Acórdão nº 02073/18.0BEPRT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 05 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelJOSÉ GOMES CORREIA
Data da Resolução05 de Julho de 2023
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo 1. – Relatório Vem interposto recurso jurisdicional por AA, com os sinais dos autos, visando a revogação da sentença de 16-09-2022, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou improcedente a impugnação que intentara, versando sobre o despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação de IRS n.º ...11, relativa ao ano de 2016, no valor de € 10.254,65.

Irresignada, nas suas alegações, formulou a recorrente AA, as seguintes conclusões: A.

Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que aquilatou que a liquidação impugnada não enferma de qualquer ilegalidade, julgando, por isso, improcedente a impugnação judicial apresentada contra a liquidação de IRS, no valor de 10.254,65 €.

B.

O Tribunal a quo entendeu não ser aplicável ao caso sub judice a norma de exclusão de tributação prevista no artigo 11.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31/12, que criou um regime especial aplicável às mais-valias imobiliárias, uma vez que o valor de realização foi aplicado na amortização de um empréstimo contraído para a construção do imóvel alienado.

C.

A fundamentação do Tribunal a quo assentou essencialmente nos fundamentos vertidos no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0774/14, de 18/01/2017.

D.

Note-se, porém, que a decisão proferida em tal acórdão não foi unânime.

E.

Na opinião da Excelentíssima Juiz Conselheira Dr.ª Dulce Neto, que votou vencida, defende que “a aquisição de um imóvel destinado a habitação (ou de ingresso na esfera patrimonial do sujeito passivo desse tipo de imóvel) tanto pode efetuar-se através da aquisição (originária ou derivada) de uma habitação já edificada e inscrita na matriz predial urbana, como através da construção de edifício habitacional num prédio rústico ou terreno para construção que o sujeito passivo adquiriu - que é a forma de fazer surgir e fazer ingressar na sua esfera patrimonial um novo prédio urbano.”, sendo que “ambas as formas de aquisição estão contempladas na norma, até porque do disposto no art.° 46° do CIRS decorre que a aquisição tanto pode referir-se a imóvel adquirido a terceiros como a imóveis construído pelo próprio, fazendo a norma a distinção para efeitos de cálculo do respetivo valor de aquisição (No imóvel adquirido a terceiros, considera-se como valor de aquisição o que tiver servido para efeitos de liquidação de IMT, ou não tendo havido lugar à liquidação de IMT, o valor que lhe serviria de base, caso fosse devida, determinado de harmonia com as regras próprias daquele imposto; No imóvel construído pelo próprio, considera-se como valor de aquisição o maior dos seguintes valores: (i) o valor patrimonial tributável inscrito na matriz, ou (ii) o valor do terreno mais os custos de construção comprovados documentalmente, obtendo-se o valor do terreno pelas regras indicada na alínea anterior (IMT).” (sublinhado e negrito nosso).

F.

Destarte, aderindo na íntegra à douta argumentação da Excelentíssima Juiz Conselheira Dr.ª Dulce Neto, temos por certo que, face ao quadro normativo e à especialidade deste regime aplicável às mais-valias imobiliárias, a génese e o espírito da norma foi a de contemplar todas as situações em que o produto da venda do objeto alienado se destinou à amortização do empréstimo contraído para adquirir a propriedade de tal imóvel, entendendo-se “aquisição” na sua aceção mais ampla, de modo a abarcar quer a aquisição de imóvel já construído, quer a aquisição decorrente da construção pelo próprio contribuinte.

G.

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0774/14, de 18/01/2017, justifica a pretensa opção do legislador em excluir as amortizações de empréstimos contraídos para a construção de habitação, com o seguinte argumento: “face à possibilidade concreta de um empréstimo contraído para construção de um imóvel ser desviado dos seus fins pelo mutuário o legislador tenha limitado o benefício em causa apenas a, empréstimos contraídos para aquisição de imóvel, situação mais facilmente verificável e menos propensa a desvios relativamente aos seus fins.”.

H.

Se efetivamente foi este o argumento do legislador, significa que na génese da norma reside um pensamento discriminatório com base num preconceito e numa hipotética premissa.

I.

Com o devido respeito e salvo melhor entendimento, o legislador não pode partir do pressuposto de que todos os contribuintes que recorrem a empréstimo bancário para a construção de uma casa desviam valores para os outros fins que não a construção.

J.

Porquanto, desde logo, o empréstimo é concedido por uma instituição bancária que estabelece um montante máximo de crédito disponível em relação ao valor do imóvel, que normalmente se fixa entre 80% a 90% do valor do imóvel. A isso acresce o facto de o valor financiado pela instituição bancária estar dependente dos rendimentos do mutuário e da sua capacidade de endividamento.

K.

Mais, a instituição bancária analisa o projeto construção, o orçamento, e acompanhada a construção e apenas disponibiliza o capital necessário para cada fase de construção, pelo que seria surreal assumir que o contribuinte consegue canalizar a totalidade do valor do empréstimo para outros fins.

L.

Pelo que, mesmo na hipótese de um mutuário conseguir desviar algum valor para outros fins, é certo que do valor mutuado só uma percentagem residual é que eventualmente poderá ser desviado.

M.

Com efeito, não se afigura justa uma norma que se baseia num preconceito, assumindo a priori que todos os contribuintes que recorrem a um empréstimo bancário para a construção da sua habitação utilizam o empréstimo para outros fins que não a construção.

N.

De mais a mais, caso o legislador tivesse dúvidas sobre o destino do valor do empréstimo, sempre poderia adotar um critério semelhante ao utilizado no artigo 46.º, n.º 3 do CIRS, que estabelece uma espécie de prestação de contas, que permitisse ao contribuinte comprovar junto da autoridade tributária os concretos custos de construção e se a totalidade do valor do empréstimo foi efetivamente aplicado na construção e, caso não tivesse sido, ser a exclusão de tributação limitada aos valores que comprovadamente foram utilizados na construção.

O.

Na nossa modesta opinião, crê-se que esta seria a solução justa para todos os contribuintes e só assim seria respeitado o princípio da igualdade, pois, apesar de se tratar de forma diferente o contribuinte que recorre a empréstimo para construção, impondo-lhe comprovar os custos de construção para beneficiar da exclusão da tributação, não lhe é vedada a priori a possibilidade de beneficiar da norma de exclusão de tributação.

P.

Não pode é o legislador criar uma norma que exclui, por completo, a possibilidade de o contribuinte comprovar qual o empréstimo aplicado na construção, simplesmente porque o legislador vaticinou que todos estes os contribuintes vão desviar o empréstimo para outros fins e que, por isso, não “merecem”, de todo, a tutela de qualquer direito.

Q.

Uma norma desta natureza, imbuída de um espírito de censura aos contribuintes que recorrem a empréstimo para construção, sem prever um qualquer mecanismo que permita ao contribuinte comprovar perante a autoridade tributária qual o valor do empréstimo que efetivamente foi utilizado na construção, viola o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

R.

Pelo que, ao contrário do que defende o Tribunal a quo, a norma aqui em escrutínio, quando interpretada no sentido de não ser aplicável quando o valor de realização seja aplicado na amortização do empréstimo contraído para a construção do imóvel, não está apenas a tratar de forma diferente o que é diferente, mas sim a tratar de forma injusta, com base num preconceito, mormente, quando o legislador pode criar mecanismos para aferir se o valor do empréstimo foi efetivamente aplicado na construção do imóvel, bastando para tal impor ao contribuinte que comprove que o empréstimo foi aplicado na construção.

S.

Conforme salientam DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, o artigo 5.º da Lei Geral Tributária “não esgota o seu sentido a nível da criação das normas. Também se aplica, talvez mais utilmente, na interpretação/aplicação das normas, como comando dirigido à Administração e aos Tribunais. Na sua segunda vertente, refere-se à generalidade, igualdade, legalidade e justiça material da decisão quanto aos casos concretos. Assim, uma norma “em princípio” justa pode levar a injustiça material na sua aplicação a caso ou grupo de casos. O n.º 2 assenta no princípio da justiça material (generalidade e igualdade) como fundamento do Estado de Direito e vem na esteira da CRP sublinhar a inconstitucionalidade do “Direito” dito para o caso quando houver injustiça. A justiça, entendida em termos de igualdade, de respeito pela capacidade contributiva, de generalidade, etc., é uma justiça material: visa um resultado real.

Uma norma será inconstitucional se a sua aplicação a levar a resultados injustos” (cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária, anotada e comentada, 4ª edição, 2012, p. 91) - sublinhado e negrito nosso.

T.

Ora, se a norma de exclusão de tributação prevista no artigo 11.º da Lei n.º 82-E/2014, de 31/12, for interpretada no sentido de não abranger as situações em que a aquisição da propriedade resultou de uma construção levada a cabo pelo contribuinte, não temos dúvidas de que tal conduz a um resultado injusto, não se vislumbrando uma razão válida para o legislador nem sequer conceder ao contribuinte a possibilidade de comprovar a aplicação do valor do empréstimo na construção, já que é surreal cogitar que a totalidade do valor do empréstimo é desviado para outros fins, que não a construção.

U.

Concludentemente, deve ser considerada inconstitucional a norma de exclusão...

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