Acórdão nº 275/20.9T8ESP-E.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Outubro de 2023
Magistrado Responsável | MARIA DA GRAÇA TRIGO |
Data da Resolução | 12 de Outubro de 2023 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1.
Instaurado processo de inventário por óbito de AA, nele foi nomeada cabeça de casal a viúva BB.
Apresentada a relação de bens, dela veio reclamar a interessada CC, alegando dela fazerem parte bens que não pertencem à herança, suscitar a correcção da descrição de outros bens e acusar a falta de relacionamento de outros bens.
Em resposta, a cabeça de casal aceitou parcialmente o constante da reclamação e juntou nova relação de bens, actualizada em conformidade com as questões aceites.
Na sequência de vários requerimentos, e respostas, entrou-se num diferendo relativamente à pertença de um veículo automóvel.
Por despacho de 21.02.2022 foi proferido despacho com a seguinte decisão: «Nessa medida, justifica-se que a cabeça-de-casal deposite o preço na conta bancária melhor identificada na verba n.º 2, que era detida pelo inventariado, fazendo prova nos autos desse depósito e posteriormente deverá retificar a verba n.º 20, nela relacionando o valor correspondente ao produto da venda do veículo aí identificado».
Deste despacho interpôs a interessada reclamante recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual veio a proferir acórdão que julgou o recurso improcedente confirmando a decisão recorrida.
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Do acórdão recorrido interpôs a interessada CC recurso para o Supremo Tribunal de Justiça formulando as seguintes conclusões: «Da Ofensa de Caso Julgado Formal - Da Contradição de Acórdãos I. Não pode a ora recorrente concordar com o douto Acórdão ora recorrido que julgou improcedente a Apelação anteriormente apresentada, concluindo esta pela carência de vício de caso julgado formal e, desde logo, analisando-o atentamente é para nós líquido que o mesmo padece da não verificação de caso julgado formal, nos termos preceituados nos arts. 620º n.º 1, 625º e 628º todos do CPC, devidamente e legalmente invocado pela recorrente, vício esse que deverá ser reconhecido e declarado com todas as consequências legais daí advenientes na medida em que a mesma por si só se apresenta como fundamento bastante para a presente revista, nos termos do disposto no art. 671º n.º 2 al. b) e 629º n.º 2 al. a) in fine ambos do CPC.
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O objeto da Apelação recorrida foi a Ofensa de Caso Julgado Formal, formada pelo despacho de 09/12/2021, que transitou em julgado e que foi desautorizado pelo despacho de 21/02/2022, com ordem contrária.
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O Acórdão recorrido designou as decisões dos dois despachos acima designados como sendo de decisões de mérito e, nesse pressuposto, afirma ter-se consumado Caso Julgado Material (arts. 619º e 621º do CPC). O Acórdão recorrido incorreu em erro pela aplicação errada da norma jurídica. Não estando em causa uma sentença, nem um despacho saneador, fica afastado o entendimento do Acórdão recorrido quanto ao Caso Julgado Material (art. 620º do CPC; Ac. do STJ de 19/10/2021, Fernando Augusto Samões; Ac. do STJ de 10/12/2020, Tibério Nunes Silva).
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Ora, o despacho de 09/12/2021 recaiu sobre o assunto ali em apreço e terminou por ali, tendo força obrigatória unicamente dentro do processo. Trata-se notoriamente de Caso Julgado Formal (art. 620º n.º 1 do CPC), que expressamente se invoca e pretende ver declarado.
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O Acórdão recorrido transformou os dois despachos em duas decisões de mérito e, por consequência, partiu do princípio que a causa de pedir é “o diferendo”. E que no primeiro despacho unicamente ficou decidido que o preço da venda é para depositar, e que no segundo despacho só veio confirmar que não é em depósito autónomo, mas é na verba 2 da relação de bens.
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Ao invocar o pedido, a causa de pedir e os sujeitos, igualou os dois despachos a duas sentenças como se se tratasse da interposição de duas ações. E nesse pressuposto tomou a decisão. Também aqui o Acórdão recorrido incorreu em erro.
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Contrariamente ao decidido pela Relação: O Despacho de 09/12/2021 apreciou e decidiu uma questão que não foi de mérito, que recaiu sobre a relação processual e tem força obrigatória unicamente dentro do processo. É Caso Julgado Formal, porque se refere a que aquele assunto terminou e aquela decisão tem de ser executada (art. 620º n.º 1 do CPC).
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O Caso Julgado Formal não pode ser modificado e produz no processo efeito de Trânsito em Julgado (art. 628º do CPC) que confere ao despacho de 09/12/2021 caráter definitivo, tudo em nome da estabilidade processual.
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Senão vejamos: i) A ordem dada ao despacho de 09/12/2021 foi “deverá a quantia ser integrada na relação de bens da herança e consequentemente depositada numa conta bancária em nome da herança”.
ii) A ordem dada ao despacho de 21/02/2022 foi “a cabeça de casal deposite o preço na conta bancária melhor identificada na verba n.º 2, que era detida pelo inventariado”.
O seu teor e efeito jurídico é indiscutivelmente contraditório (art. 625º do CPC).
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Assim, no primeiro despacho a ordem é para a cabeça de casal abrir uma conta bancária em nome da herança, depositar ali o preço da venda do veículo automóvel e posteriormente integrar aquela conta bancária na relação de bens. Uma conta bancária em nome da herança só se concebe por razões de sucessão. Esta é identificada com o NIF da herança registado na Autoridade Tributária. Acresce que, a cabeça de casal tem o dever de rentabilizar os bens a seu cargo. Mediante a abertura de uma conta bancária em nome da herança, a cabeça de casal tem o poder de escolher a instituição de crédito que melhor rentabilidade dê aos dinheiros depositados. Contrariamente, na conta DO da verba 2 da relação de bens os dinheiros não rentabilizam.
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No segundo despacho a ordem foi para a cabeça de casal depositar o preço da venda do veículo automóvel na conta bancária da verba 2 da relação de bens, titulada unicamente pelo pai da requerente. Esta conta bancária do acervo hereditário é um bem patrimonial cujo efeito jurídico é diverso. Acresce que, a exigência da cabeça de casal em movimentar a concreta conta bancária da verba 2 da relação de bens é contrária à lei. O saldo da conta bancária DO da verba 2 é o existente no dia preciso da morte do de cujus (art. 2031º do CPC). É esse o saldo que tem de ser levado à partilha.
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Por sua vez enquanto a herança permanecer na situação de indivisão os seus herdeiros não têm qualquer direito próprio sobre qualquer dos bens que a integram. A massa patrimonial hereditária é uma propriedade coletiva e aos titulares de bens coletivos não pertencem direitos específicos. Uma fração do património hereditário, a concreta conta bancária da verba 2 da relação de bens, não pode ser colocada antes da partilha ao serviço ou satisfação da cabeça de casal. Neste caso, a cabeça de casal não administra a herança, serve-se dela para seu interesse.
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Pelo demonstrado, não restam dúvidas que o efeito da abertura de uma conta bancária em nome da herança é diferente do efeito jurídico da utilização da conta bancária da verba 2 da relação de bens da herança. São, sem dúvida, situações contrárias e com efeitos opostos (art. 625º do CPC). Acresce a confusão por duplicação de verbas na relação de bens conforme o alegado nos pontos 18 e 19 das conclusões recorridas.
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A ora requerente não impugnou o despacho de 09/12/2022, nem tão pouco a cabeça de casal impugnou o despacho de 09/12/2021, pelo que o mesmo transitou em julgado (art. 620º n.º 1 e 628º ambos do CPC).
Da Contradição de Acórdãos XV. Nos termos supra expostos, e mediante o disposto nos arts. 671º n.º 2 e 629º n.º 2 a) in fine ambos do CPC, pelo dever legal, se vem referir que no caso presente o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto encontra-se em clara contradição com os Acórdãos proferidos por este Egrégio Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Ac. do STJ de 19/10/2021, Fernando Samões, processo n.º 63/13.9TBMDR.G2.S1 e Ac. do STJ de 10/12/2020, Tibério Nunes Silva, processo n.º 973/13.3TBCBR-B.C1.S1, sendo que estes Acórdãos se encontram transitados em julgado, foram proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de Direito.
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E a questão jurídica a conhecer no caso concreto é da existência ou não do Vício de Ofensa de Caso Julgado Formal, formada pelo despacho de 09/12/2021 que transitou em julgado e que foi desautorizado pelo despacho de 21/02/2022? XVII. Isto posto, entendeu o Tribunal da Relação do Porto e que serve de fundamento ao presente Recurso de Revista equiparar ambos os despachos a decisões de mérito e apurou a relação material existente entre eles. Chegando à conclusão da verificação de autoridade de caso julgado sendo que a causa de pedir é «o diferendo» e com fundamento nessa base entendeu não existir vício de Caso Julgado Formal (art. 620º n.º 1 e 625º do CPC).
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Por outro lado: entendeu este Egrégio Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo n.º 63/139TBMDR.G2.S1 e processo n.º 973/13.3TBCBR-B.C1.S1 que infra se verte, sobre a mesma legislação e questão de Direito, concluindo-se pela existência de Caso Julgado Formal.
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Da decisão do Ac. do STJ de 19/10/2021, Fernando SAMÕES resulta o seguinte: “Tendo transitado em julgado, formou-se caso julgado formal, tornando-se obrigatório dentro do processo e impedindo a reapreciação da mesma questão (art. 620º n.º 1, 628º e 613º todos do CPC)”; “Não tendo sido corretamente impugnado, em tempo oportuno o referido despacho que decidiu o incidente de reclamação contra a relação de bens transitou em julgado. Como tal deve-se-lhe obediência dentro deste processo. Nesta conformidade, não era lícito à Relação reapreciar a questão de relacionamento de bens e alterar a respetiva decisão transitada em julgado pois sempre seria de observar, em caso de decisões contraditórias, a que passou em primeiro lugar (art. 625º ns.º 1 e 2 do CPC).”; “A decisão transitada em julgado seja qual for o seu conteúdo, produz, no processo em que foi proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo depois ser modificada”; “Em suma, pudemos afirmar que este efeito da sentença (ou do despacho) consiste exatamente na insustentabilidade da substituição ou da...
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