Acórdão nº 190/21.9T8VFR.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-06-21

Ano2022
Número Acordão190/21.9T8VFR.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. nº 190/21.9T8VFR.P1
Comarca de Aveiro – Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 1
Apelação
Recorrente: AA
Recorrido: BB
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores João Ramos Lopes e Rui Moreira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AA, casada, residente na Rua ..., ..., requereu, ao abrigo do disposto nos arts. 1045.º e segs. do Cód. de Proc. Civil, acção especial de apresentação de documentos contra:
- BB e mulher, CC, residentes na Rua ..., ..., Santa Maria da Feira;
- DD e marido EE, residentes na Rua ..., ...;
- FF e marido GG, residentes na Rua ..., ...;
- HH e marido II, residentes na Rua ..., ..., Santa Maria da Feira;
- JJ e mulher KK, residentes na Rua ..., ....
Alegou, para o efeito e em súmula, que é filha do 1.º réu marido, BB, e sua herdeira legitimária, e irmão da 2.ª, 3.ª e 4.ª rés mulheres e do 5.º réu marido, tendo outorgado em 30.6.2016, no Cartório Notarial a cargo do Notário Dr. LL, em Lisboa, uma escritura de partilha em vida de bens do seu pai e da requerida mulher, na qual este dispõe dos bens identificados nesse documento a favor dos seus filhos. A requerente outorgou o referido contrato de partilha em vida tendo recebido tornas.
Sucede que nunca teve acesso ao conteúdo dos contratos e atos referenciados na Cláusula Décima do aludido contrato, razão pela qual pretende que lhe seja dado conhecimento dos termos dos atos e contratos enunciados no art. 14.º da petição inicial, os quais reputa como indispensáveis para que possa fazer sobre os mesmos um juízo sobre as condições da sua validade, sobre a forma pela qual possam estar afetados os seus direitos enquanto herdeira legitimária do 1.º réu marido e sobre a melhor forma de reagir.
Conclui, pedindo que os réus sejam condenados a procederem à apresentação dos documentos que consubstanciam os negócios jurídicos identificados no art. 14º da petição inicial no dia, hora e local que for designado pelo Tribunal.
Regularmente citados, os réus ofereceram contestação, alegando, em súmula, que tais atos e contratos são mencionados no anexo, embora dele não constem os contratos, nem por via dele se pode saber a quantidade de ações vendidas, nem o respetivo preço e condições.
No entanto, nem antes, nem no ato de escritura de partilhas, a autora, que, nas negociações que precederam a partilha e na respetiva formalização, esteve sempre acompanhada do advogado signatário da petição inicial, logo, informada dos seus direitos e do sentido e alcance das declarações que estava a prestar em escritura pública, pediu, alguma vez, para ter acesso aos atos e contratos constantes do anexo supra referido.
Com efeito, para receber 5.000.000,00€ de tornas de seus irmãos não fez depender o seu consentimento e a renúncia à anulação do conhecimento do número de ações transacionadas e do respetivo preço e condições. Passados cerca de 5 anos, depois de embolsados os 5.000.000,00€, põe então a hipótese de vir a retratar-se do seu consentimento e da renúncia à anulação, após proceder ao exame dos atos e contratos constantes do anexo à partilha em vida, o que entendem configurar abuso do direito na modalidade de «venire contra factum proprium».
Concluem, assim, pela improcedência do peticionado, por inexistir interesse atendível.
Após produção de prova, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido.
Inconformada com o decidido, interpôs recurso a requerente que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A Requerente enquanto herdeira legitimária do Requerido BB tem direito de conhecer o conteúdo dos negócios dispositivos celebrados por este com os outros filhos.
2- A informação sobre o teor dos actos e negócios jurídicos de disposição do património a favor de outros filhos titulados por documentos particulares só pode ser prestada por aqueles que tiveram participação em tais actos e negócios – os ora Requeridos.
3- Os Requeridos não alegaram nem demonstraram nenhum motivo fundado para se recusarem em facultarem à Requerente os documentos que titulavam os negócios jurídicos cuja apresentação se requereu.
4- A Requerente tem um interesse juridicamente atendível na apresentação ou exame dos documentos em causa.
5- Nomeadamente, a Requerente pode em vida do autor da sucessão, seu pai, pedir judicialmente que seja declarada a nulidade dos negócios jurídicos titulados pelos documentos por simulação, nos termos do artigo 242º, nº 2 do Código Civil.
6- A ação de simulação do negócio jurídico tem por escopo a preservação da intangibilidade da legítima do herdeiro legitimário e pode ser intentada a todo o tempo.
7- Da norma constante do artigo 2170º do Cód. Civil resulta que “Não é permitida em vida do autor da sucessão a renúncia ao direito de reduzir as liberalidades” pelo que qualquer cláusula constante da escritura de partilha em vida outorgada pela Requerente não pode consubstanciar renúncia ao direito de redução de liberalidades feitas pelo progenitor a favor de outros filhos.
8- Por outro lado, sempre estará em causa o direito da Requerente em vir a colocar em questão a validade dos negócios celebrados entre o seu pai e os seus irmãos por outros fundamentos legais, para além da simulação, consoante o seu conteúdo concreto, o que só pode ponderar depois de ter conhecimento desse conteúdo.
9- A Requerente não pediu para consultar os documentos indicados no anexo X na ocasião em que outorgou a escritura de partilha em vida, no entanto pelo simples fato de existir essa listagem deriva o direito da Requerente de consultar o teor desses documentos em qualquer altura e obriga aos seus detentores a deles darem conhecimento à Requerente logo que solicitados para o efeito.
10- O facto de a A. ter outorgado a “partilha em vida” de bens do seu pai não é incoerente com o fato de vir agora, cinco anos passados, pedir para consultar documentos referenciados nesse contrato porque podia pedir a sua consulta a todo o tempo.
11- A Requerente não excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico ao vir pedir aos Requeridos para lhe darem conhecimento do conteúdo de documentos que ficaram referenciados numa escritura que outorgou.
12- Não existe, nem poderia existir, no caso concreto uma situação de confiança legítima por parte dos Requeridos de que a A. não pudesse consultar quando quisesse os negócios que eles haviam celebrado e identificaram no anexo à escritura.
13- Os Requeridos não têm qualquer justificação para a existência de uma confiança de não estarem com a recusa a lesar os direitos da A. ao conhecimento porque não existem elementos objectivos (não existem fatos provados) capazes de em abstrato provocar uma crença plausível nessa não lesão. Nunca a Requerente renunciou ou declarou não querer conhecer o teor dos documentos em causa.
14- Não está provado, nem os Requeridos o alegaram, qualquer fato que traduza um investimento que tenham feito com base na suposta confiança consistente em, da sua parte, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada.
15- Não foi praticado pela A. qualquer acto do qual resulte que lhe possa ser imputada a confiança dos Réus, que no caso até não existe. Nunca a A. expressamente ou tacitamente deu a entender aos Réus que não iria pedir a consulta dos documentos que titulam os negócios em causa e cujo conhecimento se pede nesta ação. O simples decurso dos cinco anos não é objetivamente um fator que levasse os Réus a confiar que a Ré para todo o sempre não iria querer ver os documentos.
16- Os Requeridos não estão numa situação de boa-fé ao recusarem dar a conhecer à Requerida o conteúdo de negócios jurídicos que lhe comunicaram ter celebrado. Para que o direito da Requerente possa ser obstaculizado por abuso é necessário que a parte contra quem ele é exercido esteja de boa-fé.
17- A douta sentença recorrida violou o que se encontra disposto nos artigos 573º a 575º do C.C.
Pretende assim a revogação da sentença recorrida e a condenação dos requeridos no pedido.
O requerido BB apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Formulou as seguintes conclusões:
1. A sentença a quo não merece qualquer censura. E isto porque
2. A A. abusou inequivocamente do direito que lhe é conferido pelo art.º 575º do Código Civil, abuso que as alegações de recurso por ela apresentadas só vieram confirmar. Assim,
3. Em 30 junho de 2016, os RR. e a A. outorgaram uma escritura de partilha em vida, através da qual os 1º e 2ºR doaram aos seus filhos a totalidade do seu património e estes obrigaram-se a pagar a sua irmã, filha, apenas, do 1º R., as tornas correspondentes a 1/5 do património que constituía a meação deste último no património do casal do 1º R. e de sua Mulher.
4. Com essa escritura de partilha em vida, os RR. e a A. pretendiam regular, de modo definitivo, as relações patrimoniais ao tempo existentes entre si; e declararam-no, expressamente, na cláusula décima da referida escritura, onde se diz que os outorgantes, A. e RR., (…) declaram que ficam reguladas, em termos definitivos, as relações patrimoniais passadas e presentes (…)” entre eles. E evidenciando que esta regulação em termos definitivos se referia a todos os atos e contratos do passado, de natureza patrimonial, havidos entre os outorgantes, e porque a A. não interveio nesse atos e contratos por, ao tempo dos mesmos, não estar reconhecida como filha do 1º R., acautelou-se a questão do consentimento da A. aos atos onerosos de natureza patrimonial havidos entre o 1º R. e sua Mulher e os filhos de ambos, apesar de os RR. entenderem que não era devido; e convencionou-se, ainda, a renúncia da A. à faculdade de anulação estabelecida nos art.ºs 877º, nº 1, e 939º, do Código Civil.
5. É meridiano que a A., quando presta o consentimento cautelar aos
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