Acórdão nº 1035/22.8 BESNT de Tribunal Central Administrativo Sul, 2023-10-12

Ano2023
Número Acordão1035/22.8 BESNT
ÓrgãoTribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO

S..., LDA., intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a presente acção administrativa de contencioso pré-contratual contra a T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT, S.A. (Entidade Demandada) de declaração de ilegalidade dos artigos 4.º, n.º 3 e 15.º do Programa do Concurso e das cláusulas 1.ª, 3.ª, 4.ª e 35.ª do Caderno de Encargos do concurso público, designado por “Rede de Agentes de Venda de Títulos de Transporte Comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT, S.A”.
O TAF de Sintra, por decisão de 13.12.2022, julgou-se incompetente em razão da matéria e determinou a remessa ao Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por ser o competente.
Por sentença de 24.03.2023, o TAC de Lisboa, decidiu julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa e, em consequência, absolveu a Entidade Demandada da instância.
Inconformada a Autora, ora Recorrente, veio interpor recurso jurisdicional terminando a sua Alegação com as seguintes (extensas) conclusões:
Quanto ao objeto dos presentes autos:
A) Os presentes autos podem ser sumariados num pequeno parágrafo: a Autora, juntamente com centenas de outras empresas, presta um serviço à Entidade Demandada; a Entidade Demandada decidiu promover um concurso público tendo em vista regular a prestação daquele serviço; o concurso público foi formulado de tal forma que a Autora, juntamente com centenas de outras empresas, deixam de poder prestar esse serviço; aliás, o Concurso apenas poderia concluir com a escolha de uma única entidade porque só essa reunia os requisitos para concorrer.
É esta absoluta e absurda eliminação da concorrência, com prejuízo de quem atualmente presta o serviço e deixará de o poder fazer, que está em causa nos presentes autos.
B) A ação de contencioso pré-contratual visa a declaração de ilegalidade do n.º 3 do mesmo artigo 4.º do Programa do Concurso, do artigo 15.º do Programa do Concurso, assim como do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos e das cláusulas 3ª, 4ª e 35ª do Caderno de Encargos do concurso público, designado por “Rede de Agentes de Venda de títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT. S.A.”, criado pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT. S.A..

C) O referido concurso visa a celebração de um contrato de aquisição de serviços com vista a estabelecer e a operar uma Rede permanente, com um mínimo de 1500 (mil e quinhentos) de Agentes de Vendas que assegure a venda dos títulos de transporte comercializados pela T... - Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A., no valor de €730,000.00 (setecentos e trinta mil euros).

D) A Autora e ora Recorrente integra a vasta rede de agentes de vendas da P...i – entidade que prestava o mesmo serviço que se visa prestar com o contrato resultante do concurso público em causa.
Quanto ao mérito do recurso:
Síntese da decisão recorrida
E) A decisão recorrida julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa deduzida, tendo por isso absolvido a Entidade Demandada da instância, nos termos do disposto no artigo 87.º-B, n.º 1 e artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e alínea e), do n.º 4, todos do CPTA.

F) O Saneador-Sentença considerou que “a Autora, para além de não se ter constituído como interessada no procedimento, não sendo, pois, concorrente, também não é prejudicada por qualquer das decisões concretas que, com base nas disposições que impugna do Programa do Procedimento e do Caderno de Encargos, venham a ser adotadas no seu decurso” (cfr. página 10 do Saneador-Sentença).

G) A Recorrente não pode deixar de discordar com o sentido da decisão recorrida, de procedência da exceção de ilegitimidade ativa, que parece fazer tábua rasa da doutrina de reconhecido mérito que o próprio Saneador-Sentença mobilizou.

Do erro na interpretação e aplicação do direito
Da necessidade que o Concurso Público visa satisfazer
H) Se atentarmos na requisição interna para efeitos de contratação (fls. 1 e 2 do processo administrativo), verificamos o seguinte quanto à fundamentação da necessidade de contratar:

“O lançamento da operação Carris Metropolitana, face às suas características e abrangência geográfica, obriga a que se alargue e estabeleça uma Rede de Vendas, tomando em consideração a heterogeneidade dos utilizadores da rede atual, assim como dos potenciais utilizadores, multiplicando os esforços para fazer com que os produtos comercializados pela T..., à imagem da rede operada pela mesma, cheguem a cada camada do público-alvo de forma eficiente”.
Ou seja, é absolutamente claro que a necessidade identificada pela Entidade Demandada era a de ter um número elevado de agentes de venda.
Ora, esse propósito justifica a existência da maior abrangência possível de pontos de venda dos produtos comercializados pela T....
O Concurso Público foi a forma encontrada pela T... para dar resposta a essa necessidade.
Ora, o que a Autora, ora Recorrente, contesta é que existem outras formas que poderiam ser utilizadas pela Entidade Demandada para satisfazer a sua necessidade e que a forma escolhida pela Entidade Demandada restringe de tal forma a concorrência que apenas pode ser satisfeita por uma entidade; entidade essa com a qual a Autora não tem qualquer relação e que implica a impossibilidade de a Autora continuar a prestar o serviço que atualmente presta.
Salvo o devido respeito pela sentença recorrida, não se compreende como se poderá concluir que a Autora não tem interesse em impugnar as peças do Concurso Público nem os atos praticados no seu âmbito.
Da legitimidade ativa da Recorrente
I) Dispõe o artigo 103.º, n.º 2, do CPTA que goza de legitimidade ativa “quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa”.

J) A doutrina é uníssona ao considerar que não é necessário que o interessado já seja participante no procedimento para que possa impugnar judicialmente os documentos confirmadores do procedimento (cfr. Almeida, Mário Aroso de, Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2021, 5ª edição, Coimbra, Almedina, p. 873).

K) Foi exatamente isto que levou a Autora a pugnar pela ilegalidade do artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos (vide artigos 59.º a 93.º da Petição Inicial) por se tratarem de previsões violadoras do princípio da concorrência, que impõem aos concorrentes que sejam suficientemente grandes para estabelecer e operar uma vasta Rede permanente de Agentes de Vendas – de pelo menos 1500 agentes que se dedicarão à venda exclusiva dos títulos da Ré – impedindo qualquer tipo de concorrência.
E não se entenda esta argumentação no sentido de que a Autora pretendia (individualmente) candidatar-se ao concurso público em causa – o que parece ter sido a conclusão da primeira instância.
L) É notório que a Autora, na qualidade de agente integrado da rede de agentes da P...i (cfr. facto provado n.º 4) – entidade que assegurava o serviço que a Entidade Demandada visa que seja prestado com a celebração do contrato do Concurso em causa – nunca poderia almejar ter arcabouço bastante para providenciar a Rede de Agentes que a Entidade Demandada procura.
M) Aliás, ninguém, além da adjudicatária, tem arcabouço bastante para providenciar a Rede de Agentes que a Entidade Demandada procura.
N) Não obstante, o preceito no CPTA não restringe a legitimidade ativa às entidades com capacidade para ser concorrentes – nem o poderia fazer (como a já referida doutrina alerta), sob pena de autorizar que qualquer entidade pública formasse um concurso público ilegalmente restritivo e, nessa medida, somente impugnável pelos concorrentes ilegalmente admissíveis.
O) Acresce que nada impedia a Autora de criar uma rede que permitisse ter um conjunto de agentes disponíveis para prestar o serviço. O que impede é a circunstância de a Entidade Demandada exigir um número de agentes de tal forma elevado que apenas uma entidade poderia corresponder ao pedido.
P) Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha ensinam que, em matéria de legitimidade ativa para impugnar documentos conformadores do procedimento, “[t]rata-se de uma regra de legitimidade que se circunscreve à relação jurídica intersubjetiva, pressupondo um interesse pessoal no resultado do procedimento, pelo que ela está associada a um requisito de lesividade” (sublinhado nosso) – cfr. Almeida, Mário Aroso de; Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2021, 5ª edição, Coimbra, Almedina, p. 873.
o que sucede então nos presentes autos.
Q) Conforme consta do elenco de factos provados, a Recorrente pertence à Rede de Agentes da entidade que prestava o serviço que a adjudicatária passará a prestar – a P...i (facto provado n.º 4).

R) Nessa medida, na qualidade de agente de vendas integrada numa outra Rede de Agentes, a Autora vê-se impedida (por força dos requisitos impostos pela Entidade Demandada) de continuar a prestar o serviço de venda de títulos que, até então, realizava – sendo esta a real e direta lesão que legitima a Autora a impugnar dos preceitos constantes dos documentos conformadores do procedimento.

S) Ainda sobre a regra da legitimidade ativa vertida no n.º 2, do artigo 103.º, do CPTA, Marco Caldeira chama à atenção para a necessidade de o mesmo corresponder ao disposto no Considerando (17) da Diretiva 2007/66/CE (cfr. Caldeira, Marco, “O “novo” contencioso pré-contratual (tópicos desenvolvidos para uma intervenção)”; in Coleção Formação Contínua – Contencioso pré-contratual – Jurisdição Administrativa e Fiscal do Centro de Estudos Judiciários, fevereiro 2017, p. 43.).

O Considerando (17) da Diretiva 2007/66/CE atribui legitimidade ativa a quem tenha “interesse em obter um contrato em...

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