Acórdão nº 2053/21.9T8LLE.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 07 de Novembro de 2023

Magistrado ResponsávelELISABETE VALENTE
Data da Resolução07 de Novembro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora: 1 – Relatório.

(…), contribuinte n.º (…), residente em (…) 30, 9831 (…), Bélgica, veio intentar a presente ação, com o processo comum, contra (…), contribuinte n.º (…), residente na Av. Eng. (…), Edifício (…), Apartamento 12.º-B, (…), pedindo que seja o réu condenado a devolver à herança de (…), na pessoa do seu único herdeiro, o Autor, a mala Hermes que lhe foi entregue a título não translativo da propriedade, num prazo que se deve fixar em não mais de 10 dias. A título subsidiário (caso não proceda à entrega da mala) – seja condenado a pagar ao autor a quantia de € 20.000,00 a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data do contrato até efetivo e integral pagamento.

Alega, em síntese, que a Sra. (…) era, à data da sua morte, proprietária de uma mala da marca Hermes, modelo Kelly, em pele de crocodilo preta, confecionada na década de 60 – a Sra. (…) procedeu à entrega da mala ao réu para que este a enviasse para reparação. Sucede que, até à data da sua morte, a mala nunca foi entregue à Sra. (…). O autor na qualidade de herdeiro da Sra. (…) é assim proprietário da mala, que o réu deve restituir.

Em sede de contestação, o réu defendeu-se por impugnação, alegando que a casa Hermes referiu que, a mala não era suscetível de reparação, não podendo ser aposto selo de autenticidade e que a mala não teria qualquer valor, o que comunicou à falecida, tendo esta referido que o réu poderia ficar com a mala e deitá-la para o lixo, pelo que se desfez da mesma.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu o réu (…) de todos os pedidos formulados pelo autor (…) e decidiu não condenar o réu como litigante de má-fé.

Inconformado com a sentença, o autor veio interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição): «I. O recorrente considera incorrectamente julgados o facto dados como provado em 8 e os factos dados como não provados em A), B) C) e D), havendo também factos que deveriam e não foram considerados como provados, assim como considera violados os artigos 1185.º a 1206.º do Código Civil.

  1. De acordo com a fundamentação da sentença, o tribunal a quo deu como provados os factos 5 a 9 apenas com base nas declarações de parte do Réu as quais não foram corroborados por qualquer prova adicional, quer testemunhal, quer documental.

  2. Refere o tribunal a quo que deu tais pontos como provados com base nas declarações de parte do réu e no depoimento das testemunhas arroladas pelas partes, mas não fundamenta em que medida as testemunhas arroladas pelas partes e que testemunhas proferiram depoimentos consentâneos com as declarações do Réu, pessoa directamente interessada no desfecho da causa.

  3. Falta, assim, a necessária fundamentação da sentença.

  4. Por outro lado, o tribunal a quo desvaloriza por completo o depoimento da testemunha do A. (…), entendendo não lhe conferir credibilidade apenas porque a testemunha referiu tratar-se de uma mala de crocodilo vermelho bordeaux e não preta como é alegado na petição inicial.

  5. Veja-se o documento 4 da P.I. que consiste numa fotografia da mala onde se pode ver que embora predominantemente preta o seu tom avermelhado escuro e que a textura da pele ressalta à vista e para qualquer leigo ser pele de crocodilo.

  6. A fotografia da mala junta como documento 4 da P.I. não foi impugnada pelo Réu pelo que o tribunal não pode ter dúvidas em relação a qual é o objecto em causa nos autos.

  7. Sendo que o tribunal a quo não pode desconhecer que por regra os pormenores de cor de um determinado objecto são características que mais escapam à memória de um comum cidadão quando presta depoimento como testemunha volvidos que estão cerca de quatro anos sobre a ocorrência dos factos submetidos a julgamento.

  8. Ora o depoimento da testemunha (…) que se encontra gravado revelou-se bastante seguro, espontâneo e coerente, e converge com o do Réu em muitos pontos, não podendo ser abalado apenas por este eventualmente não ter conseguido exprimir a cor da mala, quando da integralidade do seu depoimento não restam dúvidas que o mesmo se refere indubitavelmente à mala dos autos.

  9. Ao ouvir as declarações do Réu verifica-se que o mesmo se encontra visivelmente instrumentalizado bem como a sua filha também testemunha.

  10. Não se compreende como pode o tribunal desvalorizar o depoimento da testemunha (…), apenas porque o mesmo referiu que a mala era vermelha e não preta quando quer o Réu, quer a sua filha não foram capazes de dizer de que tipo de pele era a mala, se de búfalo, se de crocodilo ou se de cobra.

  11. O tipo de pele da mala (crocodilo) consta do artigo 2.º da P.I. e foi aceite pelo R. na sua contestação.

  12. Sendo certo que o Réu, ao contrário do que afirmou na contestação, declarou que para além da profissão de cabeleireiro se dedicava também à venda de malas de luxo em segunda mão, o que foi confirmado pelo depoimento da sua filha a qual também não foi capaz de responder de que tipo de pele era feita a mala.

  13. Sendo que quem negoceia com um determinado produto não deve desconhecer um dos seus elementos essenciais, nomeadamente o material de que é feito e que mais enaltece uma mala, o tipo e qualidade da pele.

  14. Não pode assim o tribunal usar diferentes critérios na atribuição de credibilidade, descredibilizando uma testemunha porque erra na cor de um objeto e dando credibilidade a outra que nem sabe o material de que o objeto é feito um objeto que comercializa.

  15. Estas duas testemunhas são consentâneas em afirmar que era a testemunha (…) que acompanhava com bastante regularidade (…) ao salão de cabeleireiro do R., por se tratar de pessoa idosa e com bastantes limitações de mobilidade, é assim verosímil que tenha conhecimento directo de factos importantes para a boa decisão da causa.

  16. O tribunal a quo apesar de reconhecer na sentença que o Réu tinha a actividade embora secundária, de compra e venda de malas de luxo, entendeu (erradamente) não ser relevante levá-lo aos factos provados.

  17. Assim, desde logo com base no depoimento quer do Réu quer da sua filha e também de acordo com o que consta da fundamentação da sentença deve ser considerado provado que: XIX. O Réu exercia, ainda que secundariamente, a actividade de venda de artigos de luxo usadas, nomeadamente malas de senhora em segunda mão.

  18. As declarações do Réu que acima se transcreveram impõem tal conclusão.

  19. Consequentemente deverá também ser subtraído aos factos dados como não provados o facto B) O Réu dedica-se (ou pelo menos à data dos factos dedicava-se) a compra e venda de artigos de luxo em segunda mão, encontrando-se profissionalmente estabelecido em (…) Quinta (…), Quinta do (…), … (artigo 4.º da PI), que deverá ser levado a factos provados.

  20. E deverá ser também considerado provado que foi no âmbito da sua actividade comercial e dos serviços habitualmente prestados (venda de artigos de luxo em segunda mão) que o Réu recebeu a mala da tia do A. para reparação e comercialização.

  21. Nesse sentido foram as declarações prestadas quer pelo Réu quer pela testemunha (…) que acima se transcreveram.

  22. Para além das declarações há que atentar ao documento 4 (pág. 1) da P.I. aceite pelo R. como sendo o contrato de entrega da mala pelo R. no Serviço Pós-Venda da casa Hermes para reparação cujo outorgante é o próprio Réu.

  23. Não restando assim qualquer dúvida que o Réu, pelo menos à data dos factos, para além de cabeleireiro se dedicava no mesmo domicílio à venda de malas de senhora usadas e foi nesse âmbito que recebeu da tia do A., (…), entretanto falecida, o artigo objecto dos autos.

  24. Deve também com base no que acima se alegou ser levado aos factos provados que foi acordado entre o R. e a falecida tia do A. que aquele ficaria a deter a mala com o objectivo de a mandar reparar e comercializar contra o recebimento de uma comissão de cerca de 25%.

  25. E pela mesma prova produzida deve ser dado como provado que a mala tinha o valor de € 8.000,00 a € 10.000,00.

  26. O tribunal a quo errou ainda ao considerar como não provado a alínea D dos factos não provados “A, mala no entanto não retornou à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em representação desta”.

  27. Por outro lado, deverá ser levado tal facto aos factos provados considerando-se provado que “A, mala no entanto não retornou à posse de (…), não tendo sido devolvida pelo Réu a esta, ao A. ou a qualquer outra pessoa em represente desta”.

  28. É o que resulta da prova produzida, conforme de seguida se demonstrará.

  29. Não é minimamente coerente e verosímil, desde logo à luz das regras da experiência comum, que o R. comerciante tivesse assumido a responsabilidade de ter ficado com a mala à sua guarda e cuidados e não se assegurasse com um documento assinado pela sua proprietária a provar a restituição.

  30. É certo que, como seria de esperar, o R. manteve nas suas declarações aquilo que já dizia na contestação, ou seja, que a falecida (…) lhe teria dito para deitar a mala ao lixo !!!.

  31. No entanto, tais declarações do Réu não foram confirmadas por qualquer outra prova, nem documental nem testemunhal.

  32. A única...

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