Acórdão nº 1309/19.5T8CSC.L1-6 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-02-17

Ano2022
Número Acordão1309/19.5T8CSC.L1-6
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
D… intentou contra M…; R… e L… a presente acção declarativa de reconhecimento da paternidade, com impugnação da paternidade presumida.
Invocou para tanto, em síntese, que do relacionamento entre o Autor e a Ré M… nasceu a Ré L…, no dia 09/07/2015.
Com efeito, entre Outubro de 2013 e Junho do presente ano de 2015, o ora Requerente e a R. M…, com domicílio em …, casada com o R. R… mantiveram uma relação íntima, logo, com componente sexual e, por variadíssimas vezes, sem o uso de métodos contracetivos, razão pela qual, em Outubro de 2014, o Requerente não duvidou da sua paternidade quando M… lhe comunicou que estava grávida de um filho seu.
O ora Requerente tinha conhecimento que a referida M… era casada com R…, há vários anos, mas, segundo lhe foi transmitido por aquela, o casal encontrava-se separado, estando, ou em vias de estar, em processo de divórcio.
O Requerente desde logo assumiu a paternidade e ao longo de toda a gravidez acompanhou M… em praticamente todos os actos médicos, tendo por esta, inclusivamente, sido apresentado como o pai da criança a nascer.
Contudo, por factores que o Requerente desconhece, este apenas foi informado do nascimento da sua filha sete horas e vinte minutos depois do efetivo nascimento, tendo-lhe sido comunicado por M…, via telefónica, que a mesma se encontrava internada no Hospital …; deslocou-se imediatamente ao Hospital, tendo sido recebido como pai da L…, tanto perante os funcionários e corpo clínico do Hospital, como perante M… e sua mãe.
Nunca foi dito ao Requerente que o mesmo não seria o pai da L…; pelo contrário, o Requerente esteve, desde o dia 9 de Julho de 2015, até ao dia 11 de Julho de 2015, no referido Hospital, com a sua filha, tendo-a pegado ao colo, sempre se identificando como pai, o que nunca lhe foi negado ou contraditado nem nunca ninguém questionou a presença do ora Requerente no Hospital, tendo o mesmo chamado a L… de "minha filha", sem que alguém tivesse colocado esta realidade em causa.
Contudo, nessas suas deslocações, o Requerente percebeu que algo de errado se passaria, uma vez que, para além de familiares de M…, encontrava-se igualmente R…, o que não seria consentâneo com a situação de separação/divórcio relatada e o estado de gravidez e nascimento de uma criança que não é sua filha.
No dia 12 de Julho de 2015, ao início da tarde, o Requerente deslocou-se, uma vez mais, ao hospital, tendo sido informado que M… e a sua filha tinham tido alta médica e que já não se encontravam no hospital; o Requerente deslocou-se de imediato à casa de M…, mas esta encontrava-se sem sinais de presença e apesar das diversas vezes que tocou à campainha não obteve resposta; o Requerente telefonou várias vezes para M…, mas as referidas chamadas não foram atendidas ou retornadas, o que levou a que o Requerente se deslocasse à PSP … para participar o ocorrido.
Nesta altura, já o Requerente tinha questionado M… - através de SMS para o seu número de telemóvel - sobre o paradeiro da sua filha e sobre a necessidade de se proceder ao seu registo de nascimento, acto para o qual o Requerente queria (e teria) de estar presente mas M… não lhe deu qualquer resposta.
Assim, o Requerente no dia 13 de Julho de 2015 deslocou-se à Conservatória de Registo Civil de …, tendo solicitado informação sobre se a sua filha já se encontrava registada e aí confirmou que a sua filha tinha sido registada, logo no dia seguinte ao seu nascimento, por M…, constando como pai R…, ao abrigo da paternidade presumida por casamento.
Contudo, esta paternidade presumida não é verdadeira, tendo o Requerente o direito de assumir os seus direitos e deveres enquanto pai, o que deseja poder fazer com a urgência que o caso requer.
A atuação de M…, e todos os demais que com ela participaram, é de gravidade incomensurável e causa danos graves, não só na esfera jurídica do Requerente, mas na esfera da menor L…, a qual, para além de ter direito ao seu nome, tem direito a saber que tem um pai biológico que da mesma não prescinde.
O Requerente diligenciou no sentido de fazer uso do meio judicial disponível para o exercício do seu direito e assim, em 27 de julho de 2015, no próprio mês do nascimento da Ré L…, o Autor requereu ao Ministério Público que propusesse ação de impugnação da paternidade presumida ao abrigo do disposto no art.º 1841.° do Código Civil.
O Ministério Público viria a reconhecer que o Autor tinha fundamento material para deduzir a ação de impugnação de paternidade; porém o Ministério Público propôs a ação apenas em 5 de Dezembro de 2016, bem depois de findo o prazo previsto no n.° 2 do artigo 1841.° do Código Civil e, talvez por isso, propôs a ação em representação da menor L…, invocando o disposto na al. c) do n.° 1 do artigo 1842.° do Código Civil, “ação com processo comum, sob a forma ordinária, para impugnação de paternidade presumida”, na qual pediu que fosse declarado que a Ré L… não é filha do Réu R…, juntando os vários documentos que haviam sido apresentados pelo Autor no requerimento ao Ministério Público mas sem juntar o requerimento que lhe fora apresentado pelo aqui Autor, embora toda a exposição e prova se baseasse neste requerimento.
Por sentença proferida em 15 de Fevereiro de 2018, o Tribunal Judicial da Comarca … decidiu que o Ministério Público carecia de legitimidade processual para a ação e absolveu os réus da instância porquanto:
a) Não forma demonstrados os pressupostos da impugnação da paternidade presumida, ao abrigo do 1841.° do Código Civil (quais sejam a demonstração da existência de requerimento prévio do pretenso progenitor e juízo judicial prévio de viabilidade), sobre os quais o Ministério Público nada disse na ação, mesmo depois de notificado para esse efeito; e
b) Por não ser aplicável o fundamento da acção invocado pelo Ministério Público - al. c) do n.°1 do artigo 1842.° do Código Civil, dado o mesmo estar concebido para a acção do filho após a maioridade.
O Ministério Público não apresentou recurso da sentença.
A omissão do Ministério Público provocou o desaparecimento da única via que a lei civil prevê para a impugnação da paternidade presumida pelo aqui Autor.
Após a prolação de sentença e seu trânsito em julgado, o Requerente apresentou uma queixa junto da Procuradoria-Geral da República, Conselho Superior do Ministério Público, queixa essa que também até aos dias de hoje, não tem resultado à vista, embora o crasso e flagrante erro cometido.
Em suma, por força destas vicissitudes às quais o Requerente é alheio, o mesmo veio a ser impedido de exercer os seus direitos enquanto Pai e a menor L… ficou privada - por opção da mãe, e aparente obstrução legal - de poder crescer com conhecimento da identidade do seu Pai biológico e da sua ascendência.
Esta privação mantém-se até aos dias de hoje.
O direito que o Autor aqui exerce é o direito de ver a sua paternidade biológica reconhecida, o que implica, como condição necessária, a impugnação da paternidade presumida por força do casamento, nos termos do n.° 1 do artigo 1848.° do Código Civil.
O Requerente está ciente das limitações que a Lei Civil lhe impõe, estando, contudo, certo que estas limitações são manifestamente violadoras de vários princípios constitucionais inalienáveis e comunitariamente reconhecidos.
O direito de alguém pode certamente ser restringido, ou condicionado, mas não lhe pode ser coartado totalmente, o que sucede se o seu exercício é colocado sob condições que estão fora do seu controlo, pelo menos sempre que essas condições não se verifiquem, devendo ter-se verificado.
É o que se passa no caso vertente, em que o direito ao reconhecimento da paternidade é colocado exclusivamente nas mãos de outrem (neste caso, o Ministério Público), sem que sejam dados ao titular do direito os meios que lhe permitem agir contra esse outrem, forçando-o ao exercício do direito sempre que estejam verificados os pressupostos para o efeito, ficando o titular do direito à mercê da incúria do Ministério Público, como aconteceu no caso vertente, em que, não obstante a tempestiva iniciativa processual do Autor, o Ministério Público não agiu em tempo nem sob o meio adequado.
Se isto é aplicável a quaisquer direitos, muito mais o será a direitos fundamentais, tal como o direito à dignidade da pessoa humana, que leva em si a o direito à autodeterminação, e ao direito de ser pai, que leva em si o direito de ver a paternidade reconhecida.
Tais direitos são direitos fundamentais expressamente reconhecidos, designadamente, nos artigos 1.°, 20.°, 26.°, 36.° e 68.° da Constituição da República Portuguesa, mesmo sabendo que o Código Civil é anterior à data da Constituição, estabelece o n.° 2 do artigo 290.° que o direito ordinário anterior à data de entrada em vigor da Constituição só se mantém em vigor desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados.
É, pois, o direito ordinário que tem de ceder perante a Constituição, em caso de conflito, e não o contrário.
É absolutamente intolerável num Estado de Direito que um pai fique impedido de ver reconhecida a sua filiação por razões que não lhe são imputáveis a si, quando fez tudo para que tal não acontecesse, sendo igualmente intolerável que, simetricamente, o filho seja impedido de, durante toda a sua menoridade, sem saber, nem poder saber, quem é o seu verdadeiro pai.
Invoca assim o Requerente que os artigos 1838.° e n.° 1 do artigo 1839.° do Código Civil, ao impedirem a impugnação da paternidade presumida por quem se considerar pai do filho sobre qual recai essa presumida paternidade, bem como os n.°1 e 2 do artigo 1841.° do Código Civil, ao tornarem a impugnação da paternidade presumida por quem se considere pai do filho dependente do Ministério Público, sem oferecer a quem se considere pai do filho a possibilidade de exercer por motu próprio
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