Acórdão nº 1304/22.7BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 23-02-2023

Data de Julgamento23 Fevereiro 2023
Ano2023
Número Acordão1304/22.7BELSB
ÓrgãoTribunal Central Administrativo Sul
Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
A....., nacional da Costa do Marfim, intentou ação administrativa urgente contra o Ministério da Administração Interna, visando o despacho do Diretor Nacional Adjunto do SEF de 14/03/2022, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional que havia apresentado e determinou a sua transferência para Itália, pedindo que o SEF seja condenado a admitir e deferir a concessão da proteção internacional ou, subsidiariamente, a concessão de direito de residência por razões humanitárias.
Por sentença de 31/10/2022, o TAC de Lisboa julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a entidade demandada do pedido.
Inconformado, o autor interpôs recurso daquela decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“A. O Recorrente é apoiante do ex-Presidente L..... e foi perseguido durante anos precisamente por sua militância. Fugindo da Costa do Marfim por causa de problemas étnicos e políticos e temendo pela sua própria vida, o Recorrente partiu de seu país para o Mali, Níger, Líbia e, deste último, de barco para a Itália.
B. Ao chegar na Itália, o Recorrente pediu proteção, porém, apesar de ter alojamento, as condições eram inumanas. O campo era sobrelotado, a comida insalubre, em muitas situações as circunstâncias impossibilitavam o Recorrente de dormir. Fazia frio e, em pleno inverno, não havia qualquer aquecimento. Não havia acesso efetivo à saúde nem à medicação dado que as consultas eram escassas e havia apenas um médico para um campo sobrelotado. Quanto à alimentação, a comida era precária e casos de intoxicação alimentar acontecia amiúde.
C. A saída do campo só era permitida com a autorização da diretora do local, a qual era dada de forma discricionária e podia em um dia ser concedida e no seguinte não, sem que houvesse qualquer alteração de circunstâncias. O Recorrente informou que possui problemas de saúde, porém, como buscar tratamento com todas essas limitações?
D. Fugindo deste tratamento desumano, o Recorrente, buscou proteção em França e, posteriormente, em Portugal, aos 07 de fevereiro de 2022 perante o Gabinete de Asilo e Refugiados (GAR).
E. Posteriormente, o pedido do Requente foi considerado inadmissível e determinada a sua transferência para a Itália, pelo que, discordando com o teor da decisão proferida, o Recorrente apresentou ação administrativa para que o ato seja anulado e reconhecida a proteção de seus direitos, liberdades e garantias.
F. A meritíssima Juíza a quo julgou a ação improcedente pelo suposto facto de o Recorrente não apresentar um grau de verosimilhança que leve a admitir a sua credibilidade. Porém, salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida faz uma equivocada interpretação e aplicação do direito.
G. O artigo 3.º/2, do Regulamento Dublin III, prevê a “cláusula de salvaguarda”, a qual garante que, “Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável. Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável”.
H. São muitas as informações veiculadas pela comunicação social e por organizações não-governamentais sobre a enorme afluência de refugiados na Itália e as péssimas condições de acolhimento e permanência dos requerentes de proteção internacional no mesmo.
I. Em 9 de novembro de 2022, o diário de notícias El Confidencial expôs a postura da atual PM da Itália. O governo Meloni endureceu a política italiana em relação às ONG, que acusa de encorajar o influxo de África, e emitiu um decreto que permite apenas aos mais vulneráveis aterrar no seu território, enquanto os restantes devem permanecer no seu interior e depois ser devolvidos às águas internacionais. Estes "desembarques seletivos" têm sido descritos pelas ONG, pela oposição e mesmo pelos bispos italianos como "ilegais" e "desumanos". O governo francês descreveu como "inaceitável" as ações do governo italiano.
J. Existem recomendações em relatórios internacionais de entidades oficiais ou ONG acreditadas para que os Estados Membros não transfiram pessoas para a Itália, sinalizando que, em qualquer outro caso, as autoridades responsáveis devem ainda realizar uma avaliação individual detalhada, solicitando, inclusive às autoridades italianas informações precisas sobre a instalação de receção alocada à pessoa, na mesma linha, aliás, da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH).
K. Neste aresto, o TEDH concluiu que os Estados-Membros deveriam obter garantias, in casu, das autoridades italianas, de que os requerentes de asilo seriam acomodados adequadamente antes de realizar uma transferência.
L. Não se pode ignorar os pareceres emitidos pelos Conselhos para os Refugiados dinamarquês, suíço e português, que se encontram junto a numerosos processos, e que dão conta das péssimas condições de acolhimento dos refugiados em Itália, ainda que na condição de “retornados” e que não excluem que os requerentes não vulneráveis, por estarem em boas condições de saúde, posam ser sujeitos a tratos desumanos ou degradantes naquele país, tratamentos esses que não se resumem à prática da tortura, a qual não é praticada na geografia europeia ocidental.
M. De acordo com o International Rescue Committee (IRC), “A Itália continua a receber a maior parte dos que chegam à Europa atravessando o Mar Mediterrâneo usando contrabandistas. A Itália recebeu mais de 40% das chegadas à Europa em 2020, 14% das quais são crianças viajando sozinhas. A Itália acolhe cerca de 41% das pessoas deslocadas que vivem em centros de acolhimento em toda a Europa. Sem apoio suficiente de outros estados membros da União Europeia, a Itália está assumindo a maior parte da responsabilidade por seu bem-estar e está sobrecarregada. A Itália enfrenta uma infinidade de desafios ao responder às necessidades de refugiados e migrantes que desembarcaram em suas costas. O processo de asilo é longo e demorado. Enquanto os requerentes de asilo esperam, vivem em centros de acolhimento espalhados por toda a Itália.
N. Os Estados que pretendam executar transferências estão obrigados a não transferir requerentes de asilo para os Estados responsáveis de acordo com os critérios do Regulamento Dublin III quando, nesses Estados, se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem o risco de ser desrespeitado o direito absoluto dos requerentes a não ser sujeitos a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, impondo, assim, ao Estado português, a referida cláusula de soberania, prevista no artigo 3°. do Regulamento Dublin III, um juízo de prognose relativamente à situação a que o Recorrente ficará exposto após a transferência, caso esta ocorra.
O. A situação económica e social em que se encontra atualmente o Estado italiano não deve ser analisada de forma superficial, designadamente, quanto às deficiências sistémicas nas medidas de acolhimento dos requerentes de asilo ou de proteção internacional, sendo que o contexto de pressão migratória, como aquele com que, desde 2015, os Estados Membros se confrontam não pode resultar numa diminuição das garantias previstas nos vários normativos que vinculam os estados membros da União Europeia, o que acontece com os requerentes de asilo e de proteção internacional em Itália.
P. Como relatado durante a entrevista, o campo era sobrelotado, a comida insalubre, em muitas situações as circunstâncias impossibilitavam o Recorrente de dormir, fazia frio e, em pleno inverno, não havia qualquer aquecimento. Não havia acesso efetivo à saúde dado que as visitas ao médico eram escassas porque havia apenas um médico para o campo inteiro, que estava sobrelotado, e não tinham qualquer acesso a medicação. Quanto à alimentação, a comida era precária e casos de intoxicação alimentar acontecia amiúde.
Q. O Estado italiano não tem capacidade sistémica, organizacional, social e económica para receber tantos requerimentos de apoio internacional, o que levanta a questão do destino dos requerentes, que não poderá ser no sentido voltarem ao país de origem, no caso porquanto tal decisão consubstanciaria uma violação do princípio da não expulsão, previsto no artigo 33.º, n.º 1, 1.ª parte, da Convenção de Genebra de 1951.
R. Nos termos do art.º 4º da CDFUE “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas, desumanos ou degradantes”. Assim sendo, faz-se necessário averiguar as concretas condições de acolhimento do recorrido em Itália, indagando, no mínimo, juntos das suas congéneres italianas quais irão ser as concretas condições de acolhimento, em termos de habitação, alimentação, vestuário, saúde, dinheiro de bolso, o que não fez, alheando-se da situação do recorrido e confiando na sorte.
S. In casu, face à concreta situação alegada e provada nos autos, se indicam claramente as falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional no Estado italiano, que implicarão para o Recorrente,...

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