Acórdão nº 237/23 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução11 de Maio de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 237/2023

Processo n.º 399/21

2.ª Secção

Relator: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC), do acórdão prolatado pelo plenário da 1.ª Secção do Tribunal de Contas, de 12/01/2021, com fundamento na recusa de aplicação da norma contida no n.º 2 do artigo 96.º da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (Lei n.º 98/97, de 26/08) e, em consequência, admitiu o recurso de A. da Decisão da Secção Regional da Madeira, que aprovou o Relatório de Auditoria que teve por objeto o “apuramento de responsabilidades financeiras indiciadas no exercício da fiscalização prévia no âmbito do contrato de empréstimo, no valor de 7.569.990,00€, celebrado em 10/01/2019, entre o Município do Funchal e a Caixa Geral de Depósitos, S.A”, por estar em causa o exercício de um direito a uma tutela jurisdicional efetiva por parte do recorrente, visado no relatório de auditoria como responsável pela prática de infrações financeiras.

2. O Tribunal “a quo” decidiu nos seguintes termos, para o que aqui nos interessa:

«(…)

6. No caso sub judice está em discussão, em primeiro lugar, a legalidade da admissão do recurso de uma decisão da SRMTC que aprovou um relatório de auditoria tendo por objeto o apuramento de responsabilidades financeiras.

7. E tal sucede porque o artigo 96.º, n.º 2 da LOPTC, nesta matéria, refere que “Não são recorríveis os despachos interlocutórios dos processos da competência das 1.ª e 2.ª Secções nem as deliberações que aprovem relatórios de verificação de contas ou de auditoria, salvo, quanto a estes, no que diz respeito à fixação de emolumentos e demais encargos” (sublinhado nosso).

8. Donde decorreria, numa leitura literal da norma, que o presente recurso não seria admissível por estar em causa, precisamente, uma decisão que aprova um relatório de auditoria, não versando o referido recurso sobre qualquer questão do foro emolumentar ou relativa a quaisquer outros encargos.

9. Porém, e tal como alega o recorrente, sobre tal normativo legal já se pronunciou o Tribunal Constitucional que, no seu Acórdão n.º 812/2017, de 30.11.2017, decidiu “julgar inconstitucional a norma ínsita no artigo 96.º, n.º 2 da LOPTC, no sentido que estabelece a irrecorribilidade das deliberações da 2.ª Secção que aprovem relatórios de verificação de contas ou de auditoria quando os mesmos emitam e apliquem juízos de censura aos visados e responsáveis financeiros” (sublinhado nosso).

10. E Fê-lo em nome da protecção do direito constitucionalmente consagrado no artigo 20.º da CRP: o direito a uma tutela jurisdicional efectiva.

11. O que permite concluir que só será julgada inconstitucional uma interpretação daquela norma que considere irrecorríveis as decisões que aprovem relatórios de auditoria sempre e apenas quando os mesmos emitam e apliquem juízos de censura aos visados e responsáveis financeiros.

12. E tal como resulta do mencionado acórdão, a admissibilidade de recurso, nestes casos, tem por base um direito de defesa do bom nome e da imagem pública dos visados:

“23. Em situações em que são formulados juízos de censura em relatórios de auditoria aprovados por decisões da 2.ª Secção do Tribunal de Contas, existe uma afectação do direito fundamental ao bom nome e reputação. Quando esse juízo de censura é desacompanhado de julgamento de responsabilidade financeira na 3.ª Secção, o cidadão titular do cargo em causa, por causa da regra da irrecorribilidade das deliberações da 2.ª Secção decorrente do artigo 96.º, n.º 2, da LOTC, vê-se impossibilitado de se defender da censura, impugnando judicialmente a decisão em causa, contrapondo argumentos e questionando conclusões do relatório. A norma em causa permite a existência de uma lesão de um direito fundamental, por um ato do Tribunal de Contas, sem que exista acesso à tutela jurisdicional para a sua defesa, o que é intolerável à luz da ordem constitucional da República Portuguesa.

Por tudo o que fica exposto, verifica-se que é desconforme com a Constituição a irrecorribilidade das decisões do Tribunal de Contas que profiram juízos públicos de censura por impossibilitarem a impugnação judicial de juízos de censura formulados sobre a conduta de titulares de cargos públicos.”

13. Esta inferência permite-nos extrair duas conclusões:

a) A de que são recorríveis as decisões do TdC que aprovem relatórios de auditoria quando estes emitam juízos de censura sobre visados ou responsáveis financeiros, desde que os mesmos sejam concretizados na imputação de responsabilidades financeiras, de natureza sancionatória e/ou reintegratória, ao abrigo da LOPTC;

b) Não sendo, porém, recorríveis tais decisões quando delas resulte o prosseguimento da ação para julgamento de responsabilidades financeiras, a cargo da 3.ª Secção do TdC, caso em que da respectiva sentença caberá recurso por força do disposto no n.º 3 do artigo 96.º da LOPTC.

14. Ou seja, o que se pretende em ambas as situações é, tal como se explicita no acórdão do Tribunal Constitucional, garantir a todos os que sejam alvo de concretos juízos de censura em relatórios de auditoria do Tribunal de Contas um direito a uma tutela jurisdicional efectiva, tutela que não se considera assegurada pelo mero exercício do direito de contraditório a que se refere o artigo 13.º da LOPTC:

“Note-se, finalmente, que a audição dos responsáveis é feita antes da formulação dos juízos públicos de censura (artigo 13.º, n.º 3, LOPTC), o que significa que, em casos como o presente, em que não há efetivação de responsabilidades financeiras, o visado pelo juízo de censura fica sem possibilidade de se defender deste juízo.

Tendo em conta este enquadramento, tem de se concluir que os juízos de censura formulados pelo Tribunal de Contas, são suscetíveis de afetar a esfera jurídica do cidadão em causa e os direitos fundamentais por si invocados, neste caso. Ora, face ao juízo negativo público da conduta do visado à luz do regime aplicável, terá de se admitir a possibilidade de este aceder à tutela judicial, defendendo-se e contra-argumentando da concreta censura que lhe é feita de modo a poder ver a questão reapreciada por diferente órgão do tribunal. Decorre, por isso, do direito fundamental de acesso à tutela jurisdicional, previsto no artigo 20.º da Constituição, a necessidade de existir uma via de reapreciação judicial do ato lesivo dos direitos fundamentais no presente processo. Na ausência de responsabilidade financeira e do seu julgamento pela 3.ª Secção, verifica-se uma impossibilidade absoluta de impugnar judicialmente os atos em causa (juízos públicos de censura), que não pode deixar de corresponder à violação do direito de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva.”

15. Regressando ao caso sub judice constatamos que está em causa uma decisão SRMTC que aprovou um relatório de auditoria que teve por objeto o apuramento de responsabilidades financeiras e no qual são efetivamente feitos juízos de censura sobre os visados, dado que, conforme se extrai do §3.3 do relatório de auditoria, são identificados responsáveis, incluindo o ora recorrente, aos quais são imputáveis “ilegalidades que configuram eventuais infracções financeiras previstas e punidas pelo art. 65.º, n.º 1, al. b) da LOPTC, sendo puníveis nos termos do art. 61.º, n.º 4, da LOPTC, aplicável in casu por força do disposto no art. 67.º, n.º 3, do mesmo diploma.”

16. Poder-se-ia concluir pela irrecorribilidade da decisão caso da mesma tivesse resultado o prosseguimento da ação para julgamento de responsabilidade financeira, situação em que aos visados seria assegurada uma tutela jurisdicional efetiva por via da possibilidade de recurso da sentença que nesse domínio fosse proferida.

17. Tal não acontece, porém, dado que, conforme resulta da mencionada decisão (cfr. fls. 37, in fine), “A inexistência, porém, de indícios de que as infrações financeiras daí decorrentes tenham sido praticadas de forma intencional, o facto de o Tribunal nunca ter formulado recomendações ao MF com vista à correção das irregularidades detetadas e porque esta é a primeira vez que os responsáveis identificados no ponto 3.3 são censurados pela sua prática, conduzem ao preenchimento dos pressupostos necessários à relevação da responsabilidade financeira sancionatória elencados nas als. a) a c) do n.º 9 do art. 65.º da LOPTC.”

18. Pelo que a mencionada decisão concluiu pela relevação da responsabilidade financeira sancionatória imputável pela factualidade enunciada nos pontos 3.1.1 a 3.1.4 do relatório de auditoria, ao abrigo do disposto no art. 65.º, n.º 9, als. a) a c), da LOPTC, inexistindo, assim, prosseguimento da ação para julgamento de responsabilidades financeiras.

19. Donde se conclui pela legalidade da admissão do peticionado recurso, tal como fez a Exm.ª Juíza Conselheira da SRMTC, desaplicando neste domínio a norma do artigo 96.º, n.º 2 da LOTPC, por estar em causa o exercício de um direito a uma tutela jurisdicional efectiva por parte do recorrente, visado no relatório de auditoria como responsável pela prática de infrações financeiras, não obstante o Tribunal tenha concluído pela relevação dessa responsabilidade. (…)»

O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional do sobredito acórdão ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), nos seguintes termos:

«Nos termos do disposto nos arts. 70º, nº l, alínea a), 72º, nºs. 1, alínea a) e 3, 75º, nº 1, e 75º-A, nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), vem o Ministério Público interpor recurso...

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