Acórdão nº 02614/23.1BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 19 de Outubro de 2023

Magistrado ResponsávelSUZANA TAVARES DA SILVA
Data da Resolução19 de Outubro de 2023
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)
  1. Em 04.08.2023, A..., S.A.

    propôs no TAC de Lisboa – Juízo de Contratos Públicos, contra o Estado Português, ao abrigo do disposto no artigo 100.º do CPTA, uma acção de contencioso pré-contratual respeitante ao Concurso Público com Publicação no Jornal Oficial da União Europeia, para “Aquisição de Hardware” (solução de computação hiperconvergente) para a PGR – mais precisamente, “Concurso Público Internacional para “Aquisição de Hardware” – nomeadamente para fornecimento, instalação e configuração de solução de computação hiperconvergente, com a designação dada ao contrato pela entidade adjudicante de procedimento DA 10254/23, referente ao processo PRR C18-i01.10 - Justiça Económica e Ambiente de Negócios/PGR, projeto 92.1 da PGR, aberto através da publicação do Anúncio de Procedimento n.º 6119/2023 na II Série do Diário da República n.º 76 de 18 de Abril de 2023, data em que o mesmo foi disponibilizado aos interessados na plataforma Vortal, tendo a abertura do procedimento sido publicada no JUOE (JO/S S79, de 21 de Abril, anúncio 2023/S 079-236610)” –, que tinha como entidade adjudicante a Procuradoria-Geral da República. Foram citados, como entidades demandadas, o Ministério Público em representação do Estado Português e a Conselheira Procuradora-Geral da República.

    Na sequência dos articulados apresentados e da alegação das excepções de ilegitimidade passiva do Estado Português e da incompetência do tribunal em razão da hierarquia, veio o TAC, por sentença de 29.09.2023 (fls. 1247 do SITAF), julgar o Estado parte ilegítima, absolvendo-o da instância, julgar parte legítima a Exma. Senhora Conselheira Procuradora-Geral da República e, consequentemente, competente para conhecer do processo urgente este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea a), subalínea viii), do ETAF, promovendo a remessa dos autos a esta instância.

  2. Na sua contestação, a Ex.ma Conselheira Procuradora-Geral da República “assumiu”, que a legitimidade passiva adviria da qualidade de presidente da Procuradoria-Geral da República.

    Cumpre, como questão prévia, ex vi do disposto no artigo 13.º do CPTA, analisar se a sentença do TAC de Lisboa é correcta ao determinar a competência deste STA para conhecer, em primeira instância, do processo urgente de contencioso pré-contratual aqui em causa.

  3. A questão que se coloca é a de saber se é correcta a interpretação dada ao artigo 24.º, n.º 1 do ETAF, segundo a qual, cabendo ao STA conhecer em primeira instância dos processos em matéria administrativa relativos a acções ou omissões das entidades ali enunciadas, tal significa que cabe ao STA decidir, em primeira instância, das acções urgentes de contencioso pré-contratual em que aquelas mesmas entidades figurem como entidades adjudicantes.

    3.1.

    Importa identificar os parâmetros que hão-de presidir à interpretação do enunciado do artigo 24.º, n.º 1 do ETAF no contexto da respectiva aplicação ao caso dos autos: 3.1.1.

    Em primeiro lugar, o STA já o afirmou expressamente, “a razão por que o art. 24.º, n.º 1, al. a), do ETAF determinou que o STA conheça «dos processos em matéria administrativa relativos a acções ou omissões» de certas entidades tem obviamente a ver com a circunstância de estas serem neles directamente demandadas. Com efeito, a referida norma constitui uma excepção à regra geral de que os processos correm, em 1.ª instância, nos TAF; e é uma excepção basicamente justificada por motivos protocolares, que desaconselham que as «entidades» mencionadas no dito artigo litiguem nas instâncias – já que se entendeu curial que as disputas em que elas estejam envolvidas sejam apreciadas, «ab initio», pelo mais alto tribunal da jurisdição administrativa” – acórdão de 30.11.2011 (proc. 01021/11).

    3.1.2.

    Em segundo lugar, a doutrina, sem nunca ter tratado expressamente a questão que aqui se formula, expressou, logo quando foi aprovado o “novo ETAF”, dúvidas quanto à correcta interpretação do enunciado normativo do referido artigo 24.º n.º 1 do ETAF, atenta a aparente incongruência de um alargamento da competência do STA em primeira instância, da qual decorreria um incremento significativo do “âmbito desta excepção à regra geral da competência”. Com efeito, os autores questionam que a competência do STA se deva estender para lá da impugnação dos actos em matéria administrativa e abranger situações em que “só indirectamente está em causa a actuação específica daquelas entidades” – Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 19.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 135 (nota 277). Afirmam que “a previsão normativa parece ter apenas em vista as acções administrativas especiais relativas ao exercício de poderes de autoridade” por parte daquelas entidades – Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 207. E outros apoiam-se na classificação das espécies processuais definidas pelo CSTAF ao abrigo do artigo 26.º, n.º 2, do CPTA para concluir pela propriedade de uma interpretação restritiva da competência definida no artigo 24.º, n.º 1 do ETAF aos processos impugnatórios – Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 82 e 83.

    3.1.3.

    Em causa nos autos está uma matéria específica, complexa e europeizada – o contencioso pré-contratual – que impôs no plano do direito interno nacional a adopção de uma reforma da organização judiciária administrativa para assegurar os parâmetros impostos pelo direito europeu no plano da garantia da tutela jurisdicional efectiva. Assim, existem actualmente juízos especializados de contratação pública na primeira instância (artigo 44.º-A do ETAF) e na segunda instância (artigo 37.º, n.º 2 do ETAF), estando assegurado, na primeira instância, o funcionamento daquele juízo especializado em Lisboa, local onde as entidades referidas no artigo 24.º, n.º 1 têm sede. Uma tal especialização não existe no âmbito da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo.

    3.1.4.

    Aparentemente, a ausência dessa especialização neste Supremo Tribunal explica-se pelo facto de a ele o legislador reservar uma função diferente e diferenciada, centrada na actuação como tribunal de revista. No parecer emitido no procedimento legislativo que presidiu à aprovação do ETAF pode ler-se: “Ao Supremo Tribunal Administrativo fica reservada a tarefa de funcionar como regulador do sistema, função adequada a uma instância suprema. Neste sentido, cabe-lhe apreciar os recursos para uniformização de jurisprudência, fundados em oposição de acórdãos. Também lhe podem ser, entretanto, dirigidos recursos de revista, interpostos per saltum, com exclusivo fundamento em questões de direito, de decisões de mérito proferidas pelos tribunais administrativos de círculo em processos de valor mais elevado, ou interpostos de decisões de mérito proferidas pelo Tribunal Central Administrativo, relativamente a matérias que, pela sua relevância jurídica ou social, se revelem de importância...

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