Acórdão nº 0132/22.4BALSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 07 de Dezembro de 2023

Magistrado ResponsávelSUZANA TAVARES DA SILVA
Data da Resolução07 de Dezembro de 2023
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I – Relatório 1 – A..., S.A.

(“A...

”), com os sinais dos autos, demandou em litígio arbitral, que correu termos no Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial) da Associação Comercial de Lisboa, sob o n.º 18/2020/AHC/ASB o ESTADO PORTUGUÊS.

2 – Por decisão arbitral de 14.07.2022 foi o Estado Português condenado a restituir à A. a quantia de €217.798.000,00 (duzentos e dezassete milhões setecentos e noventa e oito mil euros), que esta havia pago àquele no momento da celebração do Contrato de Implementação a título de contrapartida financeira pelo direito exclusivo de explorar o AH ... durante o prazo da concessão.

3 – Inconformado com aquela decisão, o Estado Português interpôs recurso de revista para este STA ao abrigo do disposto no artigo 185.º-A, n.º 3 do CPTA, o qual foi admitido por acórdão de 15.12.2022.

4 – O Recorrente apresentou alegações que rematou com as seguintes conclusões: «[…] 8. ENQUADRAMENTO E OBJETO

  1. Em 2008, a A... ganhou o concurso relativo à construção, exploração e conservação do AH de ... e do aproveitamento hidroelétrico do ..., na sequência de ter oferecido uma contrapartida global de EUR 231.700.000,00 dos quais EUR 217.798.000,00 eram relativos ao AH de .... O valor base do concurso para os dois aproveitamentos era de EUR 70.000.000,00, pelo que a A... ofereceu um valor 231% acima do valor base e 85% acima do prémio oferecido pelo segundo classificado, a B..., que apenas concorreu ao AH de ....

  2. A partir de 2011 começou a haver indícios de que a A... estava a ponderar a razoabilidade dos dois projetos tendo, em outubro de 2013, expressamente proposto ao Estado que fosse repensado o AH de ..., invocando a alteração de um conjunto de circunstâncias que punham em causa a viabilidade do projeto nos moldes originariamente pensados.

  3. Posteriormente, em 2018, a A... interpelou o Estado tendo em vista a negociação de soluções alternativas à construção e exploração do AH de ... (e, portanto, necessariamente, à celebração do Contrato de Concessão), incluindo a sua não construção, invocando, para o efeito, diversas condicionantes do projeto.

  4. Em 2019, terminado um período de 3 anos de suspensão acordado entre as Partes em 2016, e depois de o Estado concluir que a construção do AH de ... não era imprescindível para o cumprimento das metas energéticas, a A... pôs em prática uma estratégia (puramente) formal (ilegítima) tendente a tentar colocar o Estado na situação de incumpridor, para depois poder avançar com a (ilícita) resolução, ao que se seguiu a instauração pela mesma A... de uma ação arbitral na qual foi proferida a Decisão Arbitral de que ora se recorre.

  5. Apesar de o Tribunal Arbitral ter expressamente reconhecido que “houvesse o Contrato de Implementação sido cumprido pelo Estado e houvesse a A... explorado a barragem do AH ... […] esta não apenas não teria obtido qualquer ganho ou lucro líquido, como teria incorrido em perdas”, acabou por erradamente concluir que: (i) o Estado teria incumprido o Acordo de Suspensão celebrado em 2016, (ii) o Estado teria incumprido o Contrato de Implementação e, em consequência, a A... tinha direito a ver (iii) resolvido o Contrato de Implementação e (iv) devolvida a contrapartida inicialmente paga.

  6. Estas conclusões resultam, como se detalhou nas presentes Alegações de Recurso, da aplicação errada do direito que foi feita pelo Tribunal Arbitral de primeira instância, pelo que se impõe, nesta sede, a tarefa de reconstrução jurídica de uma sentença que simplesmente desconsiderou por completo os institutos, a racionalidade e os princípios próprios do direito administrativo.

  7. Não tendo, consequentemente, interpretado devidamente o bloco de legalidade concretamente aplicável ao caso que tinha em mãos.

  8. Mas mais, ao chancelar a pretensão da A..., a Decisão Arbitral choca com os mais elementares princípios da boa-fé, proporcionalidade, razoabilidade e justiça material, porquanto permitiu que a A... fosse colocada numa situação melhor do que aquela em que estaria se o Contrato de Implementação tivesse sido regularmente executado e o Contrato de Concessão tivesse sido celebrado.

  9. Note-se que tal decisão permitiu à A... transferir para o Estado o risco financeiro do projeto, ou seja, todos as perdas que sofreria com a execução do Contrato de Implementação – o que é avesso a toda e qualquer lógica ou razoabilidade jurídica.

  10. Considerando que estão verificados os pressupostos de admissibilidade do presente recurso deve a Decisão Arbitral ser revogada e substituída por outra que (i) declare que a A... não tem direito a ver resolvido o Contrato de Implementação, (ii) declare que o Estado tem direito a ver resolvido o Contrato de Implementação (iii) reconheça ao Estado o direito a uma indemnização em montante equivalente ao valor da contrapartida, ou seja, EUR 217.798.000,00 ou, subsidiariamente, no montante de EUR 150.400.001,00.

  11. Subsidiariamente, deve ser reduzido o montante a restituir à A..., acautelando os princípios da proporcionalidade, boa-fé, razoabilidade e justiça material.

    9. OS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESTÃO PREENCHIDOS […] 10. A DECISÃO ARBITRAL DEVE SER REVOGADA MM) Considerando o âmbito do presente recurso, são relevantes as seguintes conclusões (erradas) da Decisão Arbitral: (i) o Estado incumpriu o Acordo de Suspensão, (ii) o Estado incumpriu o Contrato de Implementação e, em consequência, a A... tem direito a ver (iii) resolvido o Contrato de Implementação e (iv) devolvida a contrapartida inicialmente paga.

    NN) Tais conclusões estão erradas, desde logo, porque a Decisão Arbitral, para as alcançar, desconsiderou a natureza intrinsecamente administrativa da relação contratual estabelecida entre as Partes, a conduta adotada pela A... ao longo da execução do Contrato de Implementação e, em particular, aquando da sua cessação e, bem assim, os princípios da boa-fé, proporcionalidade e justiça material. Não estando verificados os pressupostos que autorizam a resolução do Contrato de Implementação, andou mal o Tribunal Arbitral quando a declarou.

    OO) A Decisão Arbitral deve, por isso, ser revogada, devendo reconhecer-se que é o Estado que tem o direito a ver declarado resolvido o Contrato de Implementação e a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos. Não obstante, mesmo que assim não se entenda, a A... não tem direito à restituição integral da contrapartida.

    10.1 Qualificação e caracterização da relação contratual PP) É absolutamente manifesto que a relação contratual mantida entre o Estado Português e a A... é uma relação jurídica contratual administrativa, mais concretamente, uma relação contratual administrativa de perfil clássico e duradouro, o que consequências tanto em termos de regime jurídico, como também para a resolução do presente litígio.

    QQ) O Tribunal Arbitral não reconheceu essas consequências e, com isso, inquinou, de forma irremediável, a Decisão que tomou.

    RR) Em concreto, estamos perante verdadeiros contratos administrativos que materializam o acordo de vontades do Estado Português e a A... e têm por objeto a constituição de uma relação jurídica administrativa. São, além disso, contratos naturalmente administrativos, porquanto o seu objeto é público e, por isso, insuscetível de figurar em qualquer contrato privado.

    SS) Quanto às suas principais características, a relação contratual administrativa em questão é (i) bipartida, (ii) de natureza duradoura, (iii) compreende contratos coligados, (iv) está naturalmente funcionalizada à prossecução do interesse público, (v) complexa, na medida em que convoca traços característicos de vários tipos de concessões e (vi) tem subjacente uma função financeira.

    TT) A qualificação e caracterização da relação contratual administrativa mantida entre o Estado Português e a A... tem consequências nos planos jurídico-processual, jurídico-material e jurídico interpretativo.

    UU) No plano jurídico-processual, a principal consequência da qualificação da relação da relação contratual em questão como administrativa é o facto de que os únicos competentes para determinar, a pedido do cocontratante, a resolução contratual, são os tribunais.

    VV) Quanto ao plano jurídico-material, a natural consequência da qualificação da relação contratual como administrativa é a sua sujeição ao direito estatutário da administração pública, incluindo-se neste âmbito os princípios gerais que regem a atividade administrativa – com especial destaque para o princípio da prossecução do interesse público e para o princípio da concorrência –, as normas interpretativas e supletivas que abranjam os vários aspetos do regime contratual que as partes não regularam expressamente.

    WW) Apenas e só subsidiariamente podem ser aplicados critérios interpretativos próprios do direito civil à execução e interpretação de contratos administrativos, devendo, em todo o caso, ser devidamente adaptados, através de um processo de receção material, em função 116 do que resulta dos princípios gerais de Direito Administrativo.

    XX) No plano jurídico-interpretativo, cumpre destacar a dupla função interpretativa e integrativa dos princípios gerais de direito administrativo, com relevo para os princípios da prossecução do interesse público e concorrência, que, por vezes, fornecem diretamente a solução para o caso concreto e, por outras vezes, fazem-no em conjugação com uma regra interpretativa específica, funcionando, em todo o caso, como guias interpretativos.

    YY) Assim, do mesmo modo que a lei veda, com fundamento nos princípios fundamentais de Direito Administrativo, a transposição de certos limites de identidade jurídica na modificação de um contrato administrativo, não pode o intérprete obter um resultado que transponha esses limites de identidade jurídica por via da interpretação do contrato.

    ZZ) Em consequência, a utilização acrítica dos critérios interpretativos que resultam do...

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