Acórdão nº 6864/18.4T8ALM.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 06 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelANA PAULA LOBO
Data da Resolução06 de Julho de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

* I – Relatório I.1 – Questões a decidir Na acção presente acção declarativa com processo comum instaurada por J.F.I. CAR, L.dª contra AA, Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., Mapfre Seguros Gerais, S.A. e AIG Europe S.A. foram formulados os seguintes pedidos principais de condenação: 1.

das Seguradoras no pagamento à autora de uma indemnização pelos danos patrimoniais causados pela conduta ilícita do Réu, no âmbito do contrato de prestação de serviços em análise, no montante global de € 146.749,58, a título de IVA, juros compensatórios e custas, referentes aos exercícios de 2015 e 2016, de acordo com a respectiva cobertura de seguro e período de vigência.

  1. das Seguradoras no pagamento à Autora de juros de mora vincendos sobre a indemnização que a cada uma competir nos termos da alínea a), contabilizados à taxa legal, desde a data da citação para a presente acção até integral e efectivo pagamento; 3.

    do Réu ao pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais, em montante nunca inferior a € 10.000,00, acrescido de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data da citação para a presente acção até integral e efectivo pagamento.

    Foi formulado, a título subsidiário, o pedido de condenação do Réu a indemnizar a Autora pelas quantias que excederem a responsabilidade assumida pelas Rés nos sobreditos contratos de seguro, ou, não estando os sinistros cobertos, pela totalidade de tais quantias, e, em qualquer hipótese, acrescidas dos juros de mora devidos nos termos da alínea anterior.

    Em fundamento da sua pretensão indicou ter celebrado com o réu, na qualidade de contabilista certificado contrato mediante o qual este a informaria das suas obrigações tributárias face à importação de veículos, actividade a que se dedicava, e actuaria como seu representante nas relações com a AT, para coordenar os contactos com esta e assegurar o cumprimento das obrigações legais mediante uma contrapartida mensal, vindo este a prestar indicações erradas em sede de tributação de IVA das referidas importações de veículos que a obrigou a pagar à Autoridade Tributária e Aduaneira, em sede de execução fiscal, por IVA em falta relativo aos anos de 2015 e 2016 o montante de 137.732,54, acrescido de juros compensatórios e custas no valor de 9.017,04€.

    A sentença proferida pelo Juiz ... do Juízo Central Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 16.03.2022 julgou a acção improcedente.

    O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 16 de Dezembro de 2022, procedeu a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, declarou nulo por preterição de forma legal o contrato de prestação de serviço celebrado em Abril de 2015 entre a Autora e o Réu, não determinando a repetição do prestado por ausência de elementos nos autos, e julgou parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

    1. Condenou a Ré Allianz, SA, a pagar à Autora indemnização no montante de € 3.515,56 (três mil, quinhentos e quinze euros e cinquenta e seis cêntimos), e a Ré Mapfre, SA, a pagar à Autora o montante de € 4.338,66 (quatro mil, trezentos e trinta e oito euros e sessenta e seis cêntimos), em ambos os casos acrescidos de juros moratórios à taxa legal fixada para os juros civis desde 19 de Outubro de 2022 até integral pagamento; b) Absolveu os Réus AA, Allianz, SA, e Mapfre, SA, do demais pedido.

    A A. interpôs recurso de revista do referido acórdão na parte em que absolveu os R.R. do pedido.

    Apresentou as seguintes conclusões de recurso: I – Da Responsabilidade do Recorrido pelo Montante a pagar a título de IVA 1. Entende a Veneranda Relação de Lisboa que não resultam dos autos factos que permitam fundar a pretensão indemnizatória da Recorrente no que concerne aos montantes a pagar a título de IVA; 2. No entanto, salvo melhor opinião tal não corresponde à verdade, como se verá adiante; i) Da Existência de um Facto 3. Resultam dos factos julgados provados n.ºs 9., 12., 15., 16., 17., 20. e 21. Que a Recorrente utilizou indevidamente o regime especial de tributação pela margem de lucro fruto da prestação de serviços de contabilidade por parte do 1.º Réu; 4. Alias, tal acaba por ser reconhecido pelo Tribunal a quo ao entender, quanto aos juros compensatórios, que estes ficaram a “(…) dever-se à atividade do Réu ao liquidar indevidamente o montante a pagar.”; 5. Ou seja, desta factualidade deve-se concluir que não só foi alegada um concreto conjunto de atos praticados pelo Recorrido que levaram impreterivelmente aos danos causados, isto é, à liquidação incorreta do IVA e a consequente correção em momento em que a Recorrente não tinha capacidade financeira para o liquidar, como esta resulta dos factos dados como provados; ii) Da Ilicitude 6. A atuação do Recorrido, mormente a prestação de serviços de contabilidade em violação das regras deontológicas e fiscais aplicáveis, deve ser qualificada como ilícita, nos termos do artigo 483.º, n.º 1, 2.º Parte do C.C., como de certo modo entendeu o Tribunal a quo; 7. Com efeito, resulta do artigo 5.º, n.º 1 do Código Deontológico dos Contabilista Certificados, que estes são responsáveis por todos os atos que pratiquem no exercício da sua profissão. Sendo que, por outro lado, do artigo 7.º, n.º 1 desse mesmo diploma resulta que estes devem aplicar os princípios e as normas contabilísticas de modo a obter a verdade da situação financeira e patrimonial das entidades a quem prestam serviços; 8. É claro dos factos dados como provados nos autos que a atuação do aqui Recorrido não se pautou pelos deveres legais e deontológicos que sobre ele impendiam, desde logo, note-se que resulta do facto provado n.º 16 que este sempre “(…) calculou em todas as aquisições a margem de lucro e aplicou a essa margem a taxa de IVA, indicando o resultado como sendo o IVA a pagar pela Autora por cada aquisição.”; 9. Tais normas imperativas preteridas pelo aqui Recorrido visam não só tutelar um eventual interesse geral de tutela da legalidade fiscal, mas também tutelar diretamente os interesses particulares das pessoas que entram em contacto com os contabilistas certificados, recorrendo aos seus serviços; 10. Mais, é natural que a incorreta aplicação de um regime de tributação, mormente a falta de liquidação de determinados montantes, encontra-se dentro do escopo de proteção dos deveres legais e deontológicas em causa; 11. Assim, nestes termos deve-se, igualmente, concluir que, como bem concluiu a Veneranda Relação de Lisboa, que a atuação do Recorrido é ilícita; iii) Da Culpa 12. Da aplicação do nosso regime geral de responsabilidade civil extracontratual ao caso particular da responsabilidade dos contabilistas certificados resulta que o juízo de censura ou reprovação exigido pelo direito se basta com mera a negligência – nesse sentido, vide cit. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de abril de 2022; 13. Ora, em face ao critério geral do artigo 487.º do C.C. deve-se perguntar o quê que um contabilista medianamente informado, diligente e sagaz teria feito quando colocado na real situação do aqui Recorrido; 14. É manifesto que um contabilista certificado de diligência média teria diligenciado pela aplicação do correto regime fiscal; 15. Aplicação esta que não foi pelo Recorrente diligenciada, resultando dos autos que “[o] Réu desenvolveu a actividade de tratamento da facturação da Autora sem ter feito essa verificação e, por isso, indicou à Autora montantes errados quanto ao IVA que estava obrigada a pagar.”; 16. Mais, em face ao entendimento do nosso Supremo Tribunal de Justiça, cabia ao Recorrido fazer prova que agiu de forma integra, idónea e responsável, resultando dos claramente o oposto, conformando-se com a incorreta aplicação do regime de tributação a margem de lucro; 17. Assim, nestes termos, mormente se pode concluir que a atuação do Recorrido deve, no mínimo, ser qualificada como culposa.

    iv) Da Existência de Dano 18. Ora, como se sabe, por dano, em termos jurídicos, entende-se “(…) a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito.” ou, se se preferir, “(…) a frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica.” – In, respetivamente, MENEZES CORDEIRO, op. Cit., 2017, p. 511 e MENEZES LEITÃO, op. Cit., pp. 333 e 334; 19. Cabe, assim, questionar do ponto de vista naturalístico se a atuação do Recorrido suprimiu ou diminuiu alguma vantagem da Recorrente e depois se esta é juridicamente tutelada: a resposta terá de ser cabalmente positiva; 20. Isto é, o esforço económico que a Recorrente teria de ter realizado com a liquidação correta do IVA é inferior ao esforço que esta tem que ter para pagar a totalidade do montante em falta fruto da incorreta liquidação pelo Recorrido, o qual não pode deixar de ser considerado – como de certa forma, acabou por reconhecer o cit. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de maio de 2022; 21. Enfim, mormente se pode concluir que também se tem por verificado o pressuposto da existência de um dano.

    II – Da Existência de Causalidade Adequada entre a atuação do 1.º Réu e os montantes a pagar a título de IVA, juros de mora e custas de execução 22. Entende o Tribunal a quo que não é possível estabelecer algum nexo de causalidade adequada entre a atuação do 1.º Réu e os montantes a pagar a título de IVA, juros de mora e custas de execução; 23. Porém, salvo melhor e douta opinião, não assiste razão ao Tribunal a quo quando entende que o não existe qualquer nexo de causalidade adequada entre o comportamento do 1.º Réu e os danos sofridos pelo Recorrente, mormente as custas de execução e os juros de mora; 24. Como é reconhecido pelo Tribunal a quo, o direito positivo português no artigo 563.º do Código Civil efetivamente consagra de certo modo a chamada teoria da causalidade abstrata, isto é, a teoria segundo a qual não basta que um evento seja naturalisticamente causal é também necessário que o evento seja, em abstrato, adequado a produzir o dano; 25. Porém, ao contrário do entendimento...

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