Acórdão nº 1134/22.6T8FAF-A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 01-02-2024

Data de Julgamento01 Fevereiro 2024
Ano2024
Número Acordão1134/22.6T8FAF-A.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Sandra Melo
2ª Adjunta: Margarida Alexandra de Meira Pinto Gomes

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

AA intentou ação sob a forma comum contra BB e CC, peticionando:
a) que fosse declarado e reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado na petição inicial inscrito na matriz predial sob o art.º ...13 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...87.
b) que fosse declarado e reconhecido o direito de servidão de passagem a favor do referido prédio da autora, a onerar ou o prédio da autora ou dos réus, consoante seja definido em ação própria;
c) serem os réus condenados a reconhecer o direito da autora referido nas alíneas anteriores;
d) serem os réus condenados a repor o caminho no estado em que se encontrava antes da sua destruição, reconstruindo o muro divisório que ali se encontrava;
e) serem os réus condenados a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra os direitos da autora.

Devidamente citados, vieram os réus contestar excecionando:

1 – a ineptidão da petição inicial, considerando que os pedidos formulados são incompatíveis entre si;
2 – a exceção dilatória de caso julgado, considerando o que foi decidido no processo 861/20....;
3 – a autoridade de caso julgado resultante da decisão que ali foi proferida.

Foi proferido despacho saneador que, sobre as exceções invocadas, decidiu:
Da ineptidão e do caso julgado
Na sua contestação, os réus invocam, além do mais, as exceções de nulidade do processo por ineptidão da PI e a exceção de caso julgado.
As duas exceções invocadas pelos réus têm que ser analisadas em conjunto.
Com efeito, os réus invocam a exceção de nulidade do processo, por ineptidão, e a exceção de caso julgado.
Nos termos do art. 186º n.ºs 1 e 2, do NCPC, o processo é nulo quando seja inepta a petição inicial, designadamente quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Trata-se de uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso e conducente à absolvição da instância da parte contrária, de acordo com os art. 576º, n.º 2, 577º, al. b) e 578º do NCPC.
Os réus alegam que existe um a cumulação de pedidos incompatíveis.
Alegam que na alínea b) do pedido diz a A. o seguinte: “ser declarado e reconhecido o direito de servidão de passagem a favor do referido prédio da Autora, identificado nos artigos 1º e 2º da p.i., a onerar ou o prédio da Autora ou dos Réus, consoante seja definido em ação própria”.
E, de facto, existe uma cumulação ilegal, mas apenas aparente, pois essa cumulação não pode ser efetuada, por se verificar a exceção do caso julgado.
Vejamos.
Do caso julgado
O caso julgado é uma exceção dilatória que pressupõe a repetição de uma causa depois de uma causa anterior ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (art. 580º, n.º 1 do NCPC).
O caso julgado assegura a confiança nas decisões dos tribunais, evitando que sejam proferidas decisões contraditórias por diferentes tribunais. Com efeito, o caso julgado produz dois efeitos: um efeito impeditivo, traduzido na exceção de caso julgado, e um efeito vinculativo, com expressão na autoridade do caso julgado.
A exceção de caso julgado visa obstar à repetição de decisões sobre as mesmas questões e impede que os tribunais possam ser chamados não só a contrariar uma decisão anterior, com a repetirem essa decisão.

O art. 581º do NCPC elenca os requisitos do caso julgado. Segundo esta norma:
“1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.
Desta norma decorre que a repetição da causa ocorre quando é proposta uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo essa tripla identidade crucial para a verificação da exceção.

A identidade de sujeitos não supõe a mera identidade física ou nominal, verificando-se ainda quando as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, ou seja, não apenas aquelas que intervieram formalmente no processo, mas ainda, designadamente, aquelas que assumira, mortis causa, ou inter vivos, a posição jurídica de quem foi parte na causa depois de a sentença ter sido proferida e transitada em julgado.
A identidade dos pedidos afere-se pela circunstância de em ambas as ações se pretender obter o mesmo efeito jurídico, não sendo exigível uma adequação integral das pretensões.
No que respeita à identidade das causas de pedir, a mesma verifica-se quando as pretensões deduzidas nas ações derivem do mesmo facto jurídico, analisado à luz da substanciação consagrada no n.º 4 do art. 581º do NCPC.
Além da exceção do caso julgado, importa também ter em conta a autoridade do caso julgado, a qual garante a vinculação dos tribunais e dos particulares a uma decisão anterior, impondo que aqueles tribunais e estes particulares acatem essa decisão. A autoridade do caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art. 581º do NCPC.
Importa analisar o caso concreto.
Com efeito, estes autos e a ação n.º 861/20.... foram instauradas pela aqui autora contra os aqui réus.
Na ação n.º 861/20...., foi decidido “Declarar a existência do direito de propriedade da Autora sobre o prédio rústico denominado de “...”, situado em Fiéis de Deus, descrito na CRP ... com o n.º ...06, e inscrito na matriz predial com o n.º ...66, não abrangendo tal declaração o reconhecimento da inclusão dentro de tal prédio do caminho assinalado na planta anexa à petição inicial como doc. ... com a letra a) e integrante da leira 3, retratada nos docs. ... e ... juntos a tal articulado”.
Nesta nova ação n.º 1134/22...., a autora requer que seja declarado e reconhecido o direito de servidão de passagem a favor do referido prédio da Autora, identificado nos artigos 1.º e 2.º da PI, a onerar ou o prédio da Autora ou dos Réus, consoante seja definido em ação própria.
Ora, com base na decisão proferida no processo n.º 861/..., verifica-se que ficou definitivamente decidido que o caminho de servidão não faz parte do prédio denominado ..., facto que a autora volta a alegar na nova ação.
Aliás, a autora reconhece tacitamente esta realidade, pois instaura a presente ação em que pede a condenação dos réus a reconhecer a existência de um caminho de servidão.
Ao fazê-lo, acaba por reconhecer tacitamente que os réus são donos do prédio onde se situa o caminho. Caso contrário não haveria motivo para instauração da presente ação.
De facto, tendo em conta o decidido no processo n.º 861/20...., alegação constante do art. 19º da PI destes autos (A Autora considera seu o referido caminho ou trato de terreno está integrado num outro prédio rústico, atualmente de sua propriedade, denominado “... (Três) ou Campo ... ou Campo ...”, a confrontar do Norte com caminho e poça de consortes, sul com DD, nascente com Herdeiros de EE e poente com o caminho, inscrito na matriz sob o artigo ...66 Assim, e em suma, quanto a estas questões, há que considerar verificada), viola o caso julgado formado naquela anterior ação.
Assim, e em suma, verifica-se a exceção de caso julgado relativa ao pedido de reconhecimento de um direito de servidão de passagem da autora a onerar um prédio que lhe pertence, podendo a ação prosseguir para conhecimento da outra questão suscitada relativa ao pedido de reconhecimento de um direito de servidão de passagem da autora a onerar um prédio dos réus.
E, nessa medida, perante esta restrição dos pedidos formulados, já não se verifica a invocada ineptidão da PI.
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Outras exceções invocadas
Além do que se referiu supra, e contrariamente ao alegado na contestação, a autora podia e pode instaurar nova ação para reconhecimento do direito de servidão, pois a primeira ação não versava sobre esse objeto. A asserção constante dos artigos 19º e 20º da contestação não é válida quando está em causa a formulação de pedidos distintos em ações distintas. O que se escreve naquele artigo 20º da contestação diz respeito ao princípio da concentração da defesa na contestação, não se aplicando ao caso concreto.
Por fim, cabe referir que os réus invocam ainda a autoridade do caso julgado. Contudo, entende-se que essa exceção foi consumida pela verificação da exceção do caso julgado, uma vez que consideramos que ficou decidido que o caminho não integra o prédio da autora”.
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Perante esta decisão, vieram os réus interpor recurso de apelação, com as seguintes conclusões:

“Da invocada exceção de ineptidão da petição inicial
I. Na sua contestação, os Réus, aqui Recorrentes, invocaram, além do mais, a ineptidão da petição inicial, para tanto tendo alegado, grosso modo, que a Autora formula o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio identificado nos artigos 1º e 2º da p.i., e ainda, o reconhecimento do direito de servidão de passagem a favor daquele prédio e a onerar “o prédio da A. ou dos RR.,...

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