Acórdão nº 10626/18.0T9LSB-B.L1-PICRS de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-06-15

Ano2022
Número Acordão10626/18.0T9LSB-B.L1-PICRS
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Nos autos em que se gerou o presente recurso foi proferida, em 06.09.2019, decisão judicial com o seguinte teor:
Em requerimento apresentado à Autoridade da Concorrência(AdC) e dirigido ao JIC, vem a NOS COMUNICAÇÕES, SA requerer, em síntese, que seja declarada na nulidade do mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público, na parte em que autoriza a pesquisa e apreensão de mensagens de correio eletrónico; a nulidade(ou irregularidade) de toda a prova obtida através da apreensão das mensagens de correio eletrónico; a nulidade(ou irregularidade) de toda a apreensão de mensagens de correio eletrónico efetuada por falta de mandado judicial para o efeito e a nulidade, por vício de proibição de prova, de todas as mensagens de correio eletrónico remetidas a advogados da requerente.
O MP pronunciou-se pelo indeferimento do requerido.
Vejamos.
No dia 11/12/2018 e no âmbito do processo de contraordenação nº. PRC/208/5 a correr termos na AdC, foram realizadas buscas na sede e instalações da NOS por funcionários da AdC deviamente credenciados, conforme previsto no artº. 18º nº.4 a) da Lei nº.19/2012 e na presença dos responsáveis pela operadora.
A requerimento da AdC foi proferido despacho pelo MP que determinou as buscas e a emissão de mandados com a finalidade, entre outros elementos de prova, da realização do exame, recolha e apreensão, designadamente, de mensagens de correio eletrónico nos precisos termos que consta do despacho do MP.
Tal despacho (cuja cópia foi entregue aos representantes da operadora) justifica e fundamenta a apreensão realizada não sendo exequível, como pretende a operadora, que no momento da apreensão o interesse para a investigação da infração de cada um dos documentos tenha de ser justificado por decisão fundamentada.
No decurso da busca foram copiados ficheiros informáticos relevantes para a prova sendo feita a transferência desses ficheiros para outro suporte informático que foi apreendido.
Atento os elementos constante dos autos, a AdC limitou-se a apreender mensagens lidas e arquivadas em suporte digital existindo, assim, fundamento legal para que a AdC fizesse a pesquisa e apreensão das mensagens de correio eletrónico, nos termos do disposto no artº. 20º nº.1 da Lei nº. 19/2012.
Como bem refere o MP no seu despacho de fls. 888: “as mensagens que depois de recebidas ficam gravadas no recetor deixam de ter natureza de comunicação em transmissão, são comunicações recebidas pelo que devem ter o mesmo tratamento da correspondência escrita já recebida e guardada pelo destinatário.
Tem sido pacificamente aceite que, depois de aberta, a correspondência passa a ser um mero documento escrito que pode, sem qualquer reserva, ser apreendida no decurso de uma busca.
Na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma proteção da carta de papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal.
Assim, tratando-se de meros documentos estas mensagens não gozam da aplicação do regime de proteção da reserva da correspondência e das comunicações”.
Pelo exposto, não se verifica qualquer nulidade ou irregularidade no âmbito das diligências efetuadas.
NOS COMUNICAÇÕES, S.A., interpôs recurso desta decisão formulando as seguintes conclusões e pedido:
A) O presente recurso tem por objecto a decisão do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa que declarou integralmente improcedentes os vícios probatórios e processuais suscitados pela Recorrente a propósito da apreensão de correio electrónico realizada pela AdC durante as diligências de busca realizadas às suas instalações nos passados dias 11 a 21 de Dezembro de 2018.
B) À alegação da Recorrente de que a AdC não pode apreender correio electrónico, independentemente de o mesmo se encontrar aberto ou fechado por falta de habilitação legal ou, no limite, de autorização judicial, respondeu o Tribunal com a afirmação de que «[tjewi sido pacificamente aceite que, depois de aberta, a correspondência passa a ser um mero documento escrito que pode, sem qualquer reserva, ser apreendida no decurso de uma busca», pelo que «[t]ratando-se de meros documentos estas mensagens não gozam da aplicação do regime de proteção da reserva da correspondência e das comunicações».
C) Ora, independentemente do que haja a dizer sobre o mérito jurídico da decisão recorrida, existe um ponto em que esta é objectiva e indiscutivelmente errada: não só não é pacificamente aceite que, depois de aberta, a correspondência electrónica passa a ser um mero documento escrito, como é, aliás, praticamente aceite de forma pacífica a solução inversa.
D) Assim, e porque o entendimento subscrito pelo Tribunal a quo se encontra já manifestamente ultrapassado, impõe-se reverter a decisão recorrida, concluindo-se pela ilegalidade da apreensão de correio electrónico, daí se extraindo as devidas consequências quanto à nulidade dos mandados do Ministério Público que a suportou e à proibição da prova por essa via obtida.
Os motivos do recurso são os que se seguem:
II.
O regime da apreensão de correspondência em processo penal e a sua importação pelo Direito da Concorrência
E) No mandado relativo à Recorrente prevê-se a possibilidade de apreensão de mensagens de correio electrónico já abertas.
F) Porém, a AdC não dispõe de norma legal habilitante que lhe permita pesquisar e apreender correio electrónico, independentemente de estar aberto ou fechado e independentemente da precedência de um mandado do Ministério Público que o autorize. Vejamos,
G) Durante alguns anos, a doutrina e a jurisprudência entendiam frequentemente que o correio electrónico fechado deveria encontrar-se sujeito ao regime da apreensão de correspondência (do artigo 179.° do CPP), ao passo que as mensagens já abertas perderiam o carácter comunicacional que justificaria aquela tutela acrescida, devendo, por isso, sujeitar-se ao regime geral da apreensão de documentos.
H) Primeiro em 2007, com a alteração ao artigo 189.° do CPP, e depois com a entrada em vigor da Lei do Cibercrime, em particular do seu artigo 17.°, a intenção do legislador passou a ser inequívoca: todo o correio electrónico se encontra sujeito ao regime da apreensão de correspondência, independentemente de as mensagens se encontrarem abertas ou fechadas.
I) Assim, e por muito que a AdC, secundada pelo Tribunal a quo, possa discordar da solução legislativa, a verdade é que in clans non fit interpretado e, pelo menos aqui, a lei é clara, como reconhece actualmente a doutrina (designadamente a de Rita Castanheira Neves, Paulo Pinto de Albuquerque, Pedro Verdelho, Rui Cardoso e Sónia Fidalgo), a jurisprudência dos tribunais superiores, incluindo desse Venerando Tribunal, bem como o Gabinete do Cibercrime junto da Procuradoria-Geral da República: o correio electrónico passou a configurar sempre correspondência e nunca um mero documento electrónico, pelo que se encontra sempre protegido, pelo menos pelo direito à inviolabilidade da correspondência, tal como previsto no artigo 34.°, da CRP, extensível às pessoas colectivas por via do seu artigo 12.°, n.° 2.
J) E ainda que a mera interpretação literal, histórica e sistemática do artigo 17.° da Lei do Cibercrime não bastasse, a verdade é que, também no plano teleológico, é possível encontrar motivos perfeitamente razoáveis para que o correio electrónico tenha uma tutela acrescida por comparação com o correio tradicional aberto.
K) Em primeiro lugar, tal justifica-se pela circunstância de o correio electrónico, ao contrário do correio tradicional, conter, para além do conteúdo textual, muito mais informação constitucionalmente tutelada, na qual se incluem dados de tráfego, nos termos do artigo 2.°, alínea c), da Lei do Cibercrime, como seja informação sobre o remetente (from), o destinatário principal (to), os destinatário secundários (em cc) e mesmo ocultos (em bcc), a data e a hora exactas de envio e/ou de recepção do e-mail, o Message-ID, o time-stamp do momento em que a mensagem passou por um servidor no qual seja executado o Microsoft Exchange, ou mesmo o trajecto seguido pelo e-mail, como seja o endereço IP de todos os sistemas informáticos pelos quais a mensagem passou até chegar ao destinatário, juntamente com a data e hora em que o fez, incluindo os endereços do fornecedor de serviços de e-mail do remetente e do destinatário.
L) E justifica-se ainda pela circunstância de, ao contrário do que sucede com o correio tradicional, o correio electrónico tipicamente se encontrar armazenado em sistemas de armazenamento massivo de informação ou, pelo menos, em elevados volumes de informação, susceptíveis de tratamento automatizado e de pesquisa em termos especialmente rápidos e tecnologicamente eficientes, mas também especialmente lesivos e com um grau de ingerência em direitos fundamentais agravado.
M) Por fim, a distinção entre mensagem de correio electrónico aberta e fechada é absolutamente estéril e anacrónica, seja porque o acto de marcar uma mensagem como lida frequentemente nada tem a ver com a efectiva apreensão do seu conteúdo pelo destinatário, seja porque facilmente, tanto o utilizador como, eventualmente, a AdC ou terceiros de forma acidental ou dolosa, podem marcar uma mensagem como não lida, mesmo após já o ter sido, sem que algum programa informático forense o descubra.
N) O entendimento que a AdC e, bem assim, o Tribunal a quo importaram do processo penal, atribuindo relevância à distinção entre mensagens abertas e fechadas vigorou apenas até 2007.
O subsequente abandono dessa tese e a atribuição da mesma tutela a mensagens lidas e não lidas impõe que se importe paira o direito das contra-ordenações o regime actualmente vigente no processo penal: o correio electrónico constitui, sempre,
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