Acórdão nº 02266/15.2BEPRT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 2022-10-12

Data de Julgamento12 Outubro 2022
Ano2022
Número Acordão02266/15.2BEPRT
ÓrgãoSupremo Tribunal Administrativo - (2 SECÇÃO)
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório
1.1. A…………, Lda., interpõe recurso de revista do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 27 de outubro de 2021, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios, dos meses de fevereiro e junho de 2011, no valor global de €76.055,91, concluindo da seguinte forma as suas alegações de recurso:
«1.
A questão de direito que foi apreciada pelas Instâncias (e na qual se traduz o próprio objecto do recurso), consiste em saber se interpretação que a AT, e as Instâncias, fizeram a respeito do sentido e alcance das normas contidas no artigo 36º, do CIVA, é ou não compatível com o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, à luz da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, no que se refere ao exercício do direito à dedução do imposto, suportado pela ora recorrente, com base nas ajuizadas facturas.
2.
A questão submetida agora a julgamento de revista reveste-se de grande relevância económica, social e jurídica.
3.
Importância económica, porque nos remete, aliás, para o domínio da regulação de um dos actos de natureza comercial mais comummente praticados no tráfico mercantil, ou seja, para a emissão de uma factura.
4.
O mecanismo de liquidação e cobrança do IVA está organizado em torno da facturação emitida pelas empresas, bem se compreendendo que a emissão de uma factura obedeça a regras específicas que permitam realizar um adequado controle contabilístico e tributário.
5.
Quando a AT impede a dedução do IVA, é gerada uma dívida tributária susceptível de comprometer o equilíbrio económico e financeiro das empresas (e até mesma a sua sobrevivência), na medida em que subverte o “princípio da neutralidade” deste imposto.
6.
Importa pois indagar qual é o grau de “liberdade” de que dispõe a AT na aplicação das regras que disciplinam a emissão de uma factura, e se os critérios de que ela lança mão, para recusar o direito à dedução do imposto, poderão eventualmente assentar em alguma indesejável discricionariedade, sem sujeição a um controlo jurisdicional efectivo, dado o considerável impacto económico que este problema tem na vida de muitas empresas, posto que sobre elas recaia o inerente ónus de pagar o imposto que contava “compensar” no IVA cobrado aos seus clientes finais.
7.
A questão em análise tem em Portugal também um assinalável relevo social, dada a circunstância de o nosso tecido empresarial ser maioritariamente constituído por micro e pequenas empresas.
8.
Uma parte significativa da prática comercial das empresas passa pela emissão de facturas cujas formalidades são em tudo equiparáveis ao caso dos presentes autos.
9.
Ora, por esta questão atingir potencialmente um grande número de micro e pequenas empresas, de cuja actividade depende a sobrevivência de muitas famílias, afigura-se necessário prevenir a ocorrência de casos em que a AT adopta critérios draconianos no controlo da regularidade formal de emissão das facturas, para efeitos do exercício do direito à dedução do IVA, sem que se conclua haver motivos para duvidar da realização das transacções comerciais tituladas nessas facturas.
10.
São conhecidos inúmeros exemplos de encerramento de pequenas empresas familiares, por não terem capacidade de fazer face ao pagamento coercivo do IVA que a AT considerou indevidamente deduzido, com base em critérios de natureza puramente meramente formal.
11.
O caso dos autos é um exemplo flagrante de como não deveria ser tolerada a posição sustentada pela AT para negar o direito à dedução do imposto, dado que ela significaria, na prática, em qualquer caso, a inviabilização absoluta desse direito.
12.
No douto acórdão recorrido, e apesar de aí se ter afiançado não se desconhecer a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre esta matéria, as conclusões aduzidas em sede decisória surgem totalmente “desgarradas” da letra da lei, do contexto em que se verificaram as concretas operações comerciais tituladas pelas ajuizadas facturas, e da interpretação que o TJUE entende ser a mais adequada relativamente às pertinentes disposições da Directiva
13.
Nisto reside a especial relevância jurídica da questão aqui suscitada.
14.
Todas as ajuizadas facturas, para além da “quantidade e denominação usual dos serviços prestados”, «com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa», estão datadas e numeradas, e contêm os nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor do prestador de serviços e do destinatário, sujeito passivo do imposto, bem como os correspondentes números de identificação fiscal, o preço, líquido de imposto, a taxa aplicável e o montante de imposto devido.
15.
Ou seja, as ajuizadas quatro facturas preenchem todos os requisitos formais previstos no artº 36º, nº 5, do CIVA.
16.
Da análise do relatório dos SIT’s, facilmente se detecta que as entidades prestadoras dos serviços titulados pelas ajuizadas facturas são empresas que se dedicam à prestação de serviços no domínio da informática, ou seja, no domínio da actividade da consultoria, da criação e da integração de programas (aplicações) de software.
17.
Com base nessa análise, deve ter-se por seguro que a referência aos serviços prestados em cada uma das facturas em causa não só identifica a sua “natureza”, como reflecte, com razoável rigor, a sua “denominação usual”.
18.
E se nos fixarmos em cada um desses descritivos, verificamos que os serviços prestados comportam as diversas actividades de “desenvolvimento”, de “integração” e de “consultoria”, de aplicações, o que revela justamente uma preocupação de concretizar e realçar as diferentes “naturezas” e as distintas designações “usuais” por que os serviços desta área de negócio são conhecidos.
19.
De resto, no seu relatório junto aos autos, os SIT’s nem sequer afirmam que os descritivos insertos nas facturas não permitem identificar a natureza dos serviços prestados – limitam-se a concluir que «contêm uma menção muito genérica dos serviços prestados» -, o que torna as decisões das Instâncias ainda mais surpreendentes, na medida em que revelam um flagrante afastamento em relação ao caso concreto, e uma ausência da exegese própria de qualquer decisão judicial.
20.
As Instâncias consideraram que «os indícios coligidos no relatório de inspeção, única e exclusivamente relacionados com os emitentes das faturas, não são de molde a concluir, com elevada probabilidade, pela simulação das prestações de serviço em causa. Assim, com fundamento em simulação, não há motivo válido para não aceitar a dedução do IVA incorporado nas faturas n.ºs 2011001, 2011002, 2011003 e 2011007.»
21.
E quanto à afirmação dos SIT’s, segundo a qual «as faturas em causa não dão cumprimento ao disposto no nº 5 do artº 36º do CIVA, uma vez que contêm uma menção muito genérica dos serviços prestados, pelo que, nos termos do nº 2 do artº 19º do CIVA, a dedução do imposto seria sempre indevida», as Instâncias logo nela concordaram, aduzindo que, ou «contêm uma descrição claramente vaga», ou «não permitem perceber qual a natureza dos serviços prestados.
22.
Ao longo do seu relatório, os SIT’s sempre revelaram conhecer a substância das operações comerciais em causa, sem nunca terem invocado o facto de qualquer suposta irregularidade no preenchimento das facturas os ter impedido de conhecer a natureza e a extensão dos serviços prestados, tendo sido aliás, com base no teor das ajuizadas facturas, nomeadamente, os seus descritivos e a extensão dos serviços nelas reportados, que os SIT’s entenderam estar em condições (embora erradamente) de concluir que tais serviços constituíam operações comerciais simuladas.
23.
No seu relatório, os SIT’s referem-se repetidamente ao tipo concreto de actividades comerciais em que consistiram os serviços prestados nas relações que intercediam entre as empresas contraentes, o que revela não terem experimentado a mínima dificuldade em identificar «a quantidade e denominação usual (…) dos serviços prestados» (artº 36º, nº 5, al. b) do CIVA), ou «a extensão e natureza dos serviços prestados», nos dizeres do artº 226º da Directiva.
24.
Para além disso, em relação a cada uma das ajuizadas facturas, por terem tido acesso à informação que lhes foi disponibilizada para o efeito, os SIT’s dissecam minuciosamente a menção aos serviços prestados e à extensão que lhes foi atribuída, chegando ao detalhe de explicitar o modo como foi distribuído o tempo (a “extensão”) dos serviços prestado.
25.
Referindo-se às formalidades das ajuizadas facturas, e limitando-se apenas a afirmar, singelamente, que as mesmas «não dão cumprimento ao requisito do disposto no nº 2 do artº 19º do CIVA, em virtude de nelas se fazer uma menção muito genérica dos serviços prestados», os SIT’s lançaram mão de um expediente processual que tinha apenas por finalidade acautelar a hipótese de a sua tese da “simulação” vir a naufragar em sede de impugnação judicial.
26.
Não é de aceitar que, na sequência de uma acção inspectiva promovida pela AT, os Tribunais venham posteriormente “suprir”, ou colmatar, as eventuais insuficiências na recolha de “indícios simulatórios” para negarem o direito à dedução do imposto apenas com base em supostas irregularidades no preenchimento das facturas nas quais foi liquidado o IVA deduzido.
27.
Principalmente, se essas supostas irregularidades não puderem ser confirmadas pela falta objectiva, em cada factura, de qualquer um dos elementos previstos no artº 36º, nº 5, do CIVA, e a própria AT não as tenha assinalado como motivo para a impedir de determinar a “natureza” e a “extensão” dos serviços descritos nas...

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