Acórdão nº 1114/17.3T8PVZ-A.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 21-02-2022
Data de Julgamento | 21 Fevereiro 2022 |
Ano | 2022 |
Número Acordão | 1114/17.3T8PVZ-A.P1 |
Órgão | Tribunal da Relação do Porto |
Proc. n.º 1114/17.3T8PVZ-A.P1
RÉ: ... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., contribuinte n.º ..., sita no ..., n.º 30, ...
Por via da presente ação declarativa, pretende o A. obter da Ré indemnização por danos decorrentes de acidente de viação.
Contestada a ação e realizada audiência prévia, veio a ser designada audiência de julgamento que decorreu em várias sessões, tendo o A., a 22.10.2021, formulado o seguinte requerimento:
“Doente acima identificado que teve uma primeira consulta de ortopedia em 26 de Novembro de 2010 por lombociatalgia esquerda, foi submetido a tratamento conservador, tendo tido alta assintomático na segunda e ultima consulta de ortopedia, realizada em 15 de Novembro de 2011.”.
- documento relativo às consultas externas do Autor em 26/11/2010 17:00, 11/10/2011 09:30 (falta), 15/11/2011 08:30 (desmarcada) e 15/11/2011 12:00;
- documento relativo à lista de inscritos para cirurgia, em que refere: no seu inicio “Cancelado em 04/11/2011 por motivo de: NÃO UTILIZAR” e na última linha “faltou a 2 consultas sem avisar”.
Veio a ser proferido o seguinte despacho, datado de 8.11.2021:
Ponderando o doutamente exposto por Autor e Ré, bem como os documentos ora apresentados pelo Autor, salvo o respeito devido por diferente opinião, indefere-se o requerido pelo Autor, porquanto os poderes-deveres que incidem sobre o Juiz como emanação do chamado princípio do inquisitório (art. 411.º do Código de Processo Civil) não podem ser utilizados para suprir ónus das partes não exercidos em momento oportuno, que é o que está em causa, pois como decorre do documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia», o Autor esteve na consulta de ortopedia do Dr. BB há mais de 10 anos (muito tempo antes da instauração da presente ação), tendo stado ao seu alcance arrolá-lo como testemunha. Acresce que o documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia» foi junto ao processo em 13-02-2019 (refª citius ...), nada tendo o Autor requerido, em momento oportuno, quanto a esse documento. Acresce, também, que o referido no documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia» é claro e inteligível. E acresce ainda que o único documento subscrito pelo Dr. BB é o documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia», sendo que o teor desse documento, repete-se, é claro e inteligível, não sendo incompatível com os outros documentos ora apresentados pelo Autor; documentos estes que dizem respeito a factos diretamente relacionados com o Autor e ocorridos há mais de 10 anos.
Por outro lado, na última sessão de julgamento, a 22.11.2021, verificou-se a falta da testemunha CC, única testemunha que faltava inquirir, tendo a mandatária do A. requerido fosse marcada uma nova data para sua inquirição, o que foi indeferido por despacho imediatamente aí proferido com o seguinte teor:
Pese embora o exposto no requerimento que antecede, ontem apresentado, verifica-se que a testemunha CC devidamente notificada faltou, pelo que se determina que a audiência prossiga sem a sua inquirição, porque no presente caso, atendendo que foi já adiada uma vez a inquirição da testemunha mencionada, não é admissível segundo adiamento de inquirição de testemunha faltosa – Art.º 509º do C.P.C.
Destes dois despachos recorre o A., visando a sua revogação, com base em argumentos que remata com as seguintes conclusões:
……………………………………….
……………………………………….
……………………………………….
A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos correram vistos legais. Objeto do recurso:
Da inquirição de pessoa não arrolada como testemunha e, bem assim, da verificação da previsão do art. 509.º CPC.
“Doente acima identificado que teve uma primeira consulta de ortopedia em 26 de Novembro de 2010 por lombociatalgia esquerda, foi submetido a tratamento conservador, tendo tido alta assintomático na segunda e ultima consulta de ortopedia, realizada em 15 de Novembro de 2011.”
2 – Os documentos remetidos pelo Hospital ... e referidos no requerimento do autor de 22.10.2021 foram juntos aos autos a 19.4.2021 e notificados então às partes, não os tendo estas impugnado e nada tendo requerido a este respeito.
3 - O julgamento iniciou-se em 13.1.2021 sem que conste que a testemunha CC estivesse presente.
4 - Designada continuação para dia 26.4.2021, foi nessa audiência determinada a inquirição da testemunha em causa para 11.10.2021 pelas 9:30, sendo notificada a testemunha presencialmente.
5 - Na data em causa, faltou e não justificou a falta, tendo sio notificada para comparecer na sessão seguinte, de 22.11.2021 pelas 9:30, não tendo comparecido.
6 - Deu entrada um requerimento no dia anterior da data designada para audiência dizendo estar impedido noutra diligência.
7 - Tratava-se do último dia marcado de cinco sessões de julgamento.
Assim, em matéria de direito probatório domina o processo civil o chamado princípio do inquisitório.
Segundo tal princípio, Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art. 411.º CPC).
Acrescenta o artigo 526.º, nº 1, do mesmo Código, que “[q]uando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor”
Traduzem estes preceitos a consagração legal do princípio do inquisitório; ou seja, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade. E quando se refere todas as diligências, quer-se mesmo significar que o juiz pode e deve determinar a produção de qualquer meio de prova em direito permitido, desde que o mesmo tenha aptidão para fazer corresponder a realidade processual à extraprocessual.
Deve, assim, entre outras diligências com essa finalidade, determinar a junção de documentos ao processo (artigo 436.º n.º 1), ordenar a produção de prova pericial (artigos 477.º e 487.º n.º 2), efetuar inspeção judicial (artigo 490.º, n.º1), ouvir qualquer pessoa não oferecida como testemunha, em relação à qual tenha razões para presumir que tem conhecimentos importantes para a boa decisão da causa (artigo 526.º nº1). E pode ouvir essas ou outras pessoas e ordenar as diligências necessárias à apontada finalidade, mesmo depois de concluída a produção da demais prova (artigo 604.º, n.ºs 7 e 8).
Porém, como se expressa no ac. RG, de 20.3.2018, Proc. 14/15.6T8VRL-C.G1, “Esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse direto em cumprir. Neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia”.
Na situação que nos ocupa, temos que o Autor requer a inquirição oficiosa do médico subscritor do documento que descreve do seguinte modo:
“requer-se, ao abrigo do disposto nos arts, 6.º, 411.º e 526.º do CPC, que seja inquirido em sede de audiência de julgamento na qualidade de testemunha o subscritor do relatório médico do serviço de ortopedia do Centro Hospitalar ..., Dr. BB, com vista à descoberta da verdade e boa decisão da causa.”
...
Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
AUTOR: AA, contribuinte n.º ..., residente na Rua ..., ....RÉ: ... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., contribuinte n.º ..., sita no ..., n.º 30, ...
Por via da presente ação declarativa, pretende o A. obter da Ré indemnização por danos decorrentes de acidente de viação.
Contestada a ação e realizada audiência prévia, veio a ser designada audiência de julgamento que decorreu em várias sessões, tendo o A., a 22.10.2021, formulado o seguinte requerimento:
1º
Ao longo da audiência de julgamento que se encontra a decorrer têm sido múltiplas as interpretações dadas aos documentos juntos ao processo pelo Centro Hospitalar ... relativos à situação clínica do Autor antes do acidente.2º
Assim, tem sido menosprezado, nomeadamente, o relatório médico do serviço de ortopedia, assinado pelo médico que acompanhou o Autor, Dr. BB, que diz:“Doente acima identificado que teve uma primeira consulta de ortopedia em 26 de Novembro de 2010 por lombociatalgia esquerda, foi submetido a tratamento conservador, tendo tido alta assintomático na segunda e ultima consulta de ortopedia, realizada em 15 de Novembro de 2011.”.
3º
Pelo contrário, tem vindo a ser empolado e interpretado de múltiplas formas o conteúdo dos seguintes documentos automáticos do servidor do Centro Hospitalar:- documento relativo às consultas externas do Autor em 26/11/2010 17:00, 11/10/2011 09:30 (falta), 15/11/2011 08:30 (desmarcada) e 15/11/2011 12:00;
- documento relativo à lista de inscritos para cirurgia, em que refere: no seu inicio “Cancelado em 04/11/2011 por motivo de: NÃO UTILIZAR” e na última linha “faltou a 2 consultas sem avisar”.
4º
Relativamente a este último documento, que não é subscrito por qualquer médico, tem-se tentado fazer crer que as supostas faltas a 2 consultas foram a causa do cancelamento da cirurgia, apesar de tal não resultar de nenhum documento e muito menos do relatório médico do Dr. BB.5º
Assim, parece-nos que apenas o Sr. BB poderá esclarecer o real alcance dos documentos referidos (e que se anexam para melhor esclarecimento) e sua conjugação, pois é o único que possui conhecimento directo do sucedido com o Autor antes do acidente a que se referem os presentes autos.4º
Desta forma, requer-se, ao abrigo do disposto nos art.ºs 6º, 411º e 526º do CPC, que seja inquirido em sede de audiência de julgamento na qualidade de testemunha o subscritor do relatório médico do serviço de ortopedia do Centro Hospitalar ..., Dr. BB, com vista à descoberta da verdade e boa decisão da causa, e em obediência ao princípio do inquisitório – cfr. nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/10/2019 proferido no processo n.º 18884/18.4T8PRT-A.P1.Veio a ser proferido o seguinte despacho, datado de 8.11.2021:
Ponderando o doutamente exposto por Autor e Ré, bem como os documentos ora apresentados pelo Autor, salvo o respeito devido por diferente opinião, indefere-se o requerido pelo Autor, porquanto os poderes-deveres que incidem sobre o Juiz como emanação do chamado princípio do inquisitório (art. 411.º do Código de Processo Civil) não podem ser utilizados para suprir ónus das partes não exercidos em momento oportuno, que é o que está em causa, pois como decorre do documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia», o Autor esteve na consulta de ortopedia do Dr. BB há mais de 10 anos (muito tempo antes da instauração da presente ação), tendo stado ao seu alcance arrolá-lo como testemunha. Acresce que o documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia» foi junto ao processo em 13-02-2019 (refª citius ...), nada tendo o Autor requerido, em momento oportuno, quanto a esse documento. Acresce, também, que o referido no documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia» é claro e inteligível. E acresce ainda que o único documento subscrito pelo Dr. BB é o documento intitulado «Relatório Médico do Serviço de Ortopedia», sendo que o teor desse documento, repete-se, é claro e inteligível, não sendo incompatível com os outros documentos ora apresentados pelo Autor; documentos estes que dizem respeito a factos diretamente relacionados com o Autor e ocorridos há mais de 10 anos.
Por outro lado, na última sessão de julgamento, a 22.11.2021, verificou-se a falta da testemunha CC, única testemunha que faltava inquirir, tendo a mandatária do A. requerido fosse marcada uma nova data para sua inquirição, o que foi indeferido por despacho imediatamente aí proferido com o seguinte teor:
Pese embora o exposto no requerimento que antecede, ontem apresentado, verifica-se que a testemunha CC devidamente notificada faltou, pelo que se determina que a audiência prossiga sem a sua inquirição, porque no presente caso, atendendo que foi já adiada uma vez a inquirição da testemunha mencionada, não é admissível segundo adiamento de inquirição de testemunha faltosa – Art.º 509º do C.P.C.
Destes dois despachos recorre o A., visando a sua revogação, com base em argumentos que remata com as seguintes conclusões:
……………………………………….
……………………………………….
……………………………………….
A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos correram vistos legais. Objeto do recurso:
Da inquirição de pessoa não arrolada como testemunha e, bem assim, da verificação da previsão do art. 509.º CPC.
FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Compulsando os autos principais, verificamos o seguinte:
1 - Em 13/02/2019 foram as partes notificadas do documento remetido aos autos pelo Centro Hospitalar ... e intitulado “Relatório médico do serviço de ortopedia”, assinado pelo Dr. BB, com o seguinte teor:Fundamentos de facto
Compulsando os autos principais, verificamos o seguinte:
“Doente acima identificado que teve uma primeira consulta de ortopedia em 26 de Novembro de 2010 por lombociatalgia esquerda, foi submetido a tratamento conservador, tendo tido alta assintomático na segunda e ultima consulta de ortopedia, realizada em 15 de Novembro de 2011.”
2 – Os documentos remetidos pelo Hospital ... e referidos no requerimento do autor de 22.10.2021 foram juntos aos autos a 19.4.2021 e notificados então às partes, não os tendo estas impugnado e nada tendo requerido a este respeito.
3 - O julgamento iniciou-se em 13.1.2021 sem que conste que a testemunha CC estivesse presente.
4 - Designada continuação para dia 26.4.2021, foi nessa audiência determinada a inquirição da testemunha em causa para 11.10.2021 pelas 9:30, sendo notificada a testemunha presencialmente.
5 - Na data em causa, faltou e não justificou a falta, tendo sio notificada para comparecer na sessão seguinte, de 22.11.2021 pelas 9:30, não tendo comparecido.
6 - Deu entrada um requerimento no dia anterior da data designada para audiência dizendo estar impedido noutra diligência.
7 - Tratava-se do último dia marcado de cinco sessões de julgamento.
Fundamentos de direito
Da pretendida inquirição do médico BB
Em processo civil, o princípio do dispositivo funciona de um modo geral no que concerne à alegação de factos, mas concede-se ao juiz a faculdade e, ao mesmo tempo, o dever de, tanto quanto possível, aferir a veracidade desses factos.Da pretendida inquirição do médico BB
Assim, em matéria de direito probatório domina o processo civil o chamado princípio do inquisitório.
Segundo tal princípio, Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art. 411.º CPC).
Acrescenta o artigo 526.º, nº 1, do mesmo Código, que “[q]uando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor”
Traduzem estes preceitos a consagração legal do princípio do inquisitório; ou seja, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade. E quando se refere todas as diligências, quer-se mesmo significar que o juiz pode e deve determinar a produção de qualquer meio de prova em direito permitido, desde que o mesmo tenha aptidão para fazer corresponder a realidade processual à extraprocessual.
Deve, assim, entre outras diligências com essa finalidade, determinar a junção de documentos ao processo (artigo 436.º n.º 1), ordenar a produção de prova pericial (artigos 477.º e 487.º n.º 2), efetuar inspeção judicial (artigo 490.º, n.º1), ouvir qualquer pessoa não oferecida como testemunha, em relação à qual tenha razões para presumir que tem conhecimentos importantes para a boa decisão da causa (artigo 526.º nº1). E pode ouvir essas ou outras pessoas e ordenar as diligências necessárias à apontada finalidade, mesmo depois de concluída a produção da demais prova (artigo 604.º, n.ºs 7 e 8).
Porém, como se expressa no ac. RG, de 20.3.2018, Proc. 14/15.6T8VRL-C.G1, “Esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse direto em cumprir. Neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia”.
Na situação que nos ocupa, temos que o Autor requer a inquirição oficiosa do médico subscritor do documento que descreve do seguinte modo:
“requer-se, ao abrigo do disposto nos arts, 6.º, 411.º e 526.º do CPC, que seja inquirido em sede de audiência de julgamento na qualidade de testemunha o subscritor do relatório médico do serviço de ortopedia do Centro Hospitalar ..., Dr. BB, com vista à descoberta da verdade e boa decisão da causa.”
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