Acórdão nº 1034/23.2T8PRT.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2024-02-20

Ano2024
Número Acordão1034/23.2T8PRT.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Processo n.º 1034/23.2T8PRT.P1


Relator: João Diogo Rodrigues
Adjuntos: Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira;
Maria da Luz Teles Menezes de Seabra


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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

1- AA, intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC pedindo que se reconheça e declare que ela própria (A.) é legítima proprietária do prédio urbano inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...25.º, sito na Rua ..., ..., União de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto, distrito do Porto, referente a uma fração autónoma, destinada a habitação, em regime de propriedade horizontal, no rés-do-chão direito, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...85/20080602-B, área total de terreno 195m2, área de implementação do edifício 125 m2, área bruta privativa total 361,4000 m2, área de terreno integrante das frações 70 m2.

Isto porque, em resumo, embora este prédio tenha integrado o acervo hereditário deixado por óbito dos seus pais, avós da 1.ª Ré, tem nele habitado desde o ano 1964 e, particularmente, a partir do ano do ano 2000, tem-se comportado em relação a ele como sua verdadeira dona, o que é do conhecimento dos vizinhos, transeuntes e das próprias Rés, que nunca mostraram qualquer preocupação ou interesse nesse prédio.

Daí que considere tê-lo adquirido por usucapião.

2- Contestaram as Rés, arguindo a exceção de ilegitimidade da Ré, CC, e refutando aquela aquisição, já que o direito de propriedade sobre o dito prédio está integrado no acervo hereditário referenciado pela A.

Formularam ainda pedido reconvencional.

3- A A. replicou pugnando pela improcedência da reconvenção.

4- Esta reconvenção foi subsequentemente rejeitada.

5- Terminada a fase dos articulados, foi, após audição das partes, proferida sentença na qual se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade arguida, bem como a presente ação, absolvendo as Rés do pedido.

Na base desta última absolvição está, em síntese, o entendimento de que não está demonstrado que a A. se tenha relacionado com o aludido imóvel com intuito apropriativo e, assim, não lhe pode ser reconhecido o direito de propriedade sobre o mesmo, com base no instituto da usucapião.

6- Inconformada com esta sentença dela recorre a A., terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“I. A Autora interpôs a presente ação para que fosse declarada a aquisição da propriedade por usucapião.

II. A Ré apresentou contestação e não impugnou especificadamente a matéria trazida aos autos pela Autora, aceitando-a e corroborando-a em alguns pontos -art.º 35.º, art.º 41.º e art.º 42.º -, impugnou os documentos 6, 8 e 10 da petição, defendeu que a Autora se encontra desprovida de animus sibi habendi

III. A Juiz a quo proferiu despacho dizendo que os autos contêm todos os elementos para conhecer do mérito da causa.

IV. Proferida sentença, o Tribunal a quo julgou totalmente improcedente o peticionado, sustentando a sua decisão na inexistência do animus por parte Autora, porquanto esta não teria agido na convicção de ser plena proprietária.

V. A Autora discorda da matéria de facto elencada, assim como da ponderação jurídica do tribunal a quo.

VI. Devem ser aditados aos factos provados, os seguintes factos:

14. A Autora reside no referido imóvel ininterruptamente desde 1964.

15. A Autora cuidou do pai e da mãe até às suas mortes.

16. Em 1997, a mãe da Autora foi diagnosticada com a doença de alzheimer, o que causou uma alteração neurológica que causou a perda de memória e declínio cognitivo progressivos.

17. Em 2000, a mãe da Autora tinha: perda de memória episódica, dificuldade em reconhecer pessoas, um discurso mais pobre e entrecortado à procura de palavras, desorientação em espaços, alterações do comportamento, frequentes as alucinações visuais, atividade delirante, agitação e agressividade.

18. Em 2001, a mãe da Autora, apesar de literada, já não conseguia assinar, havia deixado de viver de forma autónoma, tinha que ser ajudada em tarefas antes realizadas de forma natural, como cozinhar, vestir-se, lavar-se, lidar com dinheiro.

19. Entre 2001 e 2007, a mãe da Autora encontrava-se completamente dependente, perdendo todas as suas faculdades mentais.

20. Desde o ano 2000 que a Autora se comporta como proprietária, ocupando o dito imóvel, fazendo-o seu, nele residindo até aos dias de hoje.

21. A Autora sempre usou do referido imóvel como se de sua propriedade se tratasse, confecionou todas as refeições, guardou alimentos, pernoitou diariamente, realizou a sua higiene pessoal, criou animais de estimação, guardou as suas roupas e outros pertences.

22. A Autora sempre cuidou do imóvel e da sua manutenção, mobilou e decorou a habitação.

23. A Autora realizou limpezas regularmente, consertou tetos e janelas deteriorados pelo tempo, plantou flores nas floreiras do logradouro, possui as chaves do imóvel.

24. A Autora fez festas de aniversário, celebrou o natal e a páscoa em família, com o irmão sobrevivo, convidava amigos e família para jantar e almoçar.

25. A Autora sempre teve animais de estimação, designadamente cães que recolheu da rua, adotando-os ou cuidando deles provisoriamente, naquela casa.

26. A Autora sempre se comportou em relação ao imóvel de forma aberta, espontânea, perante os vizinhos e transeuntes, como sendo a sua habitação.

27. A Autora nunca foi citada, notificada judicial ou extrajudicialmente para desocupar o referido imóvel.

28. A Ré e a sua família sempre souberam que a Autora lá residia desde 1964, por este período de tempo até então nunca promoveram quaisquer obras de restauro ou manutenção do imóvel, nunca manifestaram qualquer interesse sobre o imóvel, não visitaram o imóvel ou solicitaram qualquer visita, nunca mostraram preocupação ou interesse pelo imóvel, mantendo uma atitude de inércia absoluta em relação ao mesmo.

VII. A matéria elencada na petição deverá ser dada como provada na sua integralidade, por se considerar admitido por acordo entre partes.

VIII. A Autora também não concorda com a apreciação jurídica levada a cabo pelo tribunal recorrido.

IX. Ora, como se sabe a posse substancia-se em corpus e animus, a chamada biunivocidade possessória.

X. O corpus é a prática de atos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (ou de outros direitos reais), não sendo necessário o contacto físico, nem a plenitude do exercício de direito.

XI. O animus é propósito volitivo que determinou aquele senhorio de facto à prática daqueles atos (corpus) e, atos esses de que, razoavelmente, se infere ser seu o propósito de atuar “como sendo dono”, “como sendo titular do direito”.

XII. A posse, segundo a noção do art.º 1251.º do Código Civil, diversifica em três elementos:(1) a coisa, (2) a conexão local entre a coisa e um sujeito, como senhorio de facto sobre a coisa, (3) um senhorio de facto com exercício empírico à imagem do exercício do direito de domínio.

XIII. Ao decidir como decidiu, - “já não se pode dizer que o fez na convicção de ser a sua plena proprietária” - o tribunal confundiu um dos requisitos da posse, com um dos caracteres da posse.

XIV. A convicção da Autora em ser proprietária em nada influencia a averiguação da existência de animus.

XV. O animus não se confunde com a boa ou a má fé da posse.

XVI. O conhecimento ou a consciência, do titular da relação de senhorio de facto de que não é titular da correspondente relação jurídica não impede a existência da posse, nem do seu corpus, nem do seu animus, nos termos do art.º 1260.º, n.º 1do Código Civil.

XVII. A usucapião ocorre apenas relativamente a bens certos e determinados e nunca à quota-parte de uma herança ou de uma compropriedade; a posse incidirá sobre um concreto bem herdado, considerado autonomamente.

XVIII. Caso fosse a única herdeira, a presente ação - com vista ao reconhecimento da posse e respetiva declaração de usucapião - nunca teria sido intentada, por não existirem réus com interesse em contraditar e por falta de interesse em agir da Autora.

XIX. É natural que Autora não ignorasse a realidade jurídica do imóvel e face à assumida posse de má-fé, não se vislumbra que tal conhecimento absorva o comportamento anímico da Autora, enquanto senhorio de facto.

XX. A noção de posse (1251.ºCC) exige uma atuação por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, mas não se exige ao possuidor, que para o ser, tenha que ter a convicção, a crença ou a noção de que é proprietário, ainda que isso pudesse resultar em posse de boa-fé

XXI. É de boa-fé a posse que não sendo, na sua origem violenta, se tenha constituído pensando o possuidor que tinha ele próprio o direito e que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.

XXII. A boa ou a má fé possessória -a convicção de que é plena proprietária ou não -é aferida no momento da aquisição da posse e não posteriormente.

XXIII. Ainda que a Autora tivesse a noção de que ela própria seria a titular do direito, aquando da aquisição da posse -aquando verificação do seu animus possedendi - sempre poderia vir a reconhecer a existência de um direito sobre o imóvel na esfera jurídica de terceiros, que ainda assim não afetaria a sua boa fé.

XXIV. A ser reconhecida a usucapião por escritura...

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