. Uma providência cautelar de ratificação judicial do embargo extrajudicial realizado pelos mesmos às Obras Objeto de Embargo, com base na referida violação do direito de propriedade dos Recorrentes;
D. E, subsidiariamente (sendo que tal pedido subsidiário se mostra admissível tendo em conta o facto de a providência cautelar requerida no âmbito do mesmo assentar numa causa de pedir distinta da causa de pedir sobre a qual assenta a providência cautelar requerida no âmbito do pedido principal),
E. Uma providência cautelar não especificada que iniba a conclusão da construção daquelas obras e que ordene a sua demolição, estejam estas concluídas ou não, com base na referida violação de direitos fundamentais de personalidade dos Recorrentes.
F. Na sua Oposição, a ora Recorrida alegou ser o Tribunal a quo incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir o litígio objeto dos presentes autos, sustentando, para o efeito, a competência material da jurisdição administrativa, em virtude de estar em causa nos presentes autos uma pretensão inserida numa relação jurídico-administrativa.
G. Em resposta à referida exceção invocada pela ora Recorrida, os ora Recorrentes sustentaram a inclusão dos presentes autos na esfera da jurisdição cível e não na esfera da jurisdição administrativa, porquanto, contrariamente ao alegado pela ora Recorrida, não respeitam os mesmos a uma relação jurídico-administrativa.
H. Na douta Sentença sob recurso, o Tribunal a quo, seguindo de perto a narrativa e a argumentação veiculadas pela ora Recorrida, declarou-se incompetente em razão da matéria e, consequentemente, absolveu a ora Recorrida da instância, por considerar que a relação material controvertida objeto dos presentes autos consubstancia uma relação jurídico-administrativa, sendo portanto a competência para apreciar e decidir os mesmos dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
I. É firme entendimento dos Recorrentes que este andou mal ao julgar-se incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir os presentes autos, constatando-se, em suma, que a Sentença sob recurso:
J. Assenta numa incorreta interpretação da relação material controvertida configurada pelos ora Recorrentes no Requerimento Inicial, quer no que concerne aos seus elementos objetivos (causas de pedir e pedidos), quer no que concerne aos seus elementos subjetivos (partes), esclarecendo-se, desde já, que esta não consubstancia uma qualquer relação jurídico-administrativa, mas apenas e tão só uma relação jurídico-privada entre dois sujeitos de direito privado – os Recorrentes, pessoas singulares, e a Recorrida, pessoa coletiva de direito privado; bem como que
K. Assenta numa incorreta interpretação e aplicação do direito aos factos alegados;
L. Razões pelas quais não podem os Recorrentes conformar-se com a Sentença sob recurso.
M. Realce-se ainda que o Tribunal a quo se veio declarar materialmente incompetente depois de já terem decorrido mais de 5 meses após o início dos presentes autos, não obstante estarmos perante um processo que reveste natureza urgente e para cuja decisão a Lei estabelece um prazo máximo de 2 meses (cfr. artigo 363.º do CPC), o que se reputa de totalmente inadmissível num estado de direito democrático, sendo naturalmente causador de graves e irreparáveis prejuízos para os Recorrentes.
N. Tal como acima já se aflorou, o Tribunal a quo, seguindo de perto a narrativa e a argumentação veiculadas pela ora Recorrida, declarou-se incompetente em razão da matéria para julgar os presentes autos por considerar que a relação material controvertida objeto dos mesmos consubstancia uma relação jurídico-administrativa, sujeita, portanto, à jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O. Para justificar tal conclusão, o Tribunal a quo invocou apenas duas circunstâncias factuais: (i) as Obras Objeto de Embargo estão a ser realizadas pela Recorrida no âmbito de um contrato administrativo e (ii) a Recorrida “não pode, sem mais, ser considerada como “dona da obra”, como se esta de uma qualquer empreitada particular se tratasse”,
P. Não tendo, contudo, sequer logrado fundamentar tais considerações, sobretudo a segunda, ficando-se assim sem perceber como é que o Tribunal a quo chegou às mesmas.
Q. Contrariamente ao afirmado pelo Tribunal a quo, a relação material controvertida objeto dos presentes autos não consubstancia uma relação jurídico-administrativa, mas sim uma relação jurídico-privada (não sendo as circunstâncias factuais nas quais o Tribunal se baseia suscetíveis de fazer subsumir a relação material controvertida objeto dos autos ao conceito de relação jurídico-administrativa), razão pela qual os artigos 399.º do CPC e 1.º e 4.º do ETAF invocados pelo Tribunal a quo para justificar a sua incompetência em razão da matéria não têm aplicação ao caso sub judice.
R. Em primeiro lugar, importa relembrar que a competência material dos tribunais para conhecer os litígios que são lhes são submetidos é aferida unicamente em função da relação material controvertida objeto do litígio em causa (causa de pedir, pedido e sujeitos), tal como ela é delineada pelo autor na petição inicial,
S. Entendimento este que, conforme referido pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão proferido em 17.12.2020, é um “entendimento há muito firmado na jurisprudência”.
T. Uma leitura atenta do Requerimento Inicial permite concluir, com absoluta clareza e certeza, que a relação material controvertida objeto dos presentes autos, ou seja, a relação jurídica que se discute na ação (o “quid disputatum” ou “quid decidendum”), foi configurada pelos ora Recorrentes da seguinte forma:
U. Partes:
(i) A ora Recorrida, sociedade comercial que se encontra a realizar as Obras Objeto de Embargo (o dono de obra); e
(ii) Os ora Recorrentes, particulares lesados por tais obras.
V. Pedidos:
(i) Decretamento de uma providência cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial, a título principal; e
(ii) Decretamento de uma providência cautelar não especificada, a título subsidiário.
W. Causas de Pedir:
(i) Violação do direito de propriedade dos Recorrentes, no caso do pedido principal identificado em (i) do ponto b) supra; e
(ii) Violação de direitos fundamentais de personalidade dos Recorrentes, no caso do pedido subsidiário identificado em (ii) do ponto b) supra.
X. Posto isto, cumpre então
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