Acórdão nº 3641/20.6T8MTS.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 23 de Novembro de 2023

Magistrado ResponsávelRAMALHO PINTO
Data da Resolução23 de Novembro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo 3641/20.6T8MTS.P1.S1 Revista 119/23 Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: AA intentou contra A. .. ...... . ........ ....., Lda, acção declarativa de condenação com processo comum, formulando os seguintes pedidos: “Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser julgada procedente, por provada, a presente acção e a Ré condenada a pagar ao Autor: “1 - A quantia de € 21.000,00 a título de remunerações base não pagas; 2 - A quantia de € 4.000,00 a título de subsídio de Férias e de Natal vencidos em 2017 e 2018; 3 – A quantia de € 1.000,00 a título de subsídio de férias em 2019; 4 - A quantia de € 2.000,00 a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal no ano de cessação do contrato; 5 – € 4.211,04 de retribuição de horas de trabalho suplementar prestado em dia de descanso; 6 - € 2.388,27 pelo não gozo de 32 dias de descanso compensatório; 7 - € 187,00 de diuturnidades vencidas; 8 - € 2087,18 de juros de mora vencidos até à presente data sobre todas as quantias anteriores 9 - Nos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, contados sobre todas as importâncias peticionadas.” A Ré contestou.

Por requerimento de 8.10.2020, o Autor veio confessar o facto alegado pela Ré no artigo 36.º da contestação, rectificando o alegado na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento.

Em 1.03.2022, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: “Nestes termos, e com fundamento no exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado nos autos, pelo que condeno a ré no pagamento ao autor da quantia global de €3.923,40, acrescida de juros de mora à taxa de 4% contados desde 31/8/2019 e até efetivo pagamento, correspondendo: a) a quantia de €2.478,00 a proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal do ano de 2019 (ano da cessação do contrato); b) a quantia de €1.029,60 a retribuição de trabalho suplementar; c) a quantia de €228,80 a retribuição por dias de descanso compensatórios não gozados; e d) a quantia de €187,00 a de diuturnidades.” O Autor interpôs recurso de apelação.

Em 20.03.2023, o Tribunal da Relação proferiu acórdão com o seguinte dispositivo1: “Em face do exposto acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente, em consequência do que se revoga a sentença recorrida, que é substituída pelo presente acórdão em que se decide condenar a Ré, J. ...... . ........ ....., Lda, a pagar ao Autor, AA, as quantias de: A. A quantia de ilíquida de €20.000,00 a título de retribuições em dívida desde 01.01.2018 a 31.08.2019, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada uma das quantias em dívida até efetivo e integral pagamento; B. A quantia ilíquida de €1.000,00 a título de subsídios de férias correspondente às férias vencidas em 01.01.2018 (referentes ao trabalho prestado em 2017) acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data em que as respetivas férias foram gozadas até efetivo e integral pagamento; C. A quantia ilíquida de €1.000,00 a título de subsídios de férias correspondente às férias vencidas em 01.01.2019 (referentes ao trabalho prestado em 2018), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; D. A quantia global de ilíquida de €1.750,00 a título de subsídios de Natal vencidos em 15.12.2017 e 15.12.2018, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde, 16.12.2017 (sobre a quantia de €750,00) e de 16.12.2018 (sobre a quantia de €1.000,00) e até efetivo e integral pagamento”.

A Ré veio interpor recurso de revista, arguindo, além do mais, a nulidade do acórdão, e formulando as seguintes conclusões:

  1. A Recorrente vem arguir a nulidade do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, secção social, ao abrigo do disposto do arts. 615.º/1/d), 666º, 684.º, 685.º CPC, aplicáveis ex vi art. 77.º CPT.

  2. O objeto do recurso da impugnação de facto é delimitado pela n.º1 do art. 640.º CPC.

  3. A Relação excedeu os limites do objeto de recurso definidos pelo A./aí Apelante (art. 640.º n.º1, al. (b) CPC), quando analisou outros meios probatórios para além dos indicados na Apelação.

  4. Parece-nos não caber à Relação uma repetição de julgamentos, possibilitadora de uma análise global dos meios de prova, que ignore as concretas divergências dos meios probatórios elencadas pelo Apelante, que fundariam o erro de julgamento.

    (E) Isto porque, reconhecendo a atual natureza da autonomia probatória da Relação, esta na sua atuação não pode ignorar o direito da Apelada de exercer o contraditório, quando a livre apreciação da Relação se manifesta tão amplamente como no caso em apreço: o tribunal da segunda instância apreciou toda a prova e usou ainda de presunção judicial.

    (F) Designadamente, o uso de presunção judicial pelo Tribunal da Relação configura uma decisão de facto, que nos termos do n.º3, do art. 3.º CPC, teria de ser precedida de audição das partes.

    (G) Na realidade, permitindo-se que a Relação atue sem estar limitada às provas trazidas pelas partes, impede-se o exercício eficaz do contraditório: a liberdade do julgador não pode ir ao ponto de fazer prevalecer uma solução que as partes não tiveram oportunidade de debater.

    (H) O que constitui uma decisão-surpresa, em resultado do não cumprimento do princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3 do CPC.

    (I) A jurisprudência tem, na generalidade, entendido que a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma.

    (J) Deve, pelas razões e regras apontadas, ser declarado o Acórdão recorrido nulo, pois ignorando a obrigatória audiência das partes, proferiu decisão-surpresa sobre matéria de facto, nomeadamente exercitando presunção judicial excedendo com a sua atuação os seus limites de pronúncia.

    II - Do Recurso (Das Questões de Fundo da Pretendida Revista) (K) Sem prescindir, vem a Recorrente demonstrar o seu total inconformismo em quatro segmentos: (1.º) violação de regra adjetivo-processual (2.º) da ilegalidade da modificação do sentido da prova (3.º) da discordância com as razões de direito invocadas (4.º) abuso de direito.

    (1.º) Da violação de regra adjetivo-processual prevista no art. 662.º CPC (L) Cremos que, mesmo face à atual amplitude da Relação no julgamento da matéria de facto, quem continua a estar numa posição privilegiada para avaliar credibilidade dos depoimentos é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.

    (M) É sempre uma tarefa difícil para o Tribunal superior perscrutar e sindicar qualquer processo de valoração de prova, quando é certo que dispõe de menos elementos e meios menos “ricos” que aqueles de que dispôs o Tribunal a quo (N) Porquanto o art. 662.º CPC não pode ser entendido como a concessão de um poder discricionário à Relação.

    (O) O sentido do art. 662.º, 1 CPC deverá, salvo melhor opinião, implicar que a modificabilidade da decisão de facto só se justificará “se a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior impuserem uma decisão diversa” (art. 662°, n.°1) .

    (P) Esta vertente negativa do preceito tem de coexistir com a formulação positiva desse poder-dever.

    (Q) O n.º1 do art. 662.º CPC usa a formulação “impuserem decisão diversa”, enunciando um poder-dever de intervenção da Relação que tem de obrigatoriamente intervir quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior impuserem uma decisão diversa (vertente positiva do poder-dever) e está proibida de intervir quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior não impuserem uma decisão diversa (vertente negativa do poder-dever).

    (R) O Tribunal ad quem deve evitar, a introdução de alterações à matéria de facto, quando não lhe seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados -como aconteceu no caso em apreço.

    (S) Ao modificar a matéria de facto sem esse juízo prévio de necessidade, o Tribunal da Relação fez, conforme o nosso modesto entendimento, violou a regra do art. 662.º, n.º1, na sua vertente negativa.

    (T) Pois atuou quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior, não impunham uma decisão diversa.

    (U) E, em consequência deve ser excluída, porque contra legem, a parte do Acórdão que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto, ou seja, todo o ponto 3 do Acórdão.

    (V) A aplicação da lei adjetiva pela Relação, em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada, consubstancia violação da lei processual, que pelo disposto no art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, é um dos fundamentos da revista.

    (2.ª) Da Ilegalidade da Modificação do Sentido da Prova (W) Da fundamentação da alteração enuncia o Acórdão: “fazem tais documentos (contrato e recibos) prova de que as partes emitiram as declarações que deles constam (art. 376º, nº 1, do Cód. Civil), mas não já da veracidade dos factos contidos nessas declarações (nº 2 do citado 376º)”.

    (X) E como chega a Relação a essa conclusão? Pelo depoimento da testemunha BB, por presunção judicial e pelo depoimento do A..

    (Y) O art. 376.º do CC sob a epígrafe “força probatória” dispõe: “1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão (…)” (Z) A regra geral do ónus da prova (cfr. art. 342.º CC), no caso sub judice, tem a seguinte concretização: sobre...

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