Acórdão nº 1079/21.7T8BRR-E.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 16-05-2023

Data de Julgamento16 Maio 2023
Ano2023
Número Acordão1079/21.7T8BRR-E.L1-1
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,



1.SO, UNIPESSOAL, LDA., veio, por apenso ao processo de insolvência nº 1079/21.7T8BRR, propor a presente acção de verificação ulterior de créditos, nos termos do disposto no artigo 146º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), contra EV, LDA., a MASSA INSOLVENTE DE EV, LDA. e seus CREDORES, pedindo que se ordene ao senhor Administrador da Insolvência “para proceder à marcação da escritura de compra e venda prometida com a remoção dos ónus que recaiam sobre as frações” ou, em alternativa, que seja julgado verificado e reconhecido um crédito da A., no valor de € 36 000,00 (trinta e seis mil euros), a graduar como garantido, “por força da garantia real com privilégios creditórios especiais e direito de retenção que sobre tais frações recaem”.

Alegou, para tanto, em síntese, ter celebrado com a insolvente um contrato-promessa de compra e venda, com eficácia real, relativo a duas garagens da propriedade da ora insolvente, que esta última não cumpriu. Para o efeito, alegou ainda já ter pago à insolvente a quantia acordada (inicialmente, de €16.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento e, mais tarde, os remanescentes €2.000,00), mas não ter sido possível realizar a escritura pública de compra e venda porque “a insolvente nunca logrou levantar as hipotecas que recaíam sobre as referidas frações autónomas”.
Mais afirmou que, desde 2013, tem a posse das referidas garagens e que as vem utilizando e usufruindo publicamente como se fossem suas.

Regularmente citada, apenas a credora XYQ, SARL deduziu a respectiva contestação, pugnando pela improcedência da acção, quer por não resultar da documentação junta pela A. prova suficiente de ter esta realizado qualquer pagamento à insolvente, quer por não se verificar qualquer situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa, quer ainda por não ter a A., em caso de recusa de cumprimento pelo Administrador da Insolvência, direito ao dobro dos valores que alegadamente já pagou, por o disposto no artigo 442.º do Código Civil ser inaplicável ao caso dos autos – por força do regime especial previsto no CIRE e ainda por aquela não poder ser considerada “consumidor”.

Após realização de audiência prévia e frustrada a tentativa de conciliação, considerando o tribunal ser possível conhecer de imediato do mérito da causa, proferiu sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, negou provimento à pretendida marcação de escritura pública com remoção dos ónus e encargos registados, mais julgando não verificados os créditos reclamados pela Autora.

Inconformada com esta sentença, dela interpôs recurso a Autora, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, no próprio apenso e com efeito meramente devolutivo.

Termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
A)–A Douta sentença recorrida peca por não entender que existiu incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a ora Recorrente e a insolvente.
B)–É entendimento pacifico na Doutrina e Jurisprudência que tal incumprimento tem lugar no caso de o comportamento ou ações do devedor indicarem sem dúvida a sua recusa em cumprir.
C)–O comportamento do Exmo. Sr. Administrador de insolvência nos presentes autos, nomeadamente a venda judicial a terceiros das frações objecto do contrato promessa de compra e venda celebrado, claramente impossibilitam o cumprimento do contrato pois o objecto do mesmo deixa de ser possível.
D)–É assim claro que existe por parte do devedor, representado pelo Exmo. Sr. Administrador de insolvência, uma recusa em cumprir o contrato.
E)–E que o Exmo. Sr. Administrador de insolvência, não o podendo fazer, na prática e para todos os efeitos recusa o cumprimento do contrato vendendo as frações em questão a terceiros
F)–Pelo que existe um incumprimento definitivo do contrato celebrado.
G)–Pelo que deveria ser ordenado pelo tribunal que o Exmo. Sr. Administrador de insolvência que cumprisse com a sua obrigação legal, provendo pela realização da escritura.
H)–Ou não sendo tal possível, face ao preço já pago pela ora recorrente, devia ter sido reconhecido o crédito desta sobre a insolvente,
I)–Crédito esse no valor de 36 mil e que deveria ser graduado como garantido em relação ás frações designadas pelas letras “V” e “AC” do prédio urbano sito da Rua projectada à Rua …, n.º 1 a 41 Alhos Vedros descrito na Conservatória do Registo Predial da Moita sob o número 2550 e inscrito na matriz sob o artigo …, por força da garantia real com privilégios creditórios especiais e direito de retenção que sobre tais frações recaem a favor da ora Recorrente.

Pela credora XYQ, SARL foram deduzidas contra-alegações, que conclui do seguinte modo:
I.–A Autora ora Recorrente não alegou em nenhum momento que o Senhor Administrador de Insolvência se recusou a cumprir o contrato-promessa, ou que este se inferiu do seu comportamento – facto essencial cujo ónus de alegação lhe incumbia, nos termos do artº 5º do CPC; pelo contrário, o que peticionou foi que o Senhor Administrador cumprisse o contrato promessa, com a remoção dos ónus que recaiam sobre as frações.
II.–Tal remoção – de ónus e encargos – não é legalmente possível, pois que o Recorrente não exerceu a faculdade prevista no 830º nº 4 do CC.
III.–Não foi demonstrada sequer a efectiva existência de crédito – a documentação junta é insuficiente para prova do pagamento.
IV.–Mesmo que demonstrada a existência de crédito – no que não se concede – sempre o valor reconhecido corresponderá ao valor pago em singelo e não ao seu dobro.
V.–Acresce ainda que em caso algum poderia ser reconhecido qualquer direito de retenção porquanto o recorrente não detém a qualidade de “consumidor”.
VI.–Não merece, assim, qualquer reparo a douta sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.–Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pela recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pela Recorrente, impõe-se verificar se ocorreu ou não incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado entre a Autora e a Ré Insolvente, imputável a esta, que justifique, a título principal, o reconhecimento à ora Recorrente do direito às fracções objecto da aludida promessa com celebração de escritura de compra e venda das fracções sem ónus e encargos, e, a título subsidiário, o reconhecimento do crédito que aquela reclamou.

3.– Na sentença deram-se por provados os seguintes factos:
1)-No Cartório Notarial Notário C... B... foi celebrado, no dia 4 de Dezembro de 2012, escritura pública de “Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real”, conforme certidão junta com a petição inicial e cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido;
2)-De acordo com o documento aludido em 1), a EV, Lda. declarou prometer vender à aqui A., SO, Unipessoal, Lda., livre de ónus ou encargos e pelo preço de €18.000,00 (€9.000,00 por cada fracção), a fracção designada pela letra “V” e a fracção designada pela letra “AC” do prédio urbano sito na Rua projetada à Rua …, nº 1, e números 1, 2, 3, e 10 a 41, do Impasse “A” – impasse a tardoz), da freguesia de A____V____, descrito na Conservatória do Registo Predial da M____ sob o número .... e inscrito na matriz sob artigo ....;
3)-Nos termos da escritura referida em 1), o representante da ora insolvente no acto declarou “Que sobre os referidos imóveis incidem registadas duas hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA, pelas apresentações seis, de vinte e seis de Outubro de dois mil e sete e apresentação cinco mil seiscentos e noventa, de oito de Maio de dois mil e nove, que se mantêm em vigor”;
4)-De acordo com a alínea a) da Cláusula Segunda, as partes declararam que, na data da assinatura do contrato-promessa referido em 1), a ora A. entregou a importância de oito mil euros referente à fração “V” e oito mil euros referente à fração “AC”, a título de sinal e início de pagamento, que o representante da insolvente no acto declarou expressamente ter recebido e da qual deu quitação;
5)-Nos termos da alínea b) da Cláusula Segunda, o remanescente do preço seria pago na data de realização da escritura pública de compra e venda, “momento este em que serão liquidadas as importâncias devidas à Caixa Geral de Depósitos, SA contra a entrega de documento que permita o cancelamento das atrás mencionadas inscrições hipotecárias”;
6)-Nos termos da alínea c) da Cláusula Segunda, “A entrega dos referidos imóveis terá lugar na data da outorga da escritura pública de compra e venda”;
7)-De acordo com a Cláusula Terceira, “A escritura de compra e venda ora prometida terá lugar no prazo de cinco anos a contar da presente data”;
8)-Nos termos da Cláusula Sexta, “Todos os outorgantes atribuem eficácia real ao presente contrato, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413.º do Código Civil”;
9)-A promessa de compra e venda identificada nos números anteriores foi objeto de registo na Conservatória do Registo Predial da M____, em 05.12.2012, conforme certidão do registo predial junta ao apenso de apreensão de bens em 30.11.2021;
10)-Do mesmo registo predial constam registadas duas hipotecas voluntárias a favor da Caixa Geral de Depósitos, inscritas em 08.05.2009, tendo a Caixa Geral de Depósitos, SA transmitido os respetivos créditos para a XYQ LUXCO SARL, conforme registo de 17.03.2020;
11)-De acordo com o mesmo registo predial, encontra-se ainda registada hipoteca legal a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, conforme inscrição de 23.11.2020;
12)-Por documento datado de 05.02.2013, denominado “Adenda ao Contrato-Promessa de Compra e Venda Com Eficácia Real” e por referência ao contrato identificado em 1), foi feito
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