Acórdão nº 1174/18.0T9STR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 21-06-2022

Data de Julgamento21 Junho 2022
Ano2022
Número Acordão1174/18.0T9STR.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora
Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

a. No 1.º Juízo (1) Local Criminal de Santarém, do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, procedeu-se a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, de AA, nascido a … de 1973, com os demais sinais dos autos, acusado que estava da prática de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto no artigo 205.º, § 1.º e 4, al. b), por referência ao artigo 202.º al. b), ambos do Código Penal (CP).

Contra o arguido foi deduzido um pedido de indemnização civil (PIC) pela demandante e assistente (Semprafoito, Lda.), reclamando esta a condenação do demandado a pagar-lhe 250 000€ a título de prejuízo patrimonial causado pela apropriação dessa quantia e o montante de 49 307,84€ a título de outros prejuízos causados, acrescida de juros moratórios.

O arguido contestou a acusação e o PIC.

A final o arguido veio a ser condenado como autor de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto no artigo 205.º, § 1.º e 4.º, al. b) CP, na pena de 3 anos e 6 meses prisão suspensa na sua execução por igual período; e na pena acessória de proibição do exercício de função (artigo 66.º, § 1.º CP), enquanto advogado pelo período de 3 anos; mais sendo condenado a pagar à demandante BB, a título de indemnização, a quantia de 161 000€, acrescida de juros de juros moratórios, sendo absolvido do demais pedido.

b. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, tendo rematado a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. A douta sentença violou os artºs 127, 205 e 379-1-b) todos do C.P.P., e o artº 66-1) do C.P., bem como os princípios da proporcionalidade e do excesso.

2. A sentença em apreço, ao condenar o Recorrente pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado na pena de três anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução; na pena acessória de proibição do exercício de função, enquanto advogado, pelo período de 3 (três) anos e ao pagamento do montante de € 161.000,00, foi injusta e desproporcional, e excessiva.

3. A douta sentença não julgou convenientemente os factos e, totalmente ao arrepio da lei, aplicou sanção acessória de proibição do exercício da profissão de advogado, sem sequer comunicar a alteração substancial dos factos, de modo a que as garantias de defesa do Recorrente pudessem ser asseguradas.

4. A convicção expressa pelo Tribunal a quo não tem suporte razoável e sólido na prova e, em alguns casos, contraria as regras da experiência comum e está eivada de erros e tendenciosidades que merecem reparo sob pena de se cometer uma grave injustiça.

5. À luz do artigo 412.º, n.º 3 al. a) do CPP, vão impugnados os Ponto 11 a 15 da matéria de facto provada e 4 da matéria de facto não provada.

6. A impugnação dos pontos 11 a 15 assenta essencialmente nas declarações do Recorrente que merecem toda a credibilidade por não terem sido contrariadas por quaisquer elementos probatórios ou regras do normal acontecer ou da lógica, tanto mais que para o Tribunal a quo, neste ponto, assumiu relevância a prova documental constante dos autos e as declarações prestadas pelo Recorrente.

7. Quanto ao facto 12, não existiu interpelação para os singulares e singelos efeitos acolhidos na sentença, pois na verdade a Assistente estava de má-fé.

8. A prova documental impõe também a impugnação dos factos, concretamente conjugando as declarações do Recorrente com a análise do cheque e do balancete.

9. O documento que “titula” a confissão de dívida traduziu o facto simples de que na data em foi elaborado ainda se mostrar por entregar uma determinada quantia. Esse documento, conjugado com a postura processual da Assistente, evidencia manifesta e evidente má-fé por parte da mesma, facto que foi incompreensivelmente desconsiderado pelo Tribunal.

10. Tal documento, conjugado com as declarações do Recorrente e as regras da experiência comum aplicáveis à perceção da conduta da Assistente, impõe ainda dar como provado o ponto 4 da matéria de facto dada como não provada.

11. A prova, no seu conjunto, evidencia que a Assistente quis fazer sair, em definitivo, quer contabilisticamente, quer da sua conta bancária, a quantia dos 250.000,00 €, para assim ter um apuramento fiscalmente tributável.

12. O depoimento da testemunha AT, companheira que foi do falecido AV, afigura-se esclarecedor no sentido de evidenciar o mau relacionamento da Assistente com o seu pai e permite, considerando o conjunto da prova e de acordo com as regras da experiência comum, criar a convicção de que AV recebeu a quantia entregue pelo Recorrente e que este está de boa-fé.

13. Ainda que à luz da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido, não tendo absolvido o Recorrente, violaram-se os artigos 127.º CPP e 205.º do Codigo Penal.

14. A simples circunstância de existir uma confissão de dívida afasta totalmente qualquer imputação criminal de índole subjetiva, e o facto de ter havido interpelação para pagar não faz incorrer o comportamento do Recorrente na prática de um crime pois que o acordo expresso ou presumido do detentor do bem jurídico afasta a tipicidade da conduta do agente e no limite relega a causa para o foro cível.

15. O crime de abuso de confiança não se tem por praticado com a mera confusão da quantia titulada por cheque no património do arguido através do respetivo depósito em conta bancária sua, pois não pode considerar-se que tal depósito constitua necessariamente ato concludente de apropriação, exigindo-se ainda no plano objetivo a não restituição ou entrega da quantia em causa conforme acordado, ou a futura disposição da mesma de forma injustificada, a que deve acrescer o dolo correspondente.

16. Não há demonstração de que o Recorrente quis se apropriar da quantia recebida.

17. A atuação do Recorrente não se compagina com qualquer ato penalmente tipificado.

18. O Tribunal a quo interpretou erradamente o artigo 66.º do C. Penal ao tecer a ideia de que pelo facto de a prática da advocacia depender de inscrição em vigor junto da Ordem dos Advogados é uma profissão que se subsume ao n.º 2 daquele preceito.

19. A sentença ora recorrida, ao aplicar a sanção acessória prevista no artigo 66.º do C. Penal, incorreu na nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.

20. Entendendo-se em sentido contrário, desde já se suscita a inconstitucionalidade da norma constante no artigo 66.º, n.º 1 e 2 do C. Penal na dimensão interpretativa que permita aplicar a pena acessória de proibição do exercício de profissão ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.º 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultantes, por violação do direito ao processo justo e equitativo por via da exigência de assegurar todas as garantias de defesa consagrado no artigo 32.º da CRP.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso deverá revogar-se a douta decisão recorrida, absolvendo-se o Recorrente, assim se fazendo a devida a tão costumada JUSTIÇA.»

c. Também inconformada, mas com a decisão relativa ao PIC, dela recorreu a demandante BB, tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):

«(…) III - a recorrente discorda da matéria de facto dada como provada em 11., 12. e 13. e não provada em 3. da douta sentença recorrida.

DOS FACTOS QUE FORAM INDEVIDAMENTE DADOS COMO PROVADOS (Factos 11, 12 e 13)

c) Dos factos provados números 11, 12 e 13 constantes da sentença objeto de recurso

11 - O arguido procedeu ao depósito do referido cheque, no dia 18.04.2017, na conta bancária com o IBAN …, entretanto encerrada, de que o mesmo era titular na …, passando a dispor de parte do valor respetivo como se fosse seu.

12 – Apesar de interpelado para o efeito, o arguido não restituiu parte do valor correspondente ao montante previsto na cláusula penal no contexto do contrato-promessa de compra e venda, num montante não concretamente apurado mas não inferior a € 161.000,00, ainda hoje o conservando e usufruindo desse montante.

13 – Nas circunstâncias descritas, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que o montante em questão não inferior a € 161.000,00, lhe não pertencia e que só lhe havia sido entregue no pressuposto de que o restituiria.

IV - Assim, fundamentando a douta decisão recorrida estabeleceu o tribunal a quo que:

“No que concerne à entrega do montante respeitante à cláusula penal e o seu subsequente depósito em conta da titularidade do arguido, assumiu relevância a prova documental constante dos autos, extrato bancário de fls. 106 e ss., e as declarações prestadas pelo arguido, o qual confirmou a abertura de conta para o efeito, apesar de qualquer montante decorrente da cláusula penal em questão não ser a este devida, respaldando-se, a este respeito na impossibilidade de abertura de conta para a sua representada -o que irreleva, neste quadro de acordo simulatório. Tem-se ainda em conta, no que respeita ao facto provado 12., que o arguido foi interpelado para efeitos de restituição do montante entregue e apropriado, tal facto resultou provado da prestação de declarações do arguido que o confirmou. A respeito do montante devido pelo arguido, o qual não foi restituído no seguimento da sua entrega ao abrigo da cláusula penal, renunciada pela beneficiária, estabelecida em contrato simulado, a convicção do tribunal de que tal verba se cifrará em montante não inferior a € 161.000,00 fundamenta-se sobretudo na confissão de dívida carreada para os autos pela assistente, datada de19.03.2018.Este documento foi essencial para a convicção do tribunal, na medida em que consubstancia, (não obstante as evidentes deficiências de redacção, apontando, exemplificativamente, a sociedade representada pelo arguido como devedora – sendo...

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