Acórdão nº 545/20.6GBAGD.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 21 de Junho de 2023

Magistrado ResponsávelPAULO COSTA
Data da Resolução21 de Junho de 2023
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº 545/20.6 GBAGD.P1 Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Águeda Relator Paulo Costa Adjuntos Nuno Pires Salpico Paula Natércia Rocha Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto I.

Relatório No Processo Comum (Tribunal Singular) supra id,, do Tribunal Judicial da Comarca do de Aveiro, Juízo Local Criminal de Águeda, foi proferida Sentença nos termos da qual foi preferida a seguinte decisão: “Face a todo o exposto, julgo a acusação pública procedente por provada e, em consequência, condeno o arguido AA pela prática, como autor material de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do C.P., na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um total de € 400,00 (quatrocentos euros).

Vai ainda o arguido condenado nas custas do processo, em 2 (duas) UC de taxa de justiça.” Inconformado, veio o arguido interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem: “A) In casu e em face da materialidade apurada nos presentes autos, o Tribunal a quo, salvo o devido e merecido respeito (que é muito!) não procedeu de forma correcta ao fazer um enquadramento jurídico criminal errado dos factos apenas descrito pelo ofendido.

Ou seja, estes factos: erroneamente dados como provados pelo Tribunal a quo, têm que ser rectificados, devendo ser, na verdade e com relevo para a causa, substituídos, apenas, pela única factualidade provada, a saber: 1. No decurso do mês de Abril de 2020, o ofendido, BB, recebeu no seu telemóvel, pela aplicação Whatsapp, uma mensagem de voz com o seguinte teor: “Tu, um dia destes, entras aqui em casa e levas dois estoiros na cabeça. Ou tu entras nos eixos, ou isto vai-se foder tudo”.

  1. O ofendido considerou que as expressões referidas em 1 (UM) dos factos provados, não eram bem uma ameaça e que poderiam referir-se a muitas coisas não concretizadas, sendo que só participou tais factos passados uns meses, por razões de viagens e de agenda das autoridades policiais e também por considerar nada ter a temer; ISTO PORQUE: B) Não deveriam ter sido positivamente valoradas apenas as declarações do ofendido que, de forma ostensiva, parcial e (por isso) subjectiva, descreveu a mensagem de voz que recebeu no decurso do mês de Abril de 2020 (Cfr passagens audio com as Referências números 20221117_151113_4061035_2870294 e 20221117_125531_4061035_2870294, constantes da acta da audiência de 17 de Novembro de 2022, entre as 14h24m e as 15h50m), a saber: C) O Tribunal a quo ignorou que o próprio ofendido reconheceu que, relativamente ao arguido - “(…) já não estávamos de boas relações (…) há vários anos (…) seguramente há uns 10 anos (…)” D) O Tribunal a quo não deveria ter confiado sem reservas na opinião do ofendido, a única, quando o autor de tais expressões só poderia ser do arguido por causa do “(…) acumular de situações (…)” que mantém, alegadamente, com este; E) O Tribunal a quo ignorou que o próprio ofendido reconheceu que os “(…) telefonemas (…) mensagens (…) escritos (…) eram sempre de números desconhecidos (…)” F) Ainda assim, o próprio ofendido, entre os minutos 10 / 12 (e depois de ouvir as gravações juntas aos autos num CD), permite-se sublinhar com naturalidade que o que acabava de ouvir “(…) não é bem uma ameaça (…)” aqui se consubstanciando outro facto incapaz de provar, para além da dúvida razoável, que era o arguido “do outro lado da linha”, assim como o desvalor penal conferido pelo ofendido ao que ouviu; G) Para além disso, é também o próprio ofendido a reconhecer perante o Tribunal a quo, que, quanto às expressões ouvidas “(…) dois estoiros (…) posso ligar a muita coisa (…) pode ser só bater (…)” H) Ou seja, a alegada intenção de se remeter o agravamento, do crime de ameaça, para a prática de um crime de “homicídio” (conforme consta da fundamentação da decisão condenatória) é manifestamente um absurdo, por completamente desajustado à realidade da factualidade dada como provada.

    I) Ou seja, em face dos factos supra referenciados, o Tribunal a quo não poderia ter valorado positivamente e sem reservas as declarações do ofendido quanto à correcta identificação da voz do arguido, por serem, ostensivamente sugestionadas, condicionadas, subjectivas e por isso, parciais; J) Ademais, o Tribunal a quo, inexplicavelmente, ignora (nem sequer se permitiu desvalorizar) que todo o contexto que envolveu a situação em causa, apenas foi descrita pelo próprio ofendido que, naturalmente, a desvalorizou como o peso do crime de ameaça agravada, tal e qual o arguido foi acusado e condenado ao afirmar “(…) só quando tive condições é que fiz a queixa (…) eu não tenho nada a temer (…)”; K) Não é de todo credível que fosse possível identificar o arguido pela voz; a voz muda com o tempo e fica diferente ao telefone, designadamente, o tom, a velocidade, o seu timbre, etc… L) O Tribunal a quo, não pode presumir… está obrigado a provar sem margem para dúvidas e… in dúbio, pro reo, como é de Lei de Direito e da mais elementar Justiça!...

    M) Não tem qualquer cabimento, presumir que foi o arguido… só porque foi e só porque interessou ao ofendido que tenha sido; N) Inexistindo qualquer ligação deste número de telefone ao arguido (por inexistir qualquer ligação ao seu titular inscrito), é também absolutamente inaceitável (por ser uma elaborada fantasia) que o Tribunal a quo justifique a identificação do arguido como autor dos crimes em causa nos autos, com base apenas na versão do ofendido; O) Ou seja, se nada, para além de meras presunções, nada, mas mesmo nada, pode concluir, sem margem de dúvidas ou reservas, pela identificação do arguido como autor da mensagem de voz em causa nos autos; P) Quanto ao estado de espírito e à perturbação alegadamente sentida pelo ofendido e às consequências que o comportamento do arguido lhe provocou, foram excessivamente valoradas as suas próprias declarações nesse sentido, naturalmente parciais, subjectivas e contaminadas pelas péssimas relações que admitiu ter com o arguido; Q) Considerando ser estes os únicos factos que o Tribunal a quo pode dar como provados, jamais poderia ter concluído pela objectiva e inequívoca identificação do arguido como seu autor, pelo que existe uma clara e notória “contradição insanável da fundamentação”; R) Ou seja, o Tribunal a quo errou, na medida em elaborou a respectiva subsunção jurídico-criminal com base em factos presumidos e não provados que, no mínimo, lhe deveriam ter suscitado dúvidas quando avaliou toda a prova testemunhal, motivo pelo qual, o princípio sagrado do in dubio pro reo deveria ter sido utilizado e não foi; S) Mais errou o Tribunal a quo na medida em que acabou por não efectuar de forma clara a subsunção jurídico-criminal desses factos, o que, por si, acabou por revelar alguma incoerência, contradição e por isso (certamente) involuntária parcialidade, em relação à restante materialidade subsumida; T) Em suma, o Tribunal a quo, não ponderou devidamente todas as circunstâncias atendíveis que, in casu, excluíram claramente a ilicitude e a culpa do recorrente AA pela alegada prática do crime de ameaças (e muito menos agravada), por não se ter conseguido ultrapassar presunções de factos que mais não são do que meros indícios.

    U) O princípio do in dubio pro reo é um princípio fundamental em direito penal que prevê o benefício da dúvida em favor do réu, isto é, em caso de dúvida razoável quanto à culpabilidade do acusado, nasce em favor deste, a presunção de inocência, uma vez que a culpa penal deve restar plenamente comprovada.

    V) O Tribunal a quo violou este princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição deste Tribunal da Relação. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista»; W) O Tribunal a quo violou a imposição que é dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando acabou por presumir factos provados de forma subjectiva e condicionada à tese parcial do ofendido (confessadamente, de relações péssimas com o arguido), não podendo ter a certeza sobre os factos que considerou decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.

    X) Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

    Y) Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais (ofendido e arguido) e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto e se limite a presumir de forma subjectiva e com pré-conceito; Z) Sendo o in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impunha-se uma orientação vinculativa dirigida ao Tribunal a quo no caso da manifesta evidência de uma dúvida sobre os factos que se limitou a presumir de forma subjectiva: em tal situação, o tribunal tinha de decidir pro reo.

    AA) Daqui se retira que, tendo o Tribunal a quo presumido a autoria do crime em causa nestes autos, tal preterição exigiria que o julgador tivesse ficado na dúvida apenas sobre os factos relevantes supra e infra referenciados e, nesse estado de dúvida, tivesse decidido a favor...

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