Acórdão nº 1057/20.3T8PDL.L1-6 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-01-26

Ano2023
Número Acordão1057/20.3T8PDL.L1-6
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO

M…, residente em …, veio propor a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra:
MUNICÍPIO …, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia global de €250.160,00, a título de enriquecimento sem causa.
Para tanto, alega, em síntese, que o Réu construiu um jardim público e um estacionamento, ocupando 742 m2 de um imóvel que lhe pertence, sem qualquer fundamento legal. O Réu obteve assim um benefício à custa do património da Autora que nessa mesma medida ficou empobrecida, do que resulta para o Réu o dever legal de restituir o que recebeu indevidamente.
Devidamente citado, o Réu contestou a ação quer invocando a exceção peremptória de prescrição do direito da Autora, quer impugnando os fundamentos de facto e de direito da ação.
Termina pedindo a sua absolvição do pedido.
Teve lugar a audiência prévia no âmbito da qual: (i) frustrou-se a tentativa de conciliação; (ii) foi proferido o despacho saneador, no qual ficou afirmada a validade e a regularidade da instância; (iii) a Autora reduziu o pedido para € 187.620,00 (cento e oitenta e sete mil e seiscentos e vinte euros); (iv) e foi proferido o despacho de verificação de inexistência de matéria de facto relevante controvertida e, por conseguinte, de que o estado dos autos permitia o imediato conhecimento do mérito da causa.
Seguidamente foi proferida sentença que julgou verificada a excepção peremtória de prescrição do direito da Autora M… relativamente a factos anteriores a 08.05.2017. Julgou ainda a acção improcedente e em consequência absolveu o Réu do pedido.
Inconformada com esta sentença, a Autora interpôs recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:
Primeira: o facto de a Autora, ora Apelante, desde sempre se ter arrogado como proprietária das parcelas de terreno ocupadas pelo Município … em nada conflitua com o reconhecimento, efectivo e inequívoco, do direito de propriedade – e dos direitos que a ele lhe são inerentes – por um órgão de soberania com competência, no caso o tribunal administrativo aonde correu o processo, sobre o imóvel, já que desde sempre o Apelado arrogou, para si, a mesma qualidade de proprietário.
Segunda: a ter-se provado a existência de uma doação de parte do imóvel ao Apelado, ou a ter-se verificado qualquer outra forma de aquisição da propriedade (contrato ou usucapião, a título de exemplo) cairia por terra a pretensão da Autora de ver aquela parte do imóvel expropriada.
Terceira: Porquanto não é possível ser-se expropriado daquilo que não é seu.
Quarta: Assim, a expropriação, tendo por base a transmissão da propriedade (neste caso, por declaração de utilidade pública), pressupõe, inevitável e indubitavelmente, o reconhecimento da propriedade ao expropriado, e a consequente transmissão da propriedade à entidade expropriante.
Quinta: É, portanto, apenas no momento do trânsito em julgado da sentença do Proc. n.º 304/10.4BEPDL que a Apelante tem o conhecimento efectivo do direito que lhe assiste – e, portanto, só a partir desse momento, começou a correr o prazo de prescrição do art.º 482º do Código Civil.
Sexta: E mesmo que assim se não considerasse, a verdade é que é comummente aceite e defendido pela Doutrina que o prazo espelhado no art.º 482º do Código Civil não começa a correr enquanto o empobrecido tiver, por outras vias, tentado ver-se ressarcido por outros meios.
Sétima: e ainda que se considere que, à data indicada nos factos provados pela Douta sentença de que ora se recorre (2010), a Apelante tinha já conhecimento do direito que lhe assiste, não esqueçamos que foi intentada acção, em Dezembro desse mesmo ano, com vista a que o Apelado expropriasse as parcelas de terreno propriedade da Apelante, e que pagasse uma indemnização, a título de sanção pecuniária compulsória, na morosidade dessa expropriação.
Oitava: o que, nos termos do art.º 323.º, nº 1 do Código Civil, equivaleu a uma interrupção do prazo de prescrição do art.º 482º do mesmo diploma – importando, assim, a inutilização de todo o prazo decorrido anteriormente, e obrigando à contagem de novo prazo.
Nona: O que se traduz, em termos práticos, na mesma conclusão já espelhada supra: o prazo de prescrição só começou a contar após o trânsito em julgado que reconheceu à Apelante o direito à expropriação das parcelas ocupadas pelo Apelado.
Décima: Para além do mais, e tal como já considerado por jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, o momento do conhecimento do direito, em termos de enriquecimento sem causa, não pode ser reportado apenas à vertente fáctica, mas também à vertente jurídica – não faria sentido que assim não fosse, tendo em conta o curtíssimo prazo de três anos conferido por Lei para que o empobrecido faça por se ver restituído.
Décima Primeira: ao contrário do que considerou o Tribunal ad quo, não pode ser aplicada, ao caso em concreto, a responsabilidade civil extracontratual, porquanto a mera privação de uso, ao contrário do que considerou a sentença recorrida, não é susceptível de gerar indemnização.
Décima Segunda: Para que se gere o direito de indemnização fundado na impossibilidade de uso de uma coisa necessário é que a impossibilidade de uso se traduza num dano, que terá de ser alegado e provado, pelo lesado. A privação desse uso terá de se provar como tendo ocorrido por acto ilícito de terceiro, cabendo ainda ao lesado comprovar a existência de uma concreta utilização relevante da coisa.
Décima Terceira: este dano não ocorreu na esfera jurídica da Apelante, não podendo por ela ser alegado e provado – e até mesmo porque, ainda que ocorresse um dano decorrente da privação do uso das parcelas do imóvel de que é proprietária, não é essa a questão que se levanta e que releva.
Décima Quarta: releva sim o facto de a impossibilidade de um proprietário usufruir e usar um imóvel a seu bel-prazer, por outrem se usar dessas mesmas faculdades – reservadas apenas a quem detém o direito de propriedade sobre a coisa – constituir um facto que é tutelado pelo Direito, na medida em que apenas ao proprietário de algo deve ser conferida a possibilidade de fazer da coisa aquilo que bem entender, e se usar dela como bem lhe aprouver.
Décima Quinta: nesta medida, não existindo um dano concreto nem a prova de que o imóvel teria um uso específico que lhe seria destinado pelo seu proprietário, cai por terra um dos requisitos imperativos e cumulativos a que haja lugar a uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual – o dano.
Décima Sexta: pelo que não poderia, obviamente, a Apelante ter-se socorrido do instituto da responsabilidade civil para fazer valer o seu direito, porquanto não se trata aqui de querer ver-se indemnizada pela impossibilidade de uso do seu imóvel, mas sim de ser ressarcida pela prática de direitos reservados única e exclusivamente ao detentor do direito de propriedade por parte de quem está longe de ser proprietário do imóvel.
Décima Sétima: ainda que, como nos parece ser a opinião da sentença recorrida, quisesse a Apelante socorrer-se do instituto da perda de chance, também este seria manifestamente inaplicável.
Décima Oitava: para que a perda de chance – que não tem acolhimento na letra da nossa lei e que (muito dificilmente) é aplicada pelos nossos Tribunais se verifique, é necessário que se comprove que existia uma chance ou probabilidade, séria e real, de que não fosse a actuação que impossibilitou essa chance, o lesado obteria uma determinada vantagem que seria, em termos probabilísticos, razoável supor que quisesse obter.
Décima Nona: ora, mais uma vez seria a questão focada no dano – ou aliás, na impossibilidade de evitar esse dano – causado à Apelante, havendo ainda a obrigatoriedade de o correlacionar e comprovar, com recurso a juízo probabilístico relativamente elevado e sério, que a perda da chance da proprietária havia sido causada pelo Município.
Vigésima: caindo assim por terra o preenchimento dos requisitos do dano e do nexo de causalidade, não sendo, então, lícito à Apelante socorrer-se desta via para fazer valer o seu direito.
Vigésima Primeira: assim, não podendo o direito da Apelante ficar desprovido de tutela jurídica, restava-lhe apenas – como se tem vindo a invocar desde a instauração da instância – o recurso ao instituto jurídico do enriquecimento sem causa.
Vigésima Segunda: O enriquecimento sem causa pressupõe a locupletação, por parte de alguém, à custa de outrem, sem para tal ter um qualquer motivo justificativo.
Vigésima Terceira: São, assim, requisitos do enriquecimento sem causa a existência de um enriquecimento, a falta de causa justificativa para esse enriquecimento, e que o enriquecimento tenha ocorrido às custas de quem requer a restituição.
Vigésima Quarta: o Apelado viu-se, de facto, enriquecido: a construção dos instrumentos públicos (parque de estacionamento e jardim) nas parcelas de terreno da Apelante foi levada a cabo sem quaisquer custos na aquisição do terreno.
Vigésima Quinta: Para além do mais, foi através dessa mesma construção de equipamentos públicos que a freguesia obteve uma maior afluência de visitantes; tendo sido também às custas da instalação do parque de estacionamento na propriedade privada da Apelante que a Junta de Freguesia acabou por mudar as suas instalações para próximo do mencionado equipamento público – de forma a facilitar o acesso dos residentes nas suas deslocações à Junta.
Vigésima Sexta: É igualmente claro e inequívoco que o enriquecimento do Apelado carece de causa justificativa, não detendo o mesmo qualquer título que possa legitimar a sua ingerência no direito de propriedade alheio.
Vigésima Sétima: E, da mesma forma, é inegável que esse enriquecimento tenha acontecido às custas da Apelante, que se viu privada de utilizar a sua propriedade.
Vigésima Oitava: É entendimento doutrinário e jurisprudencial uniforme que ao enriquecimento do enriquecido não tem de corresponder um
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