Acórdão nº 15502/21.7T8LSB.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 21-06-2022

Data de Julgamento21 Junho 2022
Ano2022
Número Acordão15502/21.7T8LSB.L1-1
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
Em 24/06/2021, AC intentou o presente procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais contra AP, Lda., peticionando a suspensão dos efeitos da deliberação tomada na assembleia geral da requerida, realizada no dia 14/06/2021, no que respeita ao ponto 9 da Ordem de Trabalhos: suspensão do pagamento das remunerações fixadas aos gerentes até à reabertura ao público do estabelecimento “Jamaica”.
Referiu que, para além de não se tratar de assunto contido na convocatória para a assembleia, estão os sócios legalmente impedidos de deliberar quanto a tal matéria.
Mais alegou que a privação, ainda que temporária, da remuneração que aufere como gerente causa-lhe necessariamente um dano, o qual não pode deixar de ser considerado apreciável.
Invocando o disposto no artigo 369.º do CPC peticionou, ainda, a inversão do contencioso, dessa forma ficando dispensada do respectivo ónus de apresentação da acção principal.
O procedimento cautelar mostra-se registado pela AP 2/20210728 (como resulta da certidão comercial permanente da requerida que se mostra junta aos autos).
Regularmente citada (por meio de carta expedida em 27/09/2021) veio a requerida, em 06/10/2021, apresentar oposição na qual, a título de questão prévia, invocou a inutilidade superveniente do presente procedimento cautelar, porquanto, a requerente, por carta datada de 23/08/2021, renunciou ao exercício das suas funções de gerente (renúncia essa já averbada no registo comercial, por via da Ap. 179/20210903, como resulta da certidão comercial permanente que junta aos autos).
Referiu que, em face de tal renúncia, não pode a requerente pretender suspender o que já não aufere em razão, precisamente, do fim das suas funções enquanto gerente – tendo perdido o interesse em agir e, supervenientemente, legitimidade processual activa.
Acresce que os demais gerentes pretendem manter a deliberação em causa, a qual votaram favoravelmente.
Concluiu peticionando que seja decretada a extinção do procedimento cautelar por inutilidade superveniente da lide.
Sem prescindir, pugnou pela improcedência do procedimento cautelar por falta de demonstração dos requisitos legais que o suportam.
O tribunal ordenou a notificação da requerente para, nos termos previstos pelo artigo 3.º, n.º 3 do CPC, exercer o contraditório quanto à invocada inutilidade superveniente da lide.
Nessa sequência, veio a mesma alegar que, não obstante ter renunciado à gerência, dessa forma não se podendo suspender o que já não aufere enquanto gerente, nem por isso perdeu legitimidade ou interesse processual para os efeitos do presente procedimento, pese embora agora mitigados ao período que mediou entre a data da deliberação posta em crise e aquela em que a cessação das respectivas funções produziu efeito.
Acresce que o procedimento foi intentado com vista à resolução definitiva do litígio – declaração de ilegalidade da deliberação e consequententes efeitos emergentes para a requerente -, razão pela qual foi apresentado um pedido de inversão do contencioso (o qual não mereceu oposição pela requerida).
Nessa medida, refuta a invocada inutilidade uma vez que a apreciação da ilegalidade da deliberação, terá por efeito a dispensa da requerente em propor uma acção com vista à declaração dessa mesma ilegalidade.
Por decisão de 21/02/2022, o tribunal recorrido julgou a instância extinta por inutilidade superveniente – artigo 277.º, al. e) do CPC.
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Inconformada com tal decisão, a requerente dela interpôs RECURSO de apelação, tendo formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“1 – Não obstante a renúncia à gerência pela requerente, comunicada a sociedade, ora recorrida, por carta datada de 23 de Agosto de 2021, o dano que se pretendeu acautelar com a presente providencia não desapareceu,
2 - nem se pode concluir, como faz o tribunal a quo, que tal facto (renúncia à gerência) determina que deixou de haver um dano considerável a acautelar, apenas porque, a partir da data em que a renuncia se tornou eficaz, não se lhe podem acrescentar outros danos, do mesmo género, além daqueles verificados já na pendencia da presente providência
3 – nem muito menos concluir que ascendendo esse dano já verificado na pendencia da providencia cautelar (e relativamente ao qual não existe – repita-se - qualquer razão para subtrair do âmbito de protecção da mesma) se pode ter o mesmo por insignificante ou irrelevante, à luz da jurisprudência citada, quando esse dano ascende a mais de € 6.000, correspondendo praticamente, a quase 10 salários mínimos.
4 - Decidindo, desse modo, e nesse pressuposto, julgando extinta por inutilidade superveniente a providencia proposta, e subsequentemente, considerando prejudicado o pedido de inversão de contencioso feito pela requerente, sem qualquer oposição da sociedade ora requerida, esta decisão ora recorrida viola os artigos 380º, 369º. 382º do CPC “
Conclui peticionando que seja a decisão recorrida substituída por outra que “aprecie a providência, julgando conforme e nos termos requeridos pela requerente, ou assim não se entendendo, ordenando-se que o tribunal a quo decida sobre a providência requerida bem ainda sobre o pedido de inversão de contencioso requerido, cujo conhecimento o tribunal a quo entendeu prejudicado em face da respectiva decisão de extinção por inutilidade superveniente da lide.”.
A tais alegações respondeu a requerida, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido pelo tribunal a quo e subiu como de apelação, imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões no mesmo formuladas, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando estejam em causa questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado - artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
a) se estão verificados os pressupostos necessários ao decretamento do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais – designadamente se a execução da deliberação em causa acarreta um dano apreciável - ou se ocorreu inutilidade superveniente da instância na sequência da renúncia à gerência apresentada pela requerente;
b) se se impõe fazer operar a inversão do contencioso.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório supra enunciado, o qual, por brevidade, se dá aqui por reproduzido.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Os procedimentos cautelares representam uma “antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal”, assentando “numa análise sumária (summaria cognitio) da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito (fumus boni juris) e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afetado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (periculum in mora).[1]
Constituem, pois, instrumentos jurídicos destinados a acautelar o efeito útil das acções de que dependem – cfr. artigos 2.º, n.º 2 e 364.º, n.º 1 do CPC -, mediante a composição provisória dos interesses conflituantes, mantendo/restaurando a situação de facto necessária à eventual realização efectiva do direito.[2]
Como bem se refere na decisão recorrida, não são, pois, aptos à resolução ou composição em definitivo de interesses, antes se destinando a antecipar determinados efeitos das decisões judiciais, a prevenir prejuízos ou a manter determinado statu quo, enquanto tardar a decisão definitiva do conflito. Não efectivam, assim, direitos, mas apenas os asseguram, realizando, por conseguinte, uma função instrumental face à tutela declarativa.
Essa total dependência com relação à acção principal apenas se altera nas situações nas quais ocorra inversão do contencioso, hipótese em que o tribunal pode decidir, desde logo, sobre a existência do direito acautelado, ficando o requerente dispensado de instaurar acção principal (para reconhecimento do mesmo).
A situação de perigo da qual o requerente se pretenda defender deverá ser actual e não estar ainda consumada (sem prejuízo de poderem estar em causa situações nas quais as lesões não estejam ainda inteiramente consumadas ou de lesões continuadas e repetidas).
No que respeita ao procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, dispõe o artigo 380.º, nº 1 do CPC que “se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável”.
Já nos termos do n.º 2 do artigo seguinte, “ainda que a deliberação seja contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato, o juiz pode deixar de suspendê-la, desde que o prejuízo resultante da suspensão seja superior ao que pode derivar da execução”.
São portanto requisitos cumulativos da providência cautelar de suspensão de deliberações sociais: a) que o requerente justifique a sua
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