Acórdão nº 502/23 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução11 de Julho de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 502/2023

Processo n.º 981/2022

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto em que é recorrente A. e recorrida B., Lda., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, datado de 13 de julho de 2022, que julgou improcedente a apelação interposta pela aqui recorrente, confirmando assim a sentença do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que a condenou a desocupar e entregar o locado por efeito da caducidade do contrato de arrendamento.

2. Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:

«A., recorrente nestes autos em que é recorrida B., LDA.,

vem, à luz do disposto nos artigos 280º, n.º 1, alínea b) e nº 4 da Constituição da República Portuguesa e 70º nº 1, alínea b], 72º nº 1, alínea b] e nº 2, 75º nº 1 e 75-A nº 1 da lei 28/82 de 15 de novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão proferido em 13/07/2022, uma vez que:

a) Esse acórdão fazendo interpretação do artigo 57º da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro na redação que lhe foi dada pela Lei 13/2019 de 12 de fevereiro, que nega a transmissão do arrendamento por morte do cônjuge a quem fora transmitido, viola o princípio constitucional da segurança jurídica e da proteção da confiança escrito no artigo 2.º da CRP, pois, aquando da morte do pai da recorrente (em 2005), esta criou a legítima expectativa de vir a suceder a sua mãe como arrendatária da casa onde a família vivia e a recorrente vive;

b) Entendendo que o artigo 57º da Lei 6/2006 não permite a transmissão da posição do arrendatário habitacional a favor dos filhos ou enteados do cônjuge sobrevivo do primitivo arrendatário, então o artigo 26.º da mesma lei, ao determinar que às transmissões como a aqui em causa, se aplique esse artigo 57.º, é inconstitucional por manifesta violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança garantidas pelo artigo 2.º da CRP;

c) Outrossim, a interpretação restritiva do artigo 57º da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro na redação da Lei 13/2019 de 12 de fevereiro, ao tratar diferentemente os descendentes conforme estejam a suceder ao ascendente que subscreveu o contrato ou ao ascendente que sobreviveu àquele, é inconstitucional por manifesta violação do princípio da igualdade consagrada no artigo 13º da CRP.

O presente recurso tem efeito suspensivo (artigo 78º nº 3 da Lei 28/82)».

3. Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegações nos termos previstos no artigo 79.º da LTC, com indicação de que: (i) no segmento integrado pela questão enunciada na alínea b) do requerimento de interposição, o objeto do recurso poderia não vir a ser conhecido por falta de utilidade, tendo em conta que o acórdão recorrido não aplicou o regime constante do artigo 26.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro; e (ii) no segmento correspondente às questões enunciadas nas alíneas a) e c) do requerimento de interposição, o objeto do recurso coincide com a norma extraída do artigo 57.º do NRAU, na versão resultante da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, no sentido de excluir que o arrendamento se transmita de novo por morte do cônjuge sobrevivo do primitivo arrendatário para o descendente de ambos.

4. A recorrente produziu alegações, concluindo nos seguintes termos:

«[…]

1. a douta sentença recorrida, ao negar a qualidade de inquilina transmitente à mãe da ré desconsiderando a aplicação do artigo 1068.º do C.C, violou o disposto no n.º 2 do artigo 12.º do mesmo C.C. e os artigos 13.º e 36.º-3 da Constituição da República;

2. a sentença recorrida, ao interpretar incorretamente o art. 57.º do NRAU negando a transmissão do arrendamento por morte daquele a quem fora transmitido, violou o art. 9.º-1 do C.C. e, desse modo, agrediu o princípio constitucional da segurança jurídica e da proteção da confiança ínsito no art. 2.º da CRP, pois aquando da morte do pai da Ré esta criou a legítima expectativa de vir a suceder a sua mãe na qualidade de arrendatária da casa onde a família vivia e vive.

Sem conceder,

3. a admitir-se a interpretação - como o faz a sentença de que se discorda - que o art. 57.º do NRAU invalida a transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, então o artigo 26.º do mesmo NRAU, ao determinar que ao contrato em causa se aplique esse artigo 57.º, interpretado nos termos em que o faz a sentença recorrida, revela-se inconstitucional por manifesta violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança emergente do art. 2.º da CRP.

Acresce que

4. a interpretação restritiva do art. 57.º do NRAU, ao tratar diferentemente os descendentes conforme os considere como do cônjuge que subscreve o contrato ou do cônjuge sobrevivo, resulta inconstitucional por manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da CRP.»

5. A ora recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

« […]

1. A decisão recorrida não merece qualquer censura, encontrando-se devidamente sustentada em termos de facto e de direito, não violando qualquer princípio constitucional.

2. O acórdão recorrido não aplicou o regime do art. 26.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, pelo que não está em causa a invocada apreciação da sua conformidade com o preceito constitucional invocado.

3. A norma prevista no art. 57.º do NRAU, na versão resultante da lei n.º 13/2019, aplicada no sentido de excluir que o arrendamento se transmita de novo por morte do cônjuge sobrevivo do primitivo arrendatário para o descendente de ambos não viola qualquer princípio constitucional.

4. Não é violado o princípio da igualdade, previsto no art.º 13.º da CRP, pois não existiu um tratamento desigual com aplicação da nova lei, na medida em que todas as situações semelhantes que reúnam circunstâncias idênticas, serão igualmente tratadas. A interpretação feita pelo Tribunal do art. 57.º não trata desigualmente os sucessores do arrendatário quando sejam tidos como sucessores do primitivo arrendatário ou como sucessores do cônjuge desse arrendatário.

5. Não é violado art.º 36.º nº3 da CRP, não havendo diferenciação entre cônjuges na aplicação da lei, no sentido que a solução teria sido sempre igual, independentemente do cônjuge a que se destinasse.

6. Não é violado o art. 2.º da CRP, na medida em que não tem sustentação o argumento de que a Recorrente, quando em 2005 o seu Pai faleceu, adquiriu a legítima expectativa de lhe vir a ser transmitida a posição de arrendatário do seu pai, aquando da morte de sua mãe. Pelo contrário, quando a Recorrida adquiriu o locado, tomando conhecimento de que o contrato em apreço se havia já transmitido à Mãe da Recorrente antes da atual redação do art. 1068.º do Código Civil, e que esta não era a primitiva arrendatária, criou a legítima expectativa de que, com o falecimento da inquilina, o contrato caducaria.»

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Conhecimento e delimitação do objeto do recurso

6. O presente recurso incide sobre o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que julgou improcedente o recurso de apelação interposto pela ora recorrente, tendo por objeto, tal como esta o delimitou: «a) interpretação do artigo 57º da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro na redação que lhe foi dada pela Lei 13/2019 de 12 de fevereiro, que nega a transmissão do arrendamento por morte do cônjuge a quem fora transmitido», que «viola o princípio constitucional da segurança jurídica e da proteção da confiança escrito no artigo 2º- da CRP, pois, aquando da morte do pai da recorrente (em 2005), esta criou a legítima expectativa de vir a suceder a sua mãe como arrendatária da casa onde a família vivia e a recorrente vive»; b) Entendendo[-se] que o artigo 57º da Lei 6/2006 não permite a transmissão da posição do arrendatário habitacional a favor dos filhos ou enteados do cônjuge sobrevivo do primitivo arrendatário, então o artigo 26º da mesma lei, ao determinar que às transmissões como a aqui em causa, se aplique esse artigo 57.º é inconstitucional por manifesta violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança garantidas pelo artigo 2º da CRP; c) Outrossim, a interpretação restritiva do artigo 57º da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro na redação da Lei 13/2019 de 12 de fevereiro, ao tratar diferentemente os descendentes conforme estejam a suceder ao ascendente que subscreveu o contrato ou ao ascendente que sobreviveu àquele, é inconstitucional por manifesta violação do princípio da igualdade consagrada no artigo 13º da CRP».

Conforme relatado supra, as partes foram notificadas para se pronunciar quanto à possibilidade de o objeto do recurso não vir a ser conhecido no segmento integrado pela segunda das questões de inconstitucionalidade enunciadas no requerimento de interposição pelo facto de o acórdão recorrido não ter aplicado qualquer norma contida no artigo 26.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (adiante «NRAU»), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro.

Nas alegações que produziu, a recorrente não se pronunciou sobre tal possibilidade. Já a recorrida defendeu, em contra-alegações, que o artigo 26.º do NRAU, não foi aplicado no caso sub judice.

Vejamos.

O artigo 57.º do NRAU, relativo à transmissão por morte do contrato de arrendamento, integra a Secção IV do Capítulo II do Título II do NRAU, o que significa, para o que aqui releva, que se inscreve no conjunto de normas transitórias aplicáveis aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro. É o que...

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